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A lei 'anticrime' e a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva ex officio

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15 de outubro de 2020, 10h01

"Faça o que quiseres, obedece a seus senhores. Eu sepultarei meu irmão!", diz Antígona a sua irmã Ismênia. O direito clama nessa passagem de Sófocles, revelando-nos a qual senhor escolheremos obedecer, o senhor direito humano, ou, o senhor direito natural, digo, não apenas sob o enfoque de crença religiosa, mas principalmente quanto a dignidade da pessoa humana [1].

Spacca
A dignidade da pessoa humana se firmou como princípio dos Estados democráticos, constando da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Constituição da República e em todos os tratados de direitos humanos assinados a partir da metade do século passado [2].

Immanuel Kant foi o primeiro teórico a reconhecer que ao homem não se pode atribuir valor, justamente na medida em que deve ser considerado como um fim em si mesmo, e em função de sua autonomia enquanto ser racional, decorrendo daí a ideia que de que o homem não poderia possuir um mero preço, pois, de fato, possui, sim, dignidade [3].

A dignidade atribuída ao ser humano deve ser vista de forma a adequar todas as normas sociais, sendo esse o preço que devemos pagar para vivermos em um Estado democrático de Direito, ou seja, o Direito Penal principalmente, pelo seu caráter sancionador de restrição à liberdade, deve ser entendido completamente vinculado aos princípios e garantias que regem as democracias, como o devido processo legal, a presunção de inocência, entre outros.

A nova Lei 13.964/2019, denominada lei "anticrime", trouxe várias alterações legislativas que comungam com o fortalecimento democrático em nosso país, pois evidenciam um maior respeito aos princípios e garantias já citados, principalmente com o princípio da dignidade da pessoa humana, principio maior de onde surgem diversas garantias cristalizadas em nossa Carta Magna como cláusulas pétreas.

A alteração legislativa realizada no artigo 282 do CPP traduz um alinhamento do legislador com princípios como a presunção da inocência e o devido processo legal, já que antes da citada alteração a legislação permitia que o magistrado decretasse ex officio a prisão preventiva.

O Ministério Público é o titular da ação penal, e a polícia judiciária é a responsável pelo procedimento administrativo investigatório, portanto, na grande parte dos casos, somente esses atores poderiam demonstrar interesse na persecução penal, mas nunca o magistrado, que deve manter-se equidistante das partes.

O parágrafo 2º do artigo 282, alterado pela lei "anticrime", trazia a possibilidade de o magistrado decretar a prisão preventiva sem haver provocação do Ministério Público ou da polícia judiciária. "As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes". A nosso ver, a antiga redação do artigo 282, nesse especial, feria o princípio do devido processo legal, em razão de causar desequilíbrio entre as partes, violando a paridade de armas, já que o que ocorria de fato era que o magistrado agia como se integrasse a acusação, demonstrando interesse no processo.

A nova redação dada ao artigo 282 veio corrigir esses rumos, colocando o magistrado distante dos interesses das partes, agindo apenas por provocação como entendemos que deve ocorrer em um processo penal com bases em um sistema democrático, em que o juiz é garantidor imparcial na aplicação das leis.

O Supremo Tribunal Federal, em julgamento realizado no último dia 6, com voto proferido pelo ministro Celso de Mello, manifestou-se pela impossibilidade de o magistrado converter a prisão em flagrante em preventiva sem a provocação da parte, pontuando o Pretório Excelso: "Impossibilidade, de outro lado, da decretação ex officio de prisão preventiva em qualquer situação" [4].

Conforme o entendimento exarado pela Suprema Corte, a Lei nº 13.964/2019, suprimindo a expressão "de ofício" que constava do artigo 282, §§2º e 4º, e do artigo 311, todos do Código de Processo Penal, proibiu, que em qualquer caso se decrete a prisão preventiva sem o prévio requerimento do Ministério Público ou da autoridade policial, vedando completamente que atue o magistrado ex officio quando tratar-se de privação cautelar da liberdade.

Em um passo além, o Supremo Tribunal, mais do que apenas aplicar a nova lei penal ao caso, ressalta que a interpretação do artigo 310, II, do CPP que prevê que o magistrado pode converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do artigo 312  deve ser realizada em consonância com a nova lei "anticrime", pois no caso o mesmo estatuto processual veda a decretação ex officio, tornando-se inviável, mesmo na audiência de custódia, a conversão, de ofício, da prisão em flagrante em preventiva, necessitando também nesse caso da provocação das partes, seja o Ministério Público, a autoridade policial ou ainda do querelante de acordo com as circunstâncias processuais.

No entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal, não poderia um ato meramente descritivo, como é o auto de prisão em flagrante, ser implicitamente entendido como manifestação da parte, "limitada a relatar o contexto fático-jurídico da prisão, permita que dele infira-se, por implicitude, a existência de representação tácita da autoridade policial, objetivando, no âmbito da audiência de custódia, a conversão da prisão em flagrante do paciente em prisão preventiva". Assim, para a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva na audiência de custódia, faz-se necessário o pedido expresso ao magistrado, que deve avaliar fundamentadamente os pressupostos do artigo 312 do Código de Processo Penal.

Como esse entendimento, afasta o Supremo Tribunal Federal a possibilidade de o magistrado converter a prisão em flagrante em preventiva sem que haja o devido pedido, analisando o desejo do legislador, e em comunhão com os princípios que regem o nosso Estado, premiaram-se as garantias processuais, equalizando-se as forças no processo, bem como retirando do magistrado o dever de agir como se parte interessada fosse.

 


[1] SÓFOCLES. Édipo Rei – Antígona. São Paulo: Martin Claret Editora, 2007.

[3] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela – Lisboa: Edições 70, 2007.

[4] Habeas Corpus 188.888 Minas Gerais.

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