Opinião

A lacuna legislativa e a (im)possibilidade do acordo de não persecução civil

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15 de outubro de 2020, 9h12

Constitui princípio basilar de Direito Administrativo a indisponibilidade do interesse público, motivo pela qual a transação desses interesses estaria subordinada a autorização legal expressa. A situação torna-se ainda mais restritiva quando se coloca em discussão a moralidade e  a probidade administrativa, haja vista sua especial proteção, alçada em diversos dispositivos da Constituição Federal.

Antes da reforma realizada com a edição da Lei n° 13.964/19, a Lei de Improbidade Administrativa vedava transação, acordo ou conciliação em suas ações, embora existisse tendência legislativa em abrandar essa regra. Contudo, após a alteração retromencionada, o artigo 17, parágrafo 1o, passou a ter a seguinte redação:

"Artigo 17  A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar.
§1º. As ações de que trata este artigo admitem a celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta Lei".

Assim, o legislador optou por possibilitar a realização daquilo que foi denominado "acordo de não persecução civil", inspirado em instituto semelhante, mas constante da seara criminal. Acontece que, apesar da boa intenção do parlamento, a realização de veto presidencial sobre seus requisitos criou uma lacuna quanto ao seu alcance e condições, tendo em conta que o acordo deverá ser realizado "nos termos desta lei". Em sua redação original, o dispositivo possuía a seguinte previsão:

"Artigo 17-A  O Ministério Público poderá, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo de não persecução cível, desde que, ao menos, advenham os seguintes resultados:
I – o integral ressarcimento do dano;
II – a reversão, à pessoa jurídica lesada, da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados;
III – o pagamento de multa de até 20% (vinte por cento) do valor do dano ou da vantagem auferida, atendendo a situação econômica do agente."
§1º. Em qualquer caso, a celebração do acordo levará em conta a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse público, na rápida solução do caso."
§3º. As negociações para a celebração do acordo ocorrerão entre o Ministério Público e o investigado ou demandado e o seu defensor.
§4º. O acordo celebrado pelo órgão do Ministério Público com atribuição, no plano judicial ou extrajudicial, deve ser objeto de aprovação, no prazo de até 60 (sessenta) dias, pelo órgão competente para apreciar as promoções de arquivamento do inquérito civil.
§5º. Cumprido o disposto no § 4º deste artigo, o acordo será encaminhado ao juízo competente para fins de homologação".

Constata-se que o legislador criou um sistema de requisitos e condições que deveriam ser satisfeitos e observados, principalmente pelo proponente, para a realização do acordo. No entanto, houve veto desse artigo, pelo seguinte motivo:

"A propositura legislativa, ao determinar que caberá ao Ministério Público a celebração de acordo de não persecução cível nas ações de improbidade administrativa, contraria o interesse público e gera insegurança jurídica ao ser incongruente com o art. 17 da própria Lei de Improbidade Administrativa, que se mantém inalterado, o qual dispõe que a ação judicial pela prática de ato de improbidade administrativa pode ser proposta pelo Ministério Público e/ou pessoa jurídica interessada leia-se, aqui, pessoa jurídica de direito público vítima do ato de improbidade. Assim, excluir o ente público lesado da possibilidade de celebração do acordo de não persecução cível representa retrocesso da matéria, haja vista se tratar de real interessado na finalização da demanda, além de não se apresentar harmônico com o sistema jurídico vigente".

Em suma, a razão do veto se limitou a questionar a legitimidade exclusiva do Ministério Público para propor o acordo de não persecução civil, o que causaria certa incoerência, pois sempre existiu a possibilidade da ação de improbidade administrativa ser proposta pela pessoa jurídica interessada. Como a Constituição Federal prevê que o veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea (artigo 66, parágrafo 2o), todo o regramento do instituto acabou não vingando. Nesse sentido, apesar de sua previsão normativa, ainda está pendente a elaboração de suas condições, requisitos e alcance, complemento que somente pode ocorrer pelas vias legislativas. Adotar qualquer outro critério seria o mesmo que substituir o legislador em suas escolhas, circunstância que não se coaduna com o Estado democrático de Direito.

Como a regra é a indisponibilidade do interesse público e a atuação sempre deve pautar-se no princípio da legalidade, apresenta-se duvidosa qualquer proposta de acordo de não persecução civil sem que exista lei estipulando a margem de atuação dos órgãos legitimados. A lacuna normativa não pode servir como uma carta branca para se transigir sobre um interesse primordial.

Não se questiona o avanço do instituto, mas a ausência de regras a serem observadas, afinal, o interesse público é indisponível. Os critérios e requisitos estipulados não foram objeto da fundamentação do veto, sendo presumível crer que seriam adotados como regramento geral do acordo.

Veja-se que o mesmo ocorreu com o veto ao parágrafo 2o, do artigo 17-A, o qual teria como redação:

"§2º. O acordo também poderá ser celebrado no curso de ação de improbidade".

As razões do veto foram: "A propositura legislativa, ao determinar que o acordo também poderá ser celebrado no curso de ação de improbidade, contraria o interesse público por ir de encontro à garantia da efetividade da transação e do alcance de melhores resultados, comprometendo a própria eficiência da norma jurídica que assegura a sua realização, uma vez que o agente infrator estaria sendo incentivado a continuar no trâmite da ação judicial, visto que disporia, por lei, de um instrumento futuro com possibilidade de transação". Dessa forma, a opção do legislador foi vetar a propositura desse acordo com o processo já em trâmite, por entender que contraria o interesse público.

Em ambas as situações, fica evidente que as razões políticas para a regulamentação do instituto foram claras e encontram-se à disposição para qualquer pessoa buscá-las. Ocorre que, atualmente, a atividade criativa dos operadores do Direito tem deixado de lado a importância das escolhas políticas tradicionais, substituindo-as por uma versão solipsista daquilo que se considera mais justo ou injusto. Talvez seja hora de repensar a interpretação jurídica e considerarmos, também, os argumentos e debates que ocorrem no locus legítimo, algo próximo a uma interpretação originalista.

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