Opinião

Artigo 316 do Código de Processo Penal: regra, ponderação e metodologia

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16 de outubro de 2020, 6h04

No início deste mês, o ministro Marco Aurélio de Mello, do STF, proferiu liminar deferindo Habeas Corpus para libertar traficante com base no parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal, incluído pela Lei 13.964/2019. O caso é bastante conhecido no meio jurídico e não cabe aqui a sua reapresentação.

Muitas discussões têm sido travadas acerca da possibilidade ou não da liminar ter sido dada com tal base legal, se o conteúdo normativo da lei é exatamente aquele para o qual fora empregado, se dependeria de complementação com outros elementos consequencialistas etc. Robustas e convincentes teses jurídicas ou quase jurídicas não faltam para questionar a aplicação pela primeira vez com grande repercussão na novidade legislativa.

Entendemos que o caso diz mais sobre como levamos a sério ou não a lei positiva do que sobre Direito Penal. Assim, faremos um corte metodológico para apresentar uma perspectiva ainda não explorada no debate em curso.

De início, pouco se avança na discussão se estivermos a debater a constitucionalidade da norma, porquanto estamos tratando de hipótese em que a lei foi aplicada como vigente. Também nada contribui para o caso apontar "culpados". Se o juiz ou o promotor "cochilou" [1], são elementos extrajurídicos que não estão abarcados pela metodologia aqui adotada.

Como último recorte, também entendemos que não se trata de dizer que a lei é ou não clara quanto à sua estrutura de hipótese e consequência. O pressuposto e sua implicação são construídos sem maior dificuldade na simplicidade da redação do dispositivo. Quando os defensores da aplicação da imediata soltura daquele que conta com mais de 90 dias de prisão preventiva sem revisão da necessidade de sua manutenção afirmam que a lei é clara, estão apresentando uma perspectiva daqueles que pretendem por outros argumentos manter tal prisão. É saudável para a evolução do debate que as  conclusões rivais partam de um ponto de vista em comum, ou que cada uma das propostas de solução tenham o mesmo ponto de partida.

É a isso que nos propomos, e neste ponto é que a questão deixa de ser de Direito Penal e se torna uma questão de teoria geral do Direito, que passamos a analisar à luz do construtivismo lógico-semântico.

Quanto ao primeiro argumento, de que a lei seria clara o suficiente e que, verificado no mundo dos fatos a hipótese, a consequência é clara e inevitável, a conclusão parece irresistível de início. Mas alguns elementos devem ser levados em consideração.

Não existe lei mais ou menos clara, e o processo de interpretação não deixa de existir como advoga antigo princípio in claris cessat interpretatio. A semiótica jurídica aduz que o sentido da norma não está contido em seu suporte físico, sendo fruto da construção pelo intérprete com base em seu horizonte cultural, na forma como defendido pela teoria do giro linguístico. Assim, vazia a defesa da aplicação do dispositivo por esse argumento.

Outrossim, a defesa de uma aplicação silogística, de hipótese observada e consequência necessária, formalizando em termos de lógica jurídica é igualmente convincente, mas deixa de captar outros aspectos relevantes, melhor explorado adiante. Como alerta Aurora Tomazini, comentando as lições de Kelsen, "para concebermos o Direito como ele é (numa visão culturalista), não podemos ignorar a existência de seu contexto, mesmo que a análise sobre ele não recaia. Sem a contextualização, não há como dizer qual é o Direito, porque para o compreendermos atribuímos valores ao seu suporte físico, e os valores são imprescindíveis de historicidade" [2].

Quanto ao argumento de que se deve aplicar literalmente o dispositivo, sem se levar em consideração o contexto, ou as consequências de uma dada intepretação, o argumento toca em outro ponto de teoria geral do Direito: os métodos de análise do Direito. Segundo o sistema referencial adotado neste trabalho, entendemos que, pelas mesmas razões acima expostas no que toca ao giro linguístico, inexiste método literal, como se o sentido estivesse presente no suporte físico da norma, "toda interpretação, até mesmo aquela que se diz ser literal, pressupõe um processo gerador de sentido, delimitado pelo contexto, onde influem valorações condicionadas às vivências culturais do intérprete" [3]. Em termos de análise sintática e semântica, parece-nos não haver nenhuma divergência jurídica sobre o mandamento que decorre da leitura do dispositivo em questão.

Disso decorre que os argumentos acima analisados não resistem a uma análise mais rigorosa, e a investigação flui para o método interpretativo que entendemos como capaz de compreender o Direito em seu conjunto: o método sistemático.

Parece-nos em um primeiro momento que a aplicação dada no caso concreto peca na simplicidade, oferecendo uma solução confortável do Direito invocado, e que determinados aspectos estariam sendo deixados de fora. De fato, o disposto no parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal não nos autoriza dizer que todas as demais disposições que tratem sobre o tema na mesma hierarquia legal estejam revogadas. É preciso ir além e buscar suportes em outros elementos do ordenamento jurídico que validem essa interpretação. Assim, o argumento deixa de indicar simplicidade e ganha consistência.

Para isso, é necessário primeiramente compreender qual a consequência disposta no parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal para a não revisão da manutenção da prisão preventiva. Não há nada além da menção de que a prisão será tomada por ilegal, sem exceções.

Buscamos então em um segundo passo na análise sistemática encontrar o que o sistema jurídico prescreve para a prisão ilegal, e a resposta está contida no artigo 5º, LXV. Não é irrelevante onde está a resposta do sistema para o caso concreto. Independentemente do que conste em outras normas infraconstitucionais, há uma conexão clara entre os dispositivos. O artigo 316, parágrafo único, do CPP qualifica juridicamente a circunstância, e este por sua vez é hipótese para a consequência constitucionalmente implicada:

"Artigo 5º — (…)
LXV. a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária",

Não apenas deve ser relaxada, mas imediatamente relaxada.

Encerra-se, portanto, a investigação, a análise sistemática do caso no ordenamento jurídico. Esse o arranjo legal positivo que incide no caso concreto. Parece-nos que qualquer esforço argumentativo que complexifique a conclusão revela esforço hercúleo para superação da norma por inclinações de ordem pessoal. Encerra-se também a análise científica aqui.

Como bem observado por Lênio Streck [4], não é ruim ou feio aplicar a "letra da lei". Não deveria haver constrangimento em se aplicar, e horror em se ver aplicada a lei.

O debate não tem sido feito, como dito no início, em termos jurídicos. A revolta não se dá pela aplicação de uma lei garantista, mas pelos exatos termos do caso específico e concreto. Com isso, corre-se o risco de, em jargão batido, "jogar-se o bebê junto com a água suja", afastando uma lei razoável para os anônimos, execrada por um caso específico.

O consequencialismo e o juízo desenfreado e atécnico de ponderação nos leva a crer que sempre existe a possibilidade de derrotabilidade da norma jurídica a depender do caso concreto. Não é o caso. Não podemos confundir regras de princípios, pois na clássica lição de Dworking [5]: se os fatos que uma regra estipula ocorrem, então ou a regra é válida, e a solução que dela resulta deve ser aceita, ou não é válida, e não contribuirá em nada para a decisão. Rememore-se que não estamos fazendo juízo de constitucionalidade da regra com colisão com eventual princípio, isso cabe ao Supremo Tribunal Federal. Por hora, vige a presunção de constitucionalidade da norma.

 


[2] CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito. O constructivismo lógico-semântico. 6. ed. São Paulo: Noeses, 2019. p.196.

[3] CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito. O constructivismo lógico-semântico. 6. ed. São Paulo: Noeses, 2019. p.280.

[5] Ronald Dworking, Talking Rights Seriously. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1978, p. 24.

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