Opinião

Ninguém é obrigado a fornecer a senha do seu telefone celular

Autor

  • Luiz Flávio Borges D'Urso

    é advogado criminalista mestre e doutor em Direito Penal pela USP presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção de São Paulo por três gestões (2004/2012) presidente de honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim) e presidente da Academia Brasileira de Direito Criminal (ABDCrim).

16 de outubro de 2020, 9h12

O aparelho celular tem se tornado, cada vez mais, um dispositivo no qual armazenamos praticamente tudo sobre nossas vidas. Desde nossa agenda de telefones até fotos, documentos, anotações e mensagens.

Pelo celular recebemos e transmitimos nossos e-mails e mensagens, de modo que ali se encontram nossas conversas profissionais, pessoais e íntimas. Talvez por uma falha do fabricante, não se exige uma senha específica para acessar alguns aplicativos e os e-mails, quando o usuário já tiver desbloqueado o celular.

Habituamos a registrar as nossas vidas por meio de milhares de fotos e vídeos que são armazenadas no álbum de fotografias do celular, de maneira que, por elas, pode-se verificar facilmente por onde andamos, quais locais visitamos, com quem estivemos, o que apreciamos etc. Por esse dispositivo nossa vida é desnudada.  

Muitos documentos, inclusive os mais importantes, que outrora estavam no cofre ou em gavetas trancadas em nossas casas e escritórios, agora estão conosco, acompanhando-nos todo o tempo, podendo ser acessados por qualquer pessoa que obtenha a senha do nosso celular.

Nossa agenda diária de compromissos, que antes era feita no papel e descartada ao final de cada ano, agora acumula informações ano após ano, na palma da mão, registrando o passado, o presente e o futuro.

Não há dúvida que nesse aspecto o aparelho celular se assemelha a gavetas, arquivos e cofres do cidadão, cujo acesso, reitera-se, é extremamente facilitado, bastando inserir uma senha (numérica, biométrica ou de reconhecimento facial) para escancarar todo o seu conteúdo.

A questão principal é se o cidadão pode manter essa senha em sigilo absoluto, não a revelando a ninguém, nem mesmo à polícia ou a um juiz de Direito, mesmo no caso de apreensão do aparelho. A resposta é positiva. O cidadão não está obrigado a fornecer essa senha a ninguém, nem tampouco a desbloquear seu celular.

Em outras palavras, caso se obtenha acesso ao conteúdo do celular, sem autorização do seu proprietário ou sem uma ordem judicial, tudo o que for ali encontrado não poderá ser utilizado como prova contra o dono do celular.

Este foi o entendimento da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, cujos ministros decidiram, por unanimidade, no julgamento do RHC 89.981, que a conversa por WhatsApp não pode ser utilizada como prova quando o seu acesso não foi autorizado pela Justiça, pois será uma invasão, além de uma prova ilegal.

O inciso X do artigo 5º da Constituição Federal brasileira veda o acesso a essas informações quando estabelece a inviolabilidade a intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas. Assim decidiu o ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca, no RHC citado, ao analisar o acesso a mensagens, sem prévia autorização judicial, concluindo que houve violação dos dados armazenados no celular e, em razão disso, determinou o desentranhamento dos autos das conversas pelo WhatsApp.

Conforme se verifica, as garantias individuais protegem as informações e dados do cidadão constantes do celular, assim, de acordo com a lei, um policial não pode, para produzir provas, obrigar ninguém a informar a senha do celular ou a desbloqueá-lo.

Dúvida persistiria nos casos em que a apreensão do celular se dá por ordem judicial, ou mesmo quando um juiz de Direito ordena (ilegalmente) que lhe seja fornecida a referida senha. Nesses casos, o cidadão estaria obrigado a obedecer à ordem judicial e, caso não o fizesse, responderia por algum crime?

A resposta é simples. Em nenhuma hipótese o cidadão estará obrigado a fornecer a senha de seu celular a quem quer que seja, nem mesmo a um juiz de Direito. O aparelho pode ser apreendido, o juiz poderá determinar a realização de perícia e a tentativa da quebra do sigilo da senha, mas não poderá ordenar ou compelir o cidadão a revelar a senha desse aparelho.

Ademais, outro fundamento para essa conclusão decorre do princípio de que ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere) e também do Pacto San José da Costa Rica (artigo 8º, 2, "g"), do qual o Brasil é signatário, que garante o direito da pessoa de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.

Diante de tudo isto, verifica-se que a não obrigatoriedade de fornecimento da senha para desbloqueio do celular visa a proteger o conteúdo da vida do cidadão, vida esta que, por um fenômeno da atualidade, encontra-se armazenada no seu celular, razão pela qual esse conteúdo precisa estar amparado e protegido pela lei.

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    é advogado criminalista, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção de São Paulo por três gestões (2004/2012), conselheiro Federal da OAB (2013/2018), presidente de honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM) e presidente da Academia Brasileira de Direito Criminal (ABDCRIM).

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