Opinião

Nas eleições como julgamento, democracia não pode ser mera encenação

Autor

  • Luiz Edson Fachin

    é ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) alma mater UFPR (Universidade Federal do Paraná) e professor do programa de pós-graduação do Ceub (Centro Universitário de Brasília).

13 de outubro de 2020, 9h09

Para o Ministro Celso de Mello, sempre: tu duca, tu signore e tu maestro

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A cada dia se forma o julgamento que o voto profere na data das eleições. Evento futuro, o processo eleitoral conclama desde sempre ao engajamento e à participação. Escolher verdadeiramente não é apenas comparecer às urnas no pleito. É mais que isso, porquanto compreende legitimar a deliberação mediante informação e reflexão. É mais que hora de se ingressar conscientemente nesse procedimento que informa caminhos a construir.

Da desigualdade extrema à corrupção generalizada, como escreve o  professor Sidarta Ribeiro, biólogo e neurocientista brasileiro, é necessária a imaginação ativa, o sonho lúcido, a fim de que sejamos um futuro habitável, eis que o presente já está praticamente colapsado por intoxicações e conflagrações. Cumpre precaver-se do vírus que contamina a democracia com detritos de regimes ditatoriais.

Há déspotas populistas aspirantes a autocratas imperiais que estão a incubar a travessia do Rubicão. Mais frequente do que imaginável, candidatos explicitamente não tem se comprometido em respeitar o resultado da eleição. A recusa é bem explicitada pelos professores norte-americanos por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt: simplesmente não aceitam resultados eleitorais dignos de crédito. 

O que se faz é blasonar, por antecipação, a conclusão do processo eleitoral, e mesmo assim lançar desde a campanha, ou mesmo antes, suspeitas ao resultado do exercício do sufrágio universal pelo voto direto e secreto. 

É a eclipse da razão ludibriada pela representação. Acenar para soberania popular e instigar o autoritarismo: no palco dos dias correntes, revoadas de aves necrófagas espreitam a democracia e projetam uma sombra de ocaso nas imprescindíveis instituições democráticas. Astutas, operam por metamorfoses, ora com obscuridades, ora com supostas promessas de novas auroras, num lusco-fusco de palavras e ações propositadamente disparatadas, ludibriando mentes e corações para obter, ao fim dessa jornada crepuscular, a demolição moral da política. Reputam decadente o jogo eleitoral, sem embargo de aceitarem suas regras ao mesmo tempo em que menosprezam parlamentares e Parlamentos, juízes e o Poder Judiciário, jornalistas e a imprensa livre, com alusões normalmente impronunciáveis. 

Alimentam-se de compromisso débil com as regras do jogo democrático; delas, o cardápio dos comportamentos arrogantes sabe ao prato deletério de açular golpes, de minar a legitimidade das eleições, de entrelaçar-se com milícias, de endossar a violência, e de elogiar atos de tortura e de extermínio político.

Esse vírus já tem remédio, especialmente se administrado no tempo certo das urnas. É ele que pode arrancar as raízes do mal do autoritarismo. É o voto consciente, atento e conhecedor do poder transformador que consigo mesmo carrega. 

A democracia se encontra em estado de alarme. Melhor amanhecer a caminho do que entardecer indolente. Nunca é cedo demais para preocupar-se com o porvir. Entre o agora e o demasiado tarde medeia um intervalo que vai da memória à visão prospectiva da democracia como condição de possibilidade em direção ao porvir, e esse interregno tem cicatrizes suficientes para sobreviverem no presente como marcas de autocracias e seus efeitos nefastos para a liberdade.

No miasma dos rancores, há flagrantes sintomas de malversações com evidentes prejuízos ao erário, de privatização indevida de setores públicos estratégicos, de milícias armadas, bem como exclusão social e econômica, ausência de solidariedade, expressões inadmissíveis de racismo, de antissemitismo, de palavras, gestos e práticas homofóbicas, de violência contra as mulheres, de violação a direitos humanos, da falta de políticas públicas sobre educação e saúde sexual e reprodutiva, enfim, de baixa densidade de humanidade. Quem dissimula apelar para a paz, a rigor, se prepara para a guerra.

Almeja-se com o desastre estilhaçar o encantamento normativo do Estado constitucional; a seguir, pela propagação de ódios faccionais e promessas de ousio irresponsável, suscita-se desordem para armar o restabelecimento da ordem. É possível, ainda que para muitos seja improvável, que advenha disso tudo a dissolução geral da sociedade e do Estado. 

Ainda não tocaram os sinos em sinal de luto, porém, a corrosão é intolerável. É imprescindível sair da crise sem sair da democracia. 

Os riscos à democracia volátil decorrem de uma combinação de probabilidades. A astúcia é embaçar, gerar nebulosidade apta a perturbar a compreensão da realidade. É na área do ambíguo que se esconde a variável oculta. A elaboração primária, visível à moda mise-en-scène, se apresenta com reconhecimento aos poderes constituídos, às liberdades, à sociedade aberta e plural, mesmo que oscilando passeios por abismos e insultos; porém, o pretenso heroísmo salvador prega a paz e simultaneamente defere armas à violência; suscita grandiosidade de idade de ouro no pretérito enquanto mina as bases do Estado constituído pregando a destruição institucional. A estratégia é a todo momento introduzir cavalos de Tróia na legalidade constitucional. 

Tenha-se presente que a democracia é um corpo em estado de alerta. Há muitos parasitas na corrente sanguínea desse hospedeiro. O cenário atual se compõe de variados sintomas que gravitam em torno de graves questões socioeconômicas, passam por visões agudas da corrupção, insatisfação com a atuação de agentes políticos, decomposição de valores culturais, desinformação, disseminação de ódio, prática recrimináveis de elites governamentais, alcançam a proposital produção de desconfiança, e chegam mesmo ao ressentimento e à hostilidade como ação política.

Nada obstante, à parte isso, não há tribunais especiais nem juízos extraordinários fora da lei, nem o exercício do terror como estratagema explícito de Estado, muito menos leis de exceção. As instituições atuam, grosso modo, dentro de limites da legalidade constitucional. Ainda assim, nunca é demais acudir. Trata-se a democracia de um ser vivo que demanda incessantes cuidados. É condição sine qua non para ser superada essa atmosfera mefítica e assim preservar as instituições e aumentar a função institucionalizadora da democracia como expressão de sobrevivência do Estado de Direito e da própria sociedade. 

As liberdades democráticas integram o patrimônio moral das gerações futuras. Elas têm histórias a contar. É preciso zelar, então, para que tenham futuro mesmo diante dos sinais de recessão democrática. A complexidade desse fenômeno é um desafio à segurança e à previsibilidade. Vivem-se dias nos quais compete responder perguntas cuja formulação ainda não é completamente possível, o que aumenta a responsabilidade de preservar e de manter atitude atenta, a vigilância contra os tempos sombrios. 

Antes da pandemia ou depois da pandemia: essa poderá ser a linha simbólica da marcação do tempo doravante. Independentemente desse traço temporal diferenciador, há condições de possibilidade a serem necessariamente preservadas, dentre elas a democracia, e por isso mesmo há discussões que se intensificarão, a exemplo do embate entre democracia e autoritarismo. Da Itália de 1922 há lições para o tempo no mundo dos dias de hoje. Como se depreende do que escreveu A. Scurati, no livro O filho do século, cem anos depois (um século a completar-se em 2022) um tanto daquilo ressoa aqui e alhures.

É grave afrontar uma eleição caracterizada pela normalidade e legitimidade. A democracia não pode ser mera encenação. Impende precatar-se antes cedo que tarde demais. Esse é o momento: como diz o mote da Justiça eleitoral, seu voto tem poder.

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