Opinião

O espólio das MPs na Covid-19 — o Direito do Trabalho de exceção ou de emergência

Autor

  • Ronaldo Callado

    é juiz do Trabalho titular da 38ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro especialista em Poder Judiciário pela FGV/RJ (Fundação Getúlio Vargas) e diretor de comunicação da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho.

15 de outubro de 2020, 13h59

O mundo inteiro passa por um momento único. Uma pandemia assombra a humanidade. Trata-se de situação jamais imaginada, ainda que, há pouco mais de um século — com a gripe espanhola —, a população tenha vivido algo semelhante (porém sem que seus efeitos tenham sido sentidos pelas gerações mais recentes). Nesse viés, é importante pensar como reagiremos para além desse cenário catastrófico. E o Direito do Trabalho tem papel relevantíssimo.

É curioso pensar que há pouquíssimo tempo o Direito do Trabalho tenha passado por um grave "momento de crise" — acentuado pela Lei 13.467/2017. E agora ele se vê como um Direito do Trabalho para resolver "a crise". A famigerada reforma, é certo, retirou direitos, sob a promessa de criar empregos e reduzir a litigiosidade — promessas que não se concretizaram. Afinal, passados três anos, o nível de desemprego aumentou e o represamento da distribuição — inflado pelo temor de o empregado sair, ao final, devendo (por ter que pagar custas e honorários) — começa a dar sinais de retorno aos patamares de outrora.

E agora, no cenário atual, ele, o Direito do Trabalho, volta com força total para dar soluções aos problemas ingentes que surgem e surgirão. Nessa linha, seus operadores terão de aprender a lidar com o regramento normativo que se apresenta durante a pandemia, sem se olvidar dos preceitos constitucionais vigentes e de seus princípios que, conquanto venham sendo solapados, ainda permanecem como fundamentos desse ramo do Direito.

Até o presente momento, foram editadas várias medidas provisórias tratando de matérias relativas à temática trabalhista. Podemos citar as MPs 927, 928, 936, 944 e 946, sendo certo que, dessas, a 936 foi convertida na Lei 14.020/2020 e a 927 — para surpresa de muitos — não o foi, tendo "caducado" no último dia 19 de julho. Pode-se dizer que esses dois diplomas (a MP 927 e agora a Lei 14.020) constroem o arcabouço normativo mais consistente deste período de pandemia — adjetivados por muitos como "Direito do Trabalho de exceção ou de emergência".

A MP 927 trouxe um rol de medidas "aptas" ao enfrentamento da pandemia, sob o pretexto de manutenção dos postos de trabalho. No entanto, seu artigo 18 foi deveras polêmico ao criar a figura da suspensão contratual para qualificação profissional, sem o pagamento de nenhuma contrapartida obrigatória (salvo de forma facultativa) e pelo extenso prazo de quatro meses. Ora, dessa forma era melhor ao trabalhador, de verdade, ser dispensado, pois pelo menos conseguiria obter benefícios por sua inatividade forçada, como o seguro-desemprego. A grita foi tamanha — por diversos setores da sociedade — que o indigitado artigo 18 não sobreviveu nem 24 horas, tendo sido revogado, de forma sui generis (por outra MP, a 928) — o que não encontra amparo pela jurisprudência do STF (a discussão não necessitará progredir quanto à forma de revogação, pois a própria MP 927 acabou perdendo sua eficácia). Além da malsinada suspensão contratual, a MP 927 trouxe outras várias medidas de enfrentamento, das quais se destacam o teletrabalho, a antecipação de férias individuais e coletivas e feriados e o banco de horas com prazo mais elastecido (18 meses após o fim da pandemia que, pelo DL 6, irá até 31 de dezembro de 2020). E nem se alegue desnecessário tratar desta MP — pelo fato de ela não ter sido convertida em lei. Assim não é, pois seus efeitos irradiarão por muito tempo ainda, já que nela havia medidas que extrapolavam em demasia seu período de vigência (o banco de horas com o prazo elástico de 18 meses após o fim da pandemia é um deles). Nessa seara, faz-se mister relembrar o disposto no artigo 62, §11, da CRFB/88, no sentido de que — inexistindo decreto legislativo editado pelo Congresso Nacional (o que não aconteceu) — as medidas provisórias conservarão sua eficácia pelo tempo em que vigeram, de modo que se torna imperioso o estudo de tal norma para a resolução de diversos problemas que poderão ocorrer no futuro.

A primeira grande controvérsia gerada pela MP 927 estava em seu artigo 2º, uma vez que tal norma dava poderes ilimitados aos acordos individuais entre empregado e empregador, ressalvando apenas as normas previstas na Constituição. A referida MP manteve algumas inconsistências e inconstitucionalidades perpetradas pela reforma e trouxe outras, como a exclusão das horas extras aos teletrabalhadores (retirando-lhes o direito à desconexão, quando se sabe que só não fazem jus a tais horas se a fiscalização do labor for faticamente impossível de se realizar), a desnecessidade de exames admissionais e periódicos aos trabalhadores em momento crucial, potencializando os riscos de contaminação pelo coronavírus no ambiente de trabalho — o que se revela de todo inconstitucional, pois em confronto ao inciso XXII da Constituição, entre outras.

A audácia do Poder Executivo foi tanta que retirou da fiscalização do trabalho seu poder de autuar — deixando-o com feição meramente orientadora, além de excluir a Covid-19 como doença ocupacional (salvo se com comprovação do nexo causal). Esses dois artigos (31 e 29 da MP 927) acabaram tendo sua eficácia suspensa pelo STF em decisão do ministro Alexandre de Moraes, que vislumbrou inconstitucionalidades formais (fugiam ao escopo da MP — preservação do emprego e não se revestiam de urgência e relevância), embora as materiais também sejam evidentes (afronta ao inciso XXII do artigo 7º da CRFB/88 — redução dos riscos) e até mesmo inconvencionalidades (afronta à Convenção 155 da OIT). Ainda sobre a MP 927, causa espanto o tratamento dado aos profissionais de saúde, permitindo-se a eles jornadas superiores à já malfadada escala de 12 x 36 — sufragada pela reforma —, o que se afigura, evidentemente, inconstitucional. A situação piora inclusive porque se permitiu o labor extraordinário em ambiente insalubre, em plantões de até 24 horas trabalhadas — respeitando-se apenas o repouso semanal. Relembre-se, a propósito, que além da MP 927, outras MPs em matérias trabalhistas recentes não foram convertidas em lei, como as 808 (reforma da reforma) e 905/2019 (contrato de trabalho Verde Amarelo), tampouco sobrevieram decretos legislativos editados pelo Congresso Nacional regulando seus efeitos. A constatação de sua não conversão em lei, ao mesmo tempo que gera certo alívio (o balão de ensaio para uma eventual permanência das medidas, ainda que depois da pandemia), traz também a sensação de enorme insegurança jurídica.

Visto isso, passemos à MP 936. Tal norma acabou sendo convertida na Lei 14.020/2020 e surgiu em razão da revogação do artigo 18 da MP 927. Ela criou o programa emergencial para manutenção do emprego e renda, baseado em três elementos: a concessão de um benefício emergencial (calculado de acordo com os valores do seguro-desemprego), a redução salarial e de jornada e a suspensão contratual. Assim como a MP 927, a 936 também eclode com várias polêmicas. A maior delas, com certeza, é a relativa à possibilidade de acordo individual para redução salarial e de jornada e suspensão contratual, uma vez que o artigo 7º, VI da CRFB/88 apenas permite essas modalidades em caso de crise aguda e com a participação obrigatória do sindicato. Nesse aspecto, apesar de o STF — instado a se manifestar via diversas ações — ter rejeitado a inconstitucionalidade, faz-se necessário relembrar que não se pode admitir exceções ao regramento jurídico. Ora, não estamos sob estado de defesa ou de sítio e, nem mesmo nessas hipóteses, a Carta Magna autoriza a redução salarial. Assim, parece-me flagrante a inconstitucionalidade.

Feitas essas considerações acerca do arcabouço legislativo até esse momento da pandemia, registro que é com esse cenário de incerteza e insegurança jurídica constante (relembrando o problema que advém da não conversão em lei das medidas provisórias) que o Direito do Trabalho emergirá no cenário pós-pandemia. Seus operadores precisarão contornar os diversos imbróglios trazidos pela legislação de modo a assegurar a melhor interpretação, dando-lhe sobrevida.

Mas não é só. A política de enfrentamento do governo brasileiro à pandemia não traz paralelismo àquelas efetivadas por outras nações. A injeção de dinheiro público para manutenção dos contratos de trabalho não encontrou ressonância no Brasil, a despeito de ter ocorrido em outros países. Como ressaltei, o governo pretendeu afastar o trabalhador por quatro meses, deixando-o à míngua de qualquer contraprestação. Só depois de muito estardalhaço, inclusive na mídia, é que recuou e, com a MP 936 resolveu implementar o benefício emergencial com valores que não alcançam o salário, pois fixados de acordo com os patamares do seguro-desemprego.

Assim, a crise que já se desenhava antes da pandemia tende a se agravar. O Direito do Trabalho, sempre apontado como um agravador das crises (de todas?), será indispensável. Nessa linha, deve-se olhar com preocupação para a gama enorme de trabalhadores mais vulneráveis. Mesmo os que manterão seus empregos encontrarão dificuldades. Torna-se impositivo começar a se pensar no conceito de renda universal garantida, de modo a prover uma gama enorme da população, desvinculada do conceito de trabalho, mas de renda — como já existe em outros países (Canadá, por exemplo).

Por sua vez, a gig economy está aí, atraindo uma multidão de prestadores de serviços que não encontram amparo no alcance restritivo dos artigos 2º e 3º da CLT. É urgente alargar-se o conceito de subordinação, deslocando-se o viés subjetivo para o objetivo (estrutural), de modo a contemplar, assim, trabalhadores que prestam serviços a empresas-aplicativo (Uber, Loggi, Rappi etc.), por exemplo. Para além disso, já que o processo proposto pode ser demasiado lento, devem-se abrir as lentes para o disposto no rol de direitos previstos no artigo 7º da Lex Legum, relembrando-se que os direitos ali previstos não se restringem aos empregados (que se enquadrem no modelo celetista dos artigos 2º e 3º), mas a todos os trabalhadores urbanos e rurais.

É importante, portanto, que a força in fieri do Direito do Trabalho — conceito da saudosa professora Alice Monteiro de Barros — surja com força total. Ou seja, expanda-se para um leque maior de trabalhadores, como já o fez para os avulsos, domésticos e temporários. São essas situações, portanto, que o Direito do Trabalho deverá estar preparado para enfrentar e, com certeza, enfrentará; rechaçando, veementemente, os prenúncios apocalípticos de autores contemporâneos sobre o fim do próprio conceito de emprego que temos hoje. A tendência é que o Direito do Trabalho se aproxime ainda mais do Direito da Seguridade Social e do Direito Ambiental, possibilitando abarcar mais sujeitos até mesmo de forma transindividual.

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    é juiz do Trabalho, titular da 38ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, especialista em Poder Judiciário pela FGV/RJ (Fundação Getúlio Vargas) e diretor de comunicação da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho.

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