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ICMS sobre gás natural importado: quem pode ser seu sujeito ativo?

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

14 de outubro de 2020, 10h10

Spacca
Estão na pauta do Supremo Tribunal Federal desta semana as Ações Cíveis Originárias nºs 854, 1076 e 1093, propostas pelo Estado do Mato Grosso do Sul em face dos Estados de São Paulo, de Santa Catarina, e do Rio Grande do Sul, respectivamente, que versam sobre importante conflito interestatal no nosso federalismo, relativamente à importação de gás natural da Bolívia, para decidir se o Estado do Mato Grosso do Sul seria o sujeito ativo do ICMS (art. 155, II, e § 2°, IX, “a” da CF), por ser o destinatário da mercadoria e deter a legitimidade ativa para cobrança do ICMS sobre o estabelecimento da Petrobras situado em corumbá/MS, de onde segue para os demais Estados da Federação, nas etapas de comercialização.

Não há dúvidas sobre a importância do tema sob análise e a vida econômica das empresas e pessoas que demandam o consumo do gás natural importado. A depender da decisão tomada pelo Plenário do STF, o resultado poderá se converter em expressivo aumento do seu preço no consumidor final.

De modo inconteste, a localização espacial do estabelecimento da Petrobras, encarregado da importação de gás natural, tem força de único elemento de conexão a atrair a competência tributária do Estado do Mato Grosso do Sul para exigir o ICMS-Importação. Por isso, o Estado do Mato Grosso do Sul (MS) defende ser o único titular da cobrança do ICMS incidente sobre a importação do gás natural por meio do Gasoduto Brasil-Bolívia (“GASBOL”), mediante interpretação conforme da legislação local, em face da alínea “a”, do inciso IX, do §2º, do art. 155 da CF.

O direito regulatório do gás natural, como ordenado pela Agência Nacional do Petróleo – ANP, não deixa espaço para qualquer opção entre os contribuintes quanto à forma de contratação. Portanto, tem-se motivo inconteste de “distinguishing” em relação à Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal relativamente às operações de importação por conta e ordem (Tema 520), o que deve ser reconhecido pela diferenciação de pressupostos funcionais (importação direta), subjetivos (importador qualificado pela regulação e proibido de realizar operações de comercialização) e materiais (localização do estabelecimento no mesmo estado da medição do gás que ingressa no território nacional para transferência de domínio em favor da Petrobras).

A questão posta ampliou-se em relevo diante da decisão do STF no ARE 665.134/MG publicada em 19 de maio de 2020, que define o Estado competente para cobrar o ICMS-importação nas operações por conta e ordem e por encomenda. Nesta hipótese, o STF fixou a seguinte tese, com repercussão geral, no Tema 520: “O sujeito ativo da obrigação tributária de ICMS incidente sobre mercadoria importada é o Estado-membro no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação que deu causa à circulação da mercadoria, com a transferência de domínio”.1

Vale destacar, de plano, a minuciosa separação feita pela Corte entre as distintas operações de importação, para confirmar que sujeito ativo da obrigação tributária de ICMS será sempre o Estado-membro no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação que deu causa à circulação da mercadoria, com a transferência de domínio (Tema 520).

De se ver, a Jurisprudência do STF acerca dos critérios de identificação da sujeição ativa do ICMS diante de importações indiretas não se aplica à espécie, por se tratar de atividade submetida ao poder regulatório da ANP (i) e porque o gás natural é trazido para o País mediante “importação direta” (ii), logo, não se relaciona com as opções contratuais de “trading companies”, relativas a operações por conta e ordem. Isto porque as importações em tela são diretamente realizadas pelo contribuinte, com estabelecimento localizado no território sul mato-grossense e sob regime totalmente regulado pela ANP.

Claramente, tem razão o Estado do MS. A entrada do gás natural boliviano, no território nacional, dá-se em Corumbá-MS, pela “Estação de Medição” da Petrobras. E, a partir da medição realizada, concretiza-se a nacionalização do gás, pelo desembaraço aduaneiro, que se opera em plena coerência com as regras da Receita Federal do Brasil, como é o caso da Instrução Normativa SRF nº 116, de 31.12.2001, que estabelece os procedimentos para o despacho aduaneiro de importação de gás natural por meio de dutos.

Importante compreender a descrição deste cenário para identificar os agentes atuantes na cadeia de importação de gás natural via Gasoduto Brasil-Bolívia, a saber: a Petrobras (carregador e importador); a TBG (transportador); e as companhias estaduais de distribuição de gás canalizado (distribuidores locais). Cada qual sujeita-se a regulamentação própria, encontrando-se os dois primeiros sob a esfera regulatória federal, por meio da ANP; e, as últimas, na esfera estadual, pelas agências reguladoras locais.

O estabelecimento da TBG em Corumbá-MS (EMOP) é muito mais do que um mero entreposto do gás natural boliviano. O Transportador (TBG), ao promover a medição do volume do gás importado, identifica para o importador, que é o estabelecimento da Petrobras, a quantidade do gás natural que se nacionaliza e que passa à titularidade deste estabelecimento. Com isso, mediante a declaração de importação (DI) e desembaraço aduaneiro, realizado pelo seu estabelecimento local, deverão ser recolhidos os tributos incidentes, inclusive o ICMS-Importação.

No Brasil, a sujeição ativa tributária decorre do arquétipo constitucional de atribuição de competências aos entes federativos, União, Estados, Distrito Federal e Municípios. É do poder legislativo destas que deriva a imputação do sujeito ativo, para o exercício do direito subjetivo na cobrança do crédito tributário.

Na atual redação do art. 155, § 2º, IX, “a”, da Constituição, o ICMS-Importação incidirá sobre “a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior”. Trata-se de materialidade distinta das demais modalidades do ICMS, com regime constitucional e regra matriz típica, segundo as diferenciações que a evolução e a dinâmica das relações econômicas o impõem.

De se ver que a norma do art. 155, § 2º, IX, “a”, da CF, ao estabelecer o critério espacial das normas de incidência do ICMS-Importação, funciona com eficácia de bloqueio originária do concurso de competências ou de prevenção dos conflitos de competência entre os Estados federados.

O ICMS-Importação grava a “entrada” da mercadoria, no caso, do gás natural, segundo o estabelecimento de entrada, no caso, a estação de medição de Corumbá-MS. Em vista disso, distingue-se do ICMS-Mercadoria, que passará a incidir nas operações subsequentes, com a “saída” do gás natural, na continuidade do fluxo do duto, após o ponto de medição. E não se confundem, ambos, com a exigência do ICMS-Transporte, o que no caso se opera pela prestação de serviço de transporte dutoviário.

Destarte, o ICMS-Importação é devido à Unidade Federada onde se localiza o estabelecimento do destinatário jurídico da mercadoria, que será sempre aquele no qual elas ingressam fisicamente. Isto por força do critério da territorialidade, expressamente ratificado pelo art. 155, § 2º, IX, “a”, in fine, da Constituição. Com isto, a Constituição conferiu ao legislador complementar definir o momento da incidência tributária. E a alínea “d” do inciso I do art. 11 da Lei Complementar nº 87/1996, estatui o critério espacial (o local da entrada física da mercadoria importada) do ICMS-Importação.

Quando a lei complementar menciona que o local da operação é o do “estabelecimento onde ocorre a entrada física” do bem ou mercadoria, deve-se entender que o ICMS-Importação compete ao Estado no qual se verifica essa entrada, que corresponde justamente ao ente federado onde está domiciliado ou estabelecido o importador do gás natural. Mais razão ainda quando a operação queda-se submetida a direito regulatório da ANP sobre o qual as partes não dispõem de qualquer possibilidade de mutação dos seus termos.

Ora, a Petrobras não age por conta e ordem de supostos reais adquirentes. Não se opera uma relação jurídica de prestação de serviço, para que se verifique uma importação entre o exportador e o adquirente final, cumprindo exigências negociais, por contrato. E a TBG tampouco age como se fosse um equivalente de trading. Fosse assim, até se justificaria argumentar o emprego da Jurisprudência do STF firmada até o momento. Contudo, não é isso o que ocorre. A Petrobras promove importações diretas e a TBG apenas transporta o gás natural.

A medição e a mudança da cadeia de custódia sobre o gás natural, ocorridas no Município de Corumbá-MS, constituem o fato jurídico tributário do ICMS-Importação, assim como os pressupostos para a tributação do ICMS-Mercadorias e do ICMS-Transporte. Logo, a localização do estabelecimento da Petrobras fixa o elemento de conexão espacial a atrair, para o caso, com exclusividade, a capacidade tributária ativa do Estado do Mato Grosso do Sul.

E como isto se verifica no território do Estado de Mato Grosso do Sul, exatamente pelo estabelecimento identificado pela “Estação de Medição Operacional” de Corumbá-MS, não pode restar qualquer dúvida sobre o local da “entrada física” do gás natural no território brasileiro. Eis aí, portanto, o local do fato gerador do ICMS-Importação. Tudo conforme do art. 11, I, “d” da LC nº 87/96, em consonância com as prescrições constitucionais dos arts. 155, § 2º, IX, “a”, art. 146, I, 155, § 2º, XII, “d” da CF.

Diante disso, temos a seguinte síntese:

  1. o critério espacial do fato gerador do ICMS-Importação do gás natural é o local das operações, admitido este como o “estabelecimento onde ocorrer a entrada física”, o que se verifica com a entrada na estação de medição de Corumbá-MS, onde se realiza o desembaraço aduaneiro e onde se localiza o estabelecimento do importador, no caso, a Petrobras.

  2. a condição para aperfeiçoamento do fato acima descrito, para permitir a exigibilidade do ICMS, é que se verifique um ato de importação, identificado no momento do desembaraço aduaneiro (LCP 87/96: “art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento: (…) IX – do desembaraço aduaneiro de mercadorias ou bens importados do exterior”). E isto efetivamente ocorre.

  3. por “distinguishing” (Tema 520), o regime das importação do gás natural encontra-se regulado por atos da ANP, de modo vinculado, e não se pode adotar qualquer critério para determinar os efeitos que somente tem sentido nas relações contratuais entre particulares, sobre a operação se realizar “por conta e ordem” ou “por encomenda”, porque o regime previsto pela LC nº 87/96 faz preponderar na espécie o ingresso físico da mercadoria.

  4. o sujeito passivo (Petrobras) será definido pelo “estabelecimento onde ocorrer a entrada física” da mercadoria, ou como prescreve o inciso I, do art. 4º, da LC nº 87/96, o sujeito que “importe mercadorias ou bens do exterior, qualquer que seja a sua finalidade”, logo, sem qualquer vínculo com a situação negocial existente entre ele e os destinatários finais da mercadoria.

Em conclusão, o Estado do Mato Grosso do Sul tem direito, em relação às operações com o gás natural importado da Bolívia, a figurar no polo ativo das obrigações tributárias do ICMS-Importação (nas entradas do gás proveniente da Bolívia); e do ICMS-Mercadoria (internamente, no território nacional), com alíquota de operação interestadual (art. 155, § 4º, II da CF) ou com alíquota integral quando o gás for destinado a não contribuinte do ICMS (art. 155, § 4º, III da CF). mas não só. Adicionalmente, terá direito legítimo à cobrança do ICMS-Transporte, incidente sobre o transporte dutoviário do gás natural que se realiza pelas operadoras.


1 RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS – ICMS. IMPORTAÇÃO. ART. 155, §2o, IX, “A”, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. ART. 11, I, “D” E “E”, DA LEI COMPLEMENTAR 87/96. ASPECTO PESSOAL DA HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA. DESTINATÁRIO LEGAL DA MERCADORIA. DOMICÍLIO. ESTABELECIMENTO. TRANSFERÊNCIA DE DOMÍNIO. IMPORTAÇÃO POR CONTA PRÓPRIA. IMPORTAÇÃO POR CONTA E ORDEM DE TERCEIRO. IMPORTAÇÃO POR CONTA PRÓPRIA, SOB ENCOMENDA. (…)
4. Pela tese fixada, são os destinatários legais das operações, em cada hipótese de importação, as seguintes pessoas jurídicas: a) na importação por conta própria, a destinatária econômica coincide com a jurídica, uma vez que a importadora utiliza a mercadoria em sua cadeia produtiva; b) na importação por conta e ordem de terceiro, a destinatária jurídica é quem dá causa efetiva à operação de importação, ou seja, a parte contratante de prestação de serviço consistente na realização de despacho aduaneiro de mercadoria, em nome próprio, por parte da importadora contratada; c) na importação por conta própria, sob encomenda, a destinatária jurídica é a sociedade empresária importadora (trading company), pois é quem incorre no fato gerador do ICMS com o fito de posterior revenda, ainda que mediante acerto prévio, após o processo de internalização.” (STF – ARE 665.134/MG, Rel. Min. Edson Fachin, DJE 19/05/2020)

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    é advogado, professor titular de Direito Financeiro e livre-docente de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

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