Opinião

Ainda faz sentido falar em autos conclusos?

Autores

  • João Pedro de Souza Mello

    é doutorando e mestre em Direito pela UnB e sócio do Aguiar e Mello Advogados.

  • Rodrigo Nery

    é doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) (com ênfase em Direito Processual Civil) pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq/UnB Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) integrante e orador da primeira equipe da UnB na 1ª Competição Brasileira de Processo (CBP) e advogado.

14 de outubro de 2020, 12h35

O processo é eletrônico. Fato novo. Surge a necessidade de tutela de urgência incidental. Peticiona-se. Solicita-se audiência com o magistrado.

"Doutor, o juiz não tem como atender o senhor porque os autos não estão conclusos."

"Então a senhora pode fazê-los conclusos?".

"Está com prazo aberto para a outra parte."

Outro caso: cumprimento de sentença. Impugnação dos cálculos. Juiz rapidamente remete os autos para a contadoria judicial. O exequente peticiona pedindo prosseguimento da execução quanto à parcela incontroversa. Sem decisão. O advogado do exequente tenta falar com o magistrado. O servidor o informa de que não poderá haver decisão sobre a petição porque — adivinhem — os autos, além de não estarem conclusos, estão na contadoria.

Os autos físicos só podem estar em um lugar de cada vez, o que justifica uma série de normas para lidar com essa realidade: prazos dobrados, porte de remessa e retorno, necessidade de comunicação de interposição de agravo. Tudo são coisas que não se aplicam a um processo que, pela natureza digital de seu suporte, pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo: no gabinete do juiz, na contadoria, no escritório do advogado.

Certos obstáculos são reais quando os autos são físicos, mas não se justificam quando o suporte do processo é digital. Em rigor, não há sequer remessa dos autos eletrônicos — a remessa é a designação, por figura de linguagem, de outro procedimento: de comunicação, de autorização, mas não de movimentação física.

Em outras palavras: no processo físico, o juiz efetivamente, faticamente, não tem como proferir decisão em processo que não esteja em sua mesa. Nos autos eletrônicos, embora a conclusão sirva para a organização interna do gabinete, e seu momento no tempo sirva até de suporte fático a normas jurídicas como a do artigo 12 do CPC, sua ausência não constitui obstáculo real à prestação jurisdicional.

Então por que não usar a tecnologia para desburocratizar a vida e prestigiar a tempestividade da tutela jurisdicional? É possível decidir em autos que não estão conclusos. É possível fazer duas coisas ao mesmo tempo no mesmo processo.

Apesar das várias facilidades, o processo eletrônico tem, de modo geral, burocratizado a atuação do advogado.

Para protocolar uma petição inicial no processo físico, vai-se ao balcão. Tudo o que precisa ser dito está dito no próprio documento e em seus anexos. No processo eletrônico, é preciso preencher formulários, categorizar arquivos, classificar a demanda.

Às vezes a lei é adaptável e o sistema é inflexível. O artigo 319, §2º, do CPC, por exemplo, diz que o autor, em vez de indicar um elemento da qualificação do réu de que não tenha conhecimento, pode requerer diligências para obtê-lo; ou mesmo que esse elemento poderá ser dispensado, se for possível citá-lo mesmo assim (§1º do mesmo artigo). Mas nos formulários de muitos sistemas não é sequer possível ajuizar a inicial sem preencher esses dados. Ou mesmo, neste país de tantos lugares sem CEP, não permitem que o endereço seja preenchido se não corresponder a um endereço reconhecido pelo próprio sistema como tal.

Os sistemas também querem nomes e classificações. A ação, esse direito abstrato, genérico, conferido a todos indistintamente — e pedem-lhe um nome! O professor Cândido Dinamarco já alertou que não se adjetiva a ação com critérios do Direito material [1]; mas os sistemas não ligam para essas questões doutrinárias. Também querem saber o "assunto" — em uma lista fechada de categorias, e nem sempre é assim fácil, assim simples a vida dos direitos.

Como as máquinas não conseguem ler as petições (exceto, ao que parece, para inadmitir recursos), onde está tudo bem explicadinho, vai lá o advogado preenchendo o formulário mais ou menos, tentando ajudar a categorização, tentando dar respostas que o sistema aceite. Desmembrando arquivos para atender a esses limites de tamanho, tão restritivos do acesso à Justiça e da ampla defesa.

O sistema de um certo tribunal até tenta emular dificuldades do processo físico: em horário de plantão judicial, o sistema só permite classificações que são matéria de plantão. Protocolo normal só em horário de expediente, como no balcão.

Haverá um dia, comentou conosco um colega advogado, em que a própria petição será em forma de formulário. Haverá um campo para o pedido, outro para a causa de pedir próxima, seletores de lista fechada para os tipos de prova.

Nós devemos caminhar na direção inversa: a tecnologia deve servir para desburocratizar a vida e o processo, não para burocratizá-los mais. E comecemos por não reproduzir no processo eletrônico as dificuldades inerentes ao processo físico. Tudo o que temos a perder é a piada do estagiário que, ouvindo do servidor que o processo estava concluso, voltou ao escritório e disse ao chefe que o processo tinha acabado.

 


[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Vocabulário do processo civil. ed. 2. São Paulo: Malheiros, 2014.

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