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O aniversário da Constituição e os avanços econômicos do período democrático

Autor

  • Ricardo Prado Pires de Campos

    é procurador de Justiça aposentado presidente do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático e professor de Direito com mestrado em Processo Penal. Foi promotor do júri por uma década tendo atuado no 1º Tribunal do Júri de São Paulo.

13 de outubro de 2020, 17h17

Neste mês, nossa Constituição Federal completou mais um ano de vigência. É tempo de comemorar. Todavia, se olharmos para as manchetes dos jornais, talvez sejamos tomados de certo pessimismo. As notícias nunca são aquelas que gostaríamos, e isso ocorre porque as notícias nos trazem os problemas a resolver. Aqueles já vencidos, aqueles que nos dariam motivos para comemorar estão no passado. Foram resolvidos. 

A comemoração ocorre sempre com a conquista assegurada; e nós completamos 32 anos de história sob a égide da atual Constituição. Com muitas emendas é verdade, mas manutenção e correção de rumo são constantes ao longo da vida. Ninguém escapa.

Embora a democracia seja um valor político e cultural, um conceito jurídico, ela é diretamente afetada pelo desempenho econômico da nação. Para quem tem dinheiro para escolher o cardápio de suas refeições, o direito de escolher importa. Para quem recebe o prato pronto, a liberdade de escolha é mera teoria.

Nossa Constituição assegurou a liberdade de escolha para todos, dentro dos limites da legalidade: "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", registra o artigo 5, inciso II.

A Constituição, todavia, não parou aí, pois, além de assegurar direitos individuais e impor restrições à ação estatal, ela consagrou direitos sociais, ambientais, assistenciais e muitos outros. A Carta Magna, promulgada em 5 de outubro de 1988, tratou de todos os aspectos da vida em sociedade, exagerou no detalhe e, até por isso, acaba precisando de ajustes constantes.

O cerne do sistema, todavia, permanece. Muitas conquistas sociais foram obtidas. Algumas planejadas na Constituição, mas somente efetivamente implantadas anos mais tarde. O espaço é pequeno para registrar todos os avanços ocorridos nesse período, mas alguns merecem destaque.

A Constituição previu a implantação de um sistema de seguridade social (artigo194) destinado a "assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social". Projeto grandioso, que é responsável por grande parte dos recursos orçamentários, mas que garante condições de existência para milhões de pessoas.

O sistema abrange o Sistema Único de Saúde (SUS), a Assistência e a Previdência Sociais, responsáveis pelo tratamento da saúde e por inúmeros benefícios previdenciários pagos cotidianamente para a população através de aposentadorias, auxílios e pensões.  

Na área educacional, a proposta foi igualmente ousada, pois, a educação foi estabelecida como "direito de todos e dever do Estado e da família", enfatizando que ela seria "promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (artigo205).

Transformar a letra da lei em realidade exigiu e exige muitos investimentos em creches, escolas e universidades. Importante ressaltar que, embora ainda estejamos longe da qualidade do ensino dos países mais desenvolvidos, nossas universidades públicas se destacam quando comparadas a seus pares da América Latina.

Quando da promulgação da Constituição, o Brasil era um país fechado política e economicamente. As barreiras para o comércio internacional eram de diversas ordens, sempre visando a dificultar o intercâmbio. O Brasil não produzia muitos dólares e, assim, sua capacidade de absorver as novidades que vinham do exterior era bastante restrita.

O início da democracia trazia inúmeros desafios. O problema inflacionário, a dívida externa e a escassez de recursos públicos já se faziam presentes. Além disso, a indústria não era muito competitiva internacionalmente, vivia à custa de barreiras legais e alfandegárias; a agricultura, embora pujante, mal atendia às necessidades nacionais.

A inserção do Brasil no mundo globalizado começa no governo de Fernando Collor de Mello (1990-92). Sua afirmação dizendo que os automóveis brasileiros eram verdadeiras carroças quando comparados aos veículos do primeiro mundo ecoou na imprensa e no mundo econômico de então. Começaram as medidas para derrubar barreiras que impediam a importação de bens e serviços do exterior. Processo demorado diante da carência de recursos, mas que foi se consolidando ano após ano, governo após governo, até que chegássemos ao momento atual.

Collor tentou combater a inflação (o índice atingiu 82% em março de 1990), chegou a sequestrar os recursos da poupança de toda a população, mas seus métodos exóticos não deram resultado; e ele próprio acabou perdendo a liderança e o mandato, no primeiro processo de impeachment do período democrático.

O vice Itamar Franco assume com enorme responsabilidade, afinal, a democracia atravessara seu primeiro grande teste: o impeachment de um presidente de República, fato inédito em nossa história diante da ausência de ruptura institucional. Se isso era um grande avanço político e jurídico, um teste para o novo regime, do lado econômico, a situação continuava caótica: dívida externa nas alturas, juros exorbitantes e inflação galopante. Resultado: o país crescia pouco, mas a população estava aumentando rapidamente.

Itamar nomeia Fernando Henrique Cardoso, um sociólogo, como ministro da Fazenda, mas o inusitado deu resultado. FHC reúne uma plêiade de grandes nomes da Economia no país e pede um plano para debelar a inflação: nasce o Plano Real (Medida Provisória 542 de 1994, convertida na Lei 9.069, de 29/6/1995), e com ele começa o fim do grande ciclo inflacionário.

Já tínhamos experimentado inúmeros planos econômicos, de todos os formatos, para dar cabo à inflação. Mas ela vencia todos: Plano Cruzado, com tabelamento de preços (governo Sarney), Plano Bresser, Verão, Collor e Collor II.

O êxito do Plano Real elege Fernando Henrique como presidente do país. Seu mérito foi consolidar o fim do ciclo inflacionário exacerbado. A economia do Brasil começava a entrar nos trilhos. O fim da inflação representou um ganho econômico importante para os menos favorecidos. Uma grande parcela do salário dos trabalhadores era corroída pela inflação a cada mês, de forma que no decorrer do período o valor nas mãos dos assalariados diminuía abruptamente, enquanto o montante das aplicações financeiras crescia na mesma proporção. Ou seja, a inflação tirava, mensalmente, grande parte da renda dos trabalhadores e a transferia para os rentistas, aqueles que tinham aplicações financeiras corrigidas pela inflação ou pela taxa de juros exorbitante da época.

Assim, o Plano Real representa o primeiro grande ganho financeiro da classe trabalhadora no período democrático. Um aumento de renda bastante significativo com o fim da inflação mensal na casa de dois dígitos.

Esse ganho garantiu, inclusive, a própria reeleição do presidente. Mas a crise cambial do início do segundo governo lhe corroeu a popularidade. O real que, por certo período, chegara a ser cotado em um para um, isto é, um real igual a um dólar (artigo 3, parágrafos 1 e 2, da Medida Provisória 542, de 1994), não resistiu; as desvalorizações subsequentes encareceram os produtos importados e a incipiente globalização sofre um choque de realidade.

FHC começou a preparar o país para a concorrência internacional. Sua equipe econômica aconselhou a criação de empresas multinacionais brasileiras. O governo deveria estimular o desenvolvimento de grandes conglomerados empresariais, pois os concorrentes estrangeiros eram muito desenvolvidos e as pequenas empresas seriam engolidas pela concorrência.

Para sustentar o combate à inflação, o governo teve de aprovar a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101, de 2000) para enquadrar Estados e municípios no controle das contas públicas. Mas a aprovação dessa lei custou caro ao governo central, pois as dívidas dos Estados e grandes municípios, principalmente as capitais, passaram para o governo federal e foram consolidadas na dívida pública federal, fazendo com que esta explodisse.

O Plano Real venceu a inflação exorbitante, foi criado o regime de metas, a cargo do Banco Central, e estabelecido o controle dos gastos públicos. Houve avanço na questão cambial, ao permitir a livre flutuação do câmbio (preço do dólar), mas restaram, ainda, grandes problemas sem solução: as dívidas interna e externa e a taxa de juros exorbitante (usada também no combate a inflação), entre outros.

Esses problemas levaram à vitória da oposição. Luís Inácio Lula da Silva (2003-10) assume o país com a campanha de combate à fome. Um problema econômico e humanitário que o país insiste em não resolver.

Surge o Bolsa Família (Lei 10.836, de 2004) e a política de aumentos reais do salário mínimo, o que acaba dando um grande impulso à economia. Uma parcela significativa de pessoas começa a ter renda financeira. Embora a agricultura de subsistência garanta a alimentação de boa parte do mundo rural, esse público pouco participava das finanças do país, não eram consumidores da indústria ou de serviços.

Vem o período de alta no preço das commodities devido ao crescimento acelerado da China, e a política de criação de multinacionais brasileiras começa a dar resultados. O Brasil deixa de ser exportador apenas de café e cana de açúcar para exportar, também, minério de ferro (a Vale do Rio Doce privatizada vira uma das maiores mineradoras do mundo), celulose, carnes e soja. O leque de produtos vai crescendo gradativamente, na medida em que grandes conglomerados empresariais vão se consolidando. E o dólar flutuante vai ajudando a estimular as exportações. Alguns produtos industrializados ganham fôlego, chegando a bens de alto valor agregado como automóveis e aviões da Embraer.

Grandes obras no Nordeste e a agricultura avançando rapidamente no Centro-Oeste começam a construir um novo Brasil.

A ingerência do FMI na política econômica do país, tão criticada durante a campanha presidencial, acaba encontrando sua solução. Para se livrar da ingerência, o Brasil busca a liquidação da dívida pública externa, e o Banco Central começa a comprar dólares e acumular reservas em moeda estrangeira, a ponto de sair da posição de devedor para credor internacional. Acaba aí outro grande problema da economia brasileira, com sérias implicações no cotidiano das pessoas.

O custo do pagamento dessa dívida foi altíssimo, pois, para comprar dólares, o Brasil vendia títulos públicos e pagava juros exorbitantes, o que lhe valia muitas críticas. No entanto, certa estabilidade cambial foi obtida graças a essas reservas. Elas são essenciais para o país. A pandemia tornou evidente a necessidade de as pessoas terem uma reserva financeira para emergências. As reservas do país em moeda estrangeira são sua poupança. Essencial sempre, mas, ainda mais, nos momentos de crise.

O governo Dilma (2011-16) foca na questão habitacional, com o programa Minha Casa, Minha Vida. Todavia, o descontrole financeiro leva ao segundo processo de impeachment da história democrática.

O governo Temer conviveu com uma instabilidade política enorme, pois, sem apoio popular e envolvido em escândalos, acabou sendo o primeiro presidente denunciado criminalmente em pleno exercício do cargo. Não se pode deixar de registrar que ele deu início à reorganização das contas públicas e acelerou o processo de queda das taxas de juros do país, o que representou um alívio na dívida pública interna. Processo esse que está sendo concluído na atual gestão.

Gradativamente, o Brasil democrático foi perseguindo e resolvendo seus crônicos problemas econômicos: a inflação exacerbada, a dívida externa e a ingerência do FMI, a política cambial, a taxa de juros na estratosfera, a questão habitacional e o problema da fome. Os dois últimos ainda não resolvidos integralmente, mas já contam com alguns instrumentos em curso. Quiçá o anunciado Renda Cidadã termine com o problema da miséria extrema e os investimentos públicos e privados consigam dar condições de moradia digna para a população.

O Brasil se transformou num grande produtor de alimentos. A agropecuária cresceu e se sofisticou. Produzimos não apenas para o consumo interno, mas abastecemos grande parte do mundo. Soja, açúcar, proteínas, celulose, minério de ferro e petróleo, são alguns dos produtos que abastecem as reservas cambiais do país e nos permitem adquirir no exterior bens que ainda não produzimos em nosso território.

Ainda há muito trabalho a fazer para que a população tenha condições de vida digna para todos. No entanto, é inegável que, apesar dos tropeços, temos evoluído muito no decorrer dos anos. Quem viveu essa parte da história democrática do país pode atestar a grande mudança no padrão de vida nas últimas décadas.

O fim do grave ciclo inflacionário, os programas sociais de distribuição de renda, as grandes reservas cambiais, a enorme redução na taxa básica de juros (Selic), a interiorização do desenvolvimento econômico, o surgimento das grandes corporações nacionais, as melhorias nas condições de trabalho, o desenvolvimento do agronegócio e do setor de serviços, a balança comercial superavitária, enfim, muitos problemas econômicos foram resolvidos ao longo dos últimos anos, e isso dentro do regime das liberdades, dentro da democracia, e com respeito às regras jurídicas.

É verdade, temos problemas. Quem não os tem? Mas temos virtudes, muitas, e elas não podem ser esquecidas. Merecem ser relembradas e comemoradas, sempre. Democracia é um grande valor jurídico, político e cultural. Vida em plenitude exige a liberdade de escolher seu próprio caminho, e nossa Constituição tem indicado o rumo.

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