Interesse Público

O Abono de Permanência após a Reforma da Previdência (EC 103/2019)

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

15 de outubro de 2020, 8h00

Spacca

O abono de permanência, previsto no parágrafo 19 do Artigo 40 da Constituição Federal, recebeu na Emenda Constitucional 103/2019 disciplina (a) desuniforme na Federação; (b) incompleta, com lacuna de transição para os servidores estaduais, municipais e distritais; (c) aparentemente contraditória com o regime constitucional contributivo dos agentes civis na inatividade.

É preciso ser franco: essa síntese esquemática, embora severa, é ainda generosa e otimista. A depender do desenvolvimento infraconstitucional, as alterações promovidas na EC 103/2019 podem comprometer a própria identidade jurídica do instituto e esvaziar a sua eficácia como incentivo. São modificações que exigem reflexão e filtragem constitucional para serem adequadamente aplicadas e compatibilizadas com o inteiro regime em que foram encartadas.    

Breve história de um instituto controverso  
O artigo 3º da Emenda Constitucional 20/98, em seu parágrafo 1º, criou incentivo pecuniário de livre adesão voltado a estimular o adiamento da aposentadoria pelos servidores titulares de cargo público.

Na origem, o incentivo consistia em específica imunidade pessoal temporária (equivocadamente denominada “isenção” pela Emenda 20/98). Nesse formato, a Constituição excluía da obrigação de contribuir para a previdência própria os agentes que completassem os requisitos de aposentadoria voluntária e optassem por permanecer no serviço ativo, protraindo o momento da aposentadoria. O incentivo cessava no exato momento em que era implementada a aposentação. Consistia em limite ao poder de tributar da União, Estados e Municípios, uniforme na Federação, equivalente no tempo ao valor da contribuição previdenciária devida pelo agente, sendo autoaplicável, dispensando inclusive o requerimento formal do agente público.

Essa arquitetura jurídica original, sob a forma de imunidade contributiva temporária, reduzia os recursos da previdência, agravava a contabilidade do regime, sem onerar diretamente o principal beneficiário da permanência em atividade do agente apto à aposentadoria –  o Poder Público, que deixava de repor a força de trabalho, remunerar integralmente um novo agente para o exercício da correspondente função, além de investir na formação do novo capital humano ao longo do tempo.

A partir da Emenda Constitucional 41/2003, o instituto sofre reformulação e passa a ser tratado como abono de permanência, denominação controversa, pois considerada por alguns como tendo natureza jurídica de “indenização” (reparação pela permanência em serviço) e por outros como “vantagem remuneratória” (contraprestação pela permanência em serviço).[[i]]

Nessa nova configuração, os agentes públicos, mesmo após o preenchimento dos requisitos para a aposentadoria, permaneciam obrigados a contribuir para o regime próprio de previdência, mas recebiam a devolução integral do valor vertido à título de abono de permanência.

Sob esse formato, o incentivo não mais reduzia as receitas da previdência, sendo inteiramente coberto pelo Tesouro público correspondente. O abono, conquanto teoricamente equivalente ao valor da contribuição previdenciária, encarado como vantagem remuneratória passou a sofrer redutores de abate-teto (limite constitucional de retribuição) e a incidência de imposto de renda.[[ii]]

Embora o incentivo pecuniário aparentasse nesse novo regime ser menos vantajoso, na prática ganhou importância com a EC41/2003, pois foi a partir desta emenda que os servidores públicos estatutários passaram a contribuir na inatividade, tornando o abono ainda mais atrativo. Na verdade, para os servidores titulares de cargo público que recebiam retribuição superior ao teto do regime geral de previdência social (base acima da qual passou a incidir a contribuição do inativo), o período entre a aquisição do direito à aposentadoria voluntária e a efetiva decisão de aposentar passou a ser o único período sem o ônus financeiro efetivo da contribuição. Algumas pesquisas demonstraram que a eficácia do abono de permanência nesse novo contexto normativo conseguia reter em atividade ao menos 20% da força de trabalho apta a requer voluntariamente a aposentadoria.[[iii]] Em algumas carreiras, o benefício obteve repercussão ainda maior, reduzindo significativamente a renovação e movimentação no topo das carreiras.[[iv]] 

A Emenda Constitucional 103/2019 alterou o parágrafo 19 do Artigo 40 da Constituição Federal, porém manteve a denominação de “abono de permanência” para o incentivo. No entanto, deixou de assegurar expressamente a integralidade na devolução da contribuição e de assegurar a própria continuidade do instituto, retirando a autoaplicabilidade da norma constitucional correspondente, característica presente em todas as emendas constitucionais anteriores.

O Abono de Permanência após a EC 103/2019
A nova redação do parágrafo 19 do Artigo 40 da Constituição Federal remete para a lei de cada ente federativo a decisão sobre a concessão ou não de incentivo financeiro pelo adiamento da inativação  de agentes públicos aptos à aposentadoria, verbis:

"Artigo 40 [….] parágrafo 19. Observados critérios a serem estabelecidos em lei do respectivo ente federativo, o servidor titular de cargo efetivo que tenha completado as exigências para a aposentadoria voluntária e que opte por permanecer em atividade poderá fazer jus a um abono de permanência equivalente, no máximo, ao valor da sua contribuição previdenciária, até completar a idade para aposentadoria compulsória."

Saliente-se que, ao mesmo tempo em que delegou para o plano infraconstitucional a matéria, o reformador estabeleceu norma nacional segundo a qual o valor do abono poderá equivaler, no máximo, ao valor da contribuição previdenciária, o que fixa um teto sem fixar um piso mínimo para a devolução da contribuição paga ou patamar seguro a conferir previsibilidade ao incentivo.  Cada Estado e Município aparentemente pode estabelecer, por lei, bases próprias para o incentivo de permanência ou sequer prevê-lo e, ademais, pode alterá-lo ao longo do tempo.

Para os servidores da União, a EC103/2019 estabeleceu regra transitória específica (Artigo 3º, parágrafo 3º). Por esta norma, até que entre em vigor a lei federal de que trata o parágrafo 19 do artigo 40 da Constituição, o servidor público federal que tenha cumprido os requisitos para aposentadoria voluntária (inclusive pelas regras de transição revogadas para o plano federal) e optar por permanecer em atividade fará jus a um abono de permanência equivalente ao valor da sua contribuição previdenciária, até completar a idade para aposentadoria compulsória. É dizer: a Emenda 103/2019 reconheceu direito subjetivo ao abono (não mera faculdade) aos servidores federais e a integralidade no ressarcimento da contribuição vertida.

A Constituição reformada deixou de prever norma transitória relativa ao abono de permanência dos servidores estaduais, municipais e distritais. Omissão lamentável, que apenas agravou a insegurança jurídica em matéria previdenciária, pois toda a normatividade anterior alterada era norma de reprodução obrigatória. Entendo que essa omissão deve ser resolvida com a aplicação abrangente do disposto no Artigo 36 da EC 103/2019, prolongando-se a vigência das normas anteriores enquanto lei de iniciativa privativa do respectivo Poder Executivo não “referende integralmente” a revogação das normas anteriores e adapte o corresponde regime próprio às normas constitucionais nacionais.

Entretanto, parece equívoco atribuir ao legislador infraconstitucional estadual, municipal e distrital flexibilidade absoluta na configuração do instituto do abono de permanência. É necessário interpretar o regime previdenciário constitucional com um mínimo de coerência. Normas antigas (não revogadas) e novas normas constitucionais introduzidas pela EC 103/2019 preservam a dimensão contributiva do regime previdenciário de modo a caracterizar sinalagma especial, ou regime de equidade no financiamento, com vínculo de contrapartida entre encargos e benefícios (artigo 194, V, e parágrafo 5º do artigo 195, da CF), mitigado pelo princípio da solidariedade intergeracional. A contribuição previdenciária não é imposto, nem pode ser exigida em termos estritamente comutativos (como nas taxas), pois permite redistribuição entre gerações, mas deve guardar ao menos equidade na solidariedade e igualdade no modelo de contribuição.

Tendo presente essas coordenadas, considero correta a decisão do Supremo Tribunal Federal ao consignar que “a dimensão contributiva do sistema é incompatível com a cobrança de contribuição previdenciária sem que se confira ao segurado qualquer benefício, efetivo ou potencial”. Além disso, que “não é possível invocar o princípio da solidariedade para inovar no tocante à regra que estabelece a base econômica do tributo” (STF, RE 593068/SC, Relator: Min.  ROBERTO BARROSO, DJE 22/03/2019 – ATA Nº 34/2019. DJE nº 56, divulgado em 21/03/2019).

Dessas considerações, dessume-se que o legislador local pode decidir não instituir o abono de permanência, mas não pode decidir quem recebe ou não o benefício (violando o princípio da igualdade), desconsiderar o caráter de incentivo inerente ao abono de permanência (deixando de reconhecer a integralidade ao menos na faixa imune à contribuição na inatividade) ou recusar a restituição com valor equivalente à contribuição aos agentes que, gozando do direito à integralidade, não venham a perceber, em virtude da contribuição após o período aquisitivo, qualquer benefício, efetivo ou potencial.

Seria contraditório que o poder reformador renovasse o programa normativo de uma norma de incentivo à permanência em atividade dos agentes estatutários aptos à aposentadoria e liberasse o legislador infraconstitucional a esvaziar esse mesmo programa de incentivo, inserindo os agentes que optassem pela permanência no serviço ativo em situação jurídica mais gravosa do que aqueles que optassem pela imediata inativação.

 Esses limites inerentes à arquitetura do regime previdenciário constitucional ficam mais claros quando aplicados em concreto. Talvez a Lei baiana nº 14.262, de 13 de maio de 2020, possa indicar um exemplo didático do que não fazer.  

A Lei nº 14.262/2020: lei baiana do abono de permanência
A Lei Baiana 14.262/2020, invocando a nova redação do Artigo 40, parágrafo 19, da Constituição, distinguiu em dois grupos os servidores estaduais: a) os que percebiam o abono de permanência ou o adquirissem até data de sua publicação; e b) os demais servidores. Para os agentes do segundo grupo, suspendeu novas concessões de abono de permanência até 31 de dezembro de 2021, autorizando novas concessões do referido abono apenas a partir de 1º de janeiro de 2022.

Previu ainda, em seu artigo 3º, parágrafo1º, que as futuras concessões de abono, no âmbito de cada Poder e do Ministério Público, não poderiam ultrapassar um limite de 10% (dez por cento) em relação a número de servidores efetivos em atividade, omitindo-se de definir qual o critério material deverá adotar o administrador para aceitar para uns e recusar para outros a concessão do direito ao abono de permanência, indicando apenas na composição  da “ordem sucessiva de preferência” os aspectos formais da “data do implemento dos requisitos para a aposentadoria ou reserva remunerada voluntárias” e “a idade mais avançada”. Não estabeleceu tampouco uma regra de desempate ou de solução de conflito de critérios.

Na prática, a lei estadual assegurou a integralidade do abono para os servidores que houvessem adquirido o direito antes de sua publicação e ao mesmo tempo recusou a conferir eficácia, qualquer eficácia, ao fato de novos agentes completarem os requisitos de inativação e permanecerem no serviço ativo. Optou por diferenciar servidores, a modo de tudo ou nada, excluído de forma não isonômica servidores que implementassem os mesmos requisitos constitucionais de aposentadoria.

Saliente-se que, se o abono é vantagem remuneratória, falece competência ao Poder Executivo para interferir na disciplina da remuneração devida a membros da magistratura, do Ministério Público e da Defensoria, cuja iniciativa legislativa em matéria remuneratória é privativa da respectiva cúpula dirigente. Implementados os requisitos fáticos e jurídicos, recusar a eficácia ao abono àqueles que completarem os requisitos estabelecidos em lei para o gozo do direito é violar a irredutibilidade dos subsídios e instalar desequiparação entre titulares de cargos idênticos ante idêntica situação.

A Constituição Federal autoriza que os Estados e Municípios estabeleçam requisitos para concessão do direito ao abono, bem como o próprio direito ao abono, mas não que isolem em grupos distintos agentes que preencham os mesmos requisitos, em situação equivalente, sem critérios uniformes, impessoais e objetivos para a graduação da vantagem remuneratória, sob pena de inconstitucionalidade flagrante e agressão ao princípio da igualdade, da irredutibilidade, da razoabilidade, com violação da própria lógica de incentivo da vantagem.  A competência normativa dos estados e municípios permanece vinculada ao inteiro sistema constitucional e deve considerar o regime de contribuição na inatividade para comparar com a situação dos ativos, assegurando um sentido útil para o incentivo de permanência dos agentes em atividade.  

Conclusão
Previdência é o único direito funcional exigente de contribuição patrimonial do agente público e ao mesmo tempo é relação jurídica entretida em horizonte abrangente de tempo. Por isso, abriga decisões intertemporais relevantes. Poupar para a velhice ou aproveitar agora recursos disponíveis para realizar objetivos enquanto há saúde e vigor? Requerer a aposentadoria imediatamente após reunir os requisitos necessários ou aguardar em atividade outro melhor momento? Essas escolhas intertemporais consideram vieses e a situação econômica de cada indivíduo, mas também consultam os incentivos do sistema jurídico e econômico. Entre esses incentivos tem cumprido um importante papel o abono de permanência.

No Brasil, lamentavelmente, esses incentivos e estímulos (cutucadas suaves ou nudges),[[v]] que definem em parte o contexto ou a arquitetura das escolhas, são alterados em intervalos estreitos de tempo e não raramente deixam de estabelecer normas adequadas de transição para resguardar a previsibilidade e a confiança que devem estar na base de qualquer relação securitária de longo prazo.

É difícil ser previdente e exercer com consistência escolhas intertemporais quando a arquitetura jurídica previdenciária torna o futuro deliberadamente imprevisível e avesso ao planejamento de médio e longo prazo. Embora essa mutação constante possa ser a escolha política do gestor, não parece prestigiada pela ordem jurídica a insegurança jurídica total, sem regime de transição, sem estudos técnicos e atuariais que fundamentem a alteração normativa, algo que hoje se exige de qualquer ato normativo simples, inclusive infralegal (Artigo  23, LINDB). A modificação no regime do abono de permanência pela EC 103/2019 mostra bem que há reformas impensadas, ou mal pensadas, que precisam ser interpretadas em termos abrangentes e com visão sistêmica.


NOTAS

[i] O STF, em diversos acórdãos, declarou que a controvérsia a respeito da incidência do imposto de renda sobre as verbas percebidas a título de abono de permanência é de natureza infraconstitucional, havendo ausência de repercussão geral. (Cf. RE 688001 RG/RS, Rel. TEORI ZAVASCKI,  DJE de 14/11/2013; ARE 665800 AgR, Rel. TEORI ZAVASCKI,  Segunda Turma, DJe 20/08/2013;  ARE  691857  AgR,  Rel.  Min.  CÁRMEN LÚCIA,  Primeira Turma,  DJe  19/09/2012). Por força dessa orientação, a matéria foi pacificada pelo STJ, que decidiu pela natureza remuneratória da vantagem, validando assim a incidência de imposto de renda sobre o abono de permanência (Cf. REsp 1.192.556/PE, Rel Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe 06/09/2010; AgRg no REsp 12844402, DJe 20/10/2015).

[ii] Embora qualificado como “vantagem remuneratória”, o abono de permanência não integra a base de cálculo da contribuição previdenciária nem pode ser considerado nos benefícios previdenciários (Artigo 4º, parágrafo 1º, IX, da Lei 10.887/04;  artigo 1º, XI, da Lei  9.717/98, com a redação dada pela Lei nº 10.887, de 2004).

[iii] Cf., por exemplo, MARTINS, Marcílio Rodrigues; FRANÇA, Iermack Maduro; MIRANDA, Ludiany Barbosa Sena; FERREIRA, Jander Ângelo Diogo.  Abono permanência na composição da força de trabalho e seus impactos na redução dos gastos públicos com pessoal: o caso da Universidade Federal de Viçosa. Disponível na internet na página: https://www.locus.ufv.br/handle/123456789/19861 [Acesso em 14/10/2020]

[iv] O abono de permanência, embora referido na EC 41/2003 expressamente ao agente que adiasse  a aposentadoria voluntária comum, passou também a ser admitido para os agentes que completavam os requisitos de aposentação pelo artigo 3º, da EC 47/05 (TCU, Acórdão 1.482/12) e para os agentes beneficiários da aposentadoria voluntária especial estabelecida no artigo 40, parágrafo 4º, da CF (STF, ARE 782.834- AgR, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe de 26/5/2014; ARE 905.116-AgR, Rel. Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 28/9/2015; ARE 904.530-AgR, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJe de 10/12/2015; Tema 888, Leading Case: ARE 954408, Min. TEORI ZAVASCKI ,  DJE nº 77, divulgado em 20/04/2016).

[v] Sobre o tema, o sedutor e bem humorado THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge: Como tomar melhores decisões sobre saúde, dinheiro e felicidade. Trad. Angelo Lessa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019.

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    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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