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Norma revogada e perda de objeto: semelhanças entre a guerra fiscal e a ADI 5.595

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

13 de outubro de 2020, 8h00

Spacca
Quando a norma é revogada, a ADI perde seu objeto? Trago à colação uma situação paradigmática que bem explicita o problema a ser analisado.

Nos enfrentamentos da guerra fiscal realizados no STF até 2011 o Tribunal simplesmente deixava de julgar as ADIs que eram propostas quando os Estados, malandramente, revogavam as normas impugnadas e editavam outras semelhantes, que possuíam os mesmos efeitos em concreto. O destino dessas ações era o de extinção da ADI em razão de perda de objeto, pois, em um raciocínio lógico e direto, se a norma havia sido revogada, então, não havia motivo para declará-la inconstitucional. E o julgamento era encerrado.

Ocorre que em junho de 2011 o STF se deu conta das manobras que vinham ocorrendo e passou a analisar estas ações mesmo havendo a revogação das normas estaduais contrárias ao CONFAZ, pois elas possuíam efeitos no tempo, isto é, mesmo revogadas tinham gerado efeitos concretos que necessitavam ser apreciados. Essa mudança de entendimento foi bem demonstrada pela reportagem de Laura Ignacio, no jornal Valor Econômico, que aponta essa mudança paradigmática de posição do STF (edição de 8/8/2011, sob o título STF aplica nova tese e julga leis já revogadas).

Daí surgiu toda a discussão sobre a Proposta de Súmula Vinculante 69 e a modulação dos efeitos do seu julgamento, debate que foi encerrado com a promulgação da Lei Complementar 160.

Algo semelhante está ocorrendo com a análise da ADI 5595, cujo julgamento está em curso.

Apreciando a matéria cautelarmente no âmbito da Reclamação 30.696, o Relator, Ministro Lewandowski, concedeu a liminar pleiteada, e, uma vez pautado o julgamento da ADI, votou favoravelmente pela sua inconstitucionalidade. Acompanharam o Relator os Ministros Edson Fachin e Marco Aurélio. A Ministra Cármen Lúcia acompanhou o Relator com ressalvas. Os Ministros Gilmar Mendes e Luiz Fux votaram no sentido de conhecer parcialmente da ação direta para, no mérito, julgá-la improcedente, prejudicado o pedido de declaração de inconstitucionalidade do art. 2º da EC 86/2015. O Ministro Alexandre de Moraes votou no sentido de julgar improcedente a ação. Pediu vista dos autos o Ministro Dias Toffoli.

Na ADI 5.595 é pedida a declaração de inconstitucionalidade dos arts 2º e 3º da Emenda Constitucional 86/15, que, posteriormente à propositura da ação, tendo sido o primeiro deles revogados pela EC 95/16, conhecida como emenda do teto de gastos.

Ocorre que tal revogação do art. 2º não fez cessar os efeitos da EC 86/15 em face de uma constatação singela: como a Emenda do Teto de Gastos faz um congelamento dos gastos com ações e serviços públicos de saúde (art. 110, ADCT) com por vinte anos (art. 106, ADCT), existem importantes efeitos a serem regulados no "ponto zero" dessas duas décadas. Simplificando: a ADI 5595 visa corrigir os valores iniciais dessa trajetória temporal interrompida pela revogação de seu art. 2º.

Explico melhor, em uma espécie de linha do tempo referente a este art. 2º:

  1. O art. 198, CF, previa um patamar mínimo de gastos com ações e serviços de saúde, sem delimitar percentuais para a União;

  2. A Lei Complementar 141/12, sem prever um percentual específico, estabeleceu que a União deveria aplicar anualmente o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do PIB ocorrida no ano anterior ao da lei orçamentária anual;

  3. A EC 86/15 inovou ao estabelecer que a União deveria gastar nunca menos de 15% de sua receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro (art. 198, §2º, I);

  4. Todavia, a fim de minimizar o impacto financeiro desse percentual, o art. 2º da EC 86/15 estabeleceu que tais gastos com ações e serviços de saúde seriam cumpridos progressivamente, garantidos, no mínimo 13,2% da receita corrente líquida no primeiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação daquela Emenda Constitucional (isto é, 2017), até atingir 15%, o que ocorreria apenas no quinto exercício financeiro subsequente;

  5. Ocorre que, como visto, o artigo 2º foi revogado pela EC 95/16 antes mesmo que seus efeitos concretos fossem aplicados, e o percentual do ano de 2017 foi “congelado” por 20 anos em patamar inferior – eis o ponto a ser analisado na ADI 5595;

  6. A ADI 5595 foi proposta após a EC 86 e antes da EC 95, e visava atacar essa progressividade no tempo, pois, em concreto, 13,2% da receita corrente líquida da União representava menos do que havia sido gasto em 2015 e, com isso estava patente o retrocesso social dos gastos com saúde. Logo, o “ponto zero” dessa trajetória está errado para menos, antes mesmo do congelamento estabelecido pela EC 95, do teto de gastos.

Logo, não se há de negar, em uma análise meramente formalista, que a ADI 5.595 perdeu parcialmente o objeto no que tange ao art. 2º, porém, tal como ocorreu com as ADIs da guerra fiscal, é necessário regular seus efeitos no tempo, ainda mais quando há um congelamento de seus valores por 20 anos. Sem falar na análise do art. 3º, plenamente vigente. O voto do Ministro Ricardo Lewandowski foi bastante atento nessa análise, concluindo pela inconstitucionalidade dos dois artigos.

Se nas ADIs sobre a guerra fiscal os efeitos se protraíam no tempo, pois existiam relações econômicas que ficaram para trás e que deveriam ser reguladas, no que tange ao art. 2º da ADI 5.595 a situação é mais premente, pois seus efeitos terão projeção para o futuro imediato e por outros longos 20 anos, atingindo o financiamento dos gastos com ações e serviços de saúde de várias gerações.

Observe-se que a propagação do Covid-19 poderá até ser anulada com a vacinação, que se espera para breve, mas que já deixou um exército de vítimas fatais (superior a 150 mil até hoje) e não fatais, que ficaram com sequelas físicas e mentais, que necessitarão ser tratadas. Isso deve ser acrescido às conhecidas fragilidades de um sistema ímpar de saúde pública, que se revelou importantíssimo nesse período – mas não só neste período, pois o Brasil é um país com enormes desigualdades socioeconômicas, que vem se ampliando.

Logo, é necessário regular estas relações intertemporais, a despeito da perda de objeto formalmente identificada. Neste ponto processual se assemelham as ADIs sobre a guerra fiscal, no exato ponto de virada em 2011, e o presente julgamento da ADI 5.595.

Em tempos pandêmicos, lembremos a música de Caetano e Gil, lançada em 1969: É preciso estar atento e forte, pois não temos tempo de temer a morte.

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    é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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