Opinião

ADI 6.565: Considerações sobre a autonomia universitária

Autores

  • Carolina Cyrillo

    é professora de direito constitucional e administrativo da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ; docente de elementos de direito constitucional da Universidade de Buenos Aires (UBA); mestre em Direito pela UFSC; e advogada.

  • Luiz Fernando Castilhos Silveira

    é professor da Universidade de Caxias do Sul (UCS); coordenador da Especialização em Direito Civil e Processo Civil do Campus da Região das Hortênsias da UCS; mestre em Direito pela UNISINOS; e advogado.

12 de outubro de 2020, 14h11

O Partido Verde (PV) ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6.565), contra o artigo 1º da Lei Federal 9.192/1995 que estabelece as regras de escolha de reitores e vice-reitores das universidades federais. O relator da ação, ministro Edson Fachin, já liberou a análise do pedido de liminar no Plenário Virtual, proferindo seu voto deferindo parcialmente a medida cautelar para dar interpretação conforme ao artigo de modo a determinar que a escolha dos reitores obedeça a organização das listas feitas pelas universidades, determinando a nomeação recaia sobre o docente que encontre-se indicado no primeiro lugar da lista. A ADI 6.565 colocará novamente o STF diante da necessidade de enfrentar o que é e qual o alcance da autonomia universitária das universidades federais.

A alçada da autonomia universitária à hierarquia constitucional é uma novidade trazida pela Constituição Federal de 1988 (CF 88), em especial nos seus artigos 206 e 207. Significa que a preocupação jurídica de proteção da autonomia das universidades recebeu nas normas jurídicas um tratamento de outro patamar, ou relevância, em relação a preocupação jurídica de proteger as instituições universitárias na ordem jurídica anterior. Essa inovação constitucional é de extrema importância para as práticas de adequação jurídica e de gestão desse setor, em especial na universidade federal.

No direito constitucional, sobretudo naquele de matriz sul-americana e garantista, fruto de uma luta de transição entre ditaduras e democracias, aparecem novas funções constitucionais destinadas a algumas instituições de Estado. Essas instituições ganham protagonismo normativo constitucional com o objetivo de serem garantias de direitos fundamentais, reconquistados nas novas democracias constitucionais. Essas instituições ganham proteção constitucional, inclusive, em relação aos poderes públicos (executivo, legislativo, judiciário), justamente para que seja possível atribuir a elas a concretude dos direitos fundamentais, independentemente das políticas governamentais, dando-lhes autonomia e tornando-as instituições de garantias de direitos fundamentais.

Entretanto, a exata compreensão do que é a autonomia universitária e a sua relevância jurídica para proteção de direitos fundamentais ainda não são perfeitamente entendidos, em especial quando se está diante da aplicação dessas regras constitucionais às universidades públicas que, além de universidades, também recebem o regime de direito administrativo e, por esse motivo, compõem a chamada Administração Pública indireta, atraindo as regras do regime de direito administrativo, como aquelas constantes dos arts. 37 e seguintes da CF 88.

Jair Bolsonaro levantou como bandeira de campanha o discurso de intervenção nas universidades, sob o argumento que deveria haver uma intervenção nas estruturas a fim de garantir opções de gestão não vinculadas a partidos de esquerda1. Vitorioso assumiu a presidência da república e, com isso, a chefia da Administração Pública federal, na forma do art. 84, inciso II. Como presidente, vem tentando implementar sua agenda eleitoral. As primeiras ações foram as edições de duas medidas provisórias (MP), as de n. 914/2019 e n. 979/2020, que tinham como objetivo modificar a forma e rito de organização de eleições e designações dos dirigentes das instituições federais de ensino. A MP 914/2019 perdeu sua eficácia2 e MP 979/20 acabou sendo devolvida pelo Presidente do Senado sob a justificativa da manifesta inconstitucionalidade3. Atualmente para implementar a agenda o presidente vem utilizando do artigo 1º da Lei 9.192/1995, que estabelece que o reitor e o vice-reitor das universidades serão nomeados pelo presidente da República, a partir de listas tríplices. Com essas ações, fica evidente que existe uma equivocada compreensão de que a universidades federais são simples componentes da administração pública indireta, que devem seguir uma agenda baseada na opção política do governo de ocasião.

A autonomia universitária vem desenhada na arquitetura constitucional a partir de uma cadeia normativa inaugurada pelo art. 207, mas também composta pelas atinentes aos direitos fundamentais da liberdade de manifestação do pensamento, de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação e de reunião (art. 5º, incisos IV, IX e XVI), ao ensino pautado na liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento e o pluralismo de ideias (art. 206, incisos II e III), à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação (art. 220, caput).4 O objetivo constitucional encontrava-se bastante claro na perspectiva da Assembleia Nacional Constituinte, que era defender as universidades da intervenção dos governos, definindo a concepção integral da autonomia universitária, entendida como autonomia didático-cientifica, administrativa e de gestão financeira e, ainda, a obediência ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

Portanto, a dicção constitucional nos moldes propostos é de atribuir às universidades um poder autônomo, restringível exclusivamente por norma de mesma hierarquia constitucional, que permitisse às universidades concretizarem seu papel de verdadeiras instituições de garantia dos direitos fundamentais. Isso significa que apenas normas de natureza, ou hierarquia, constitucional podem limitar a autonomia que foi concedida pelo poder constituinte que é soberano, de forma plena e sem limitação. Eventual modificação da autonomia universitária, portanto, só será legítima e for efetuada por meio de Emenda Constitucional, deixando aqui em aberto a necessidade de se perquirir, ainda, o fato de ser a autonomia universitária uma garantia, e, portanto, enquadrada nos limites materiais a reforma constitucional.

Entretanto, o enfrentamento da matéria nos julgados do (STF) e na tradicional doutrina do direito administrativo, parece incorporar a ideia de que, em razão do regime de direito público das universidades federais, elas devem se sujeitar a um maior controle. O paradigma desse pensamento no STF é a ADI 51 de 19895, que interpretou a autonomia universitária como sujeição das universidades às leis, de forma geral, sem especificar a hierarquia normativa de quais leis se estava diante, usando como argumento geral de que “autonomia não significa soberania”, não levando em conta o alcance de uma elevação a hierarquia normativa constitucional da autonomia universitária. Na ADI 51 de 1989, a controvérsia era em torno de uma resolução da UFRJ que disciplinava as suas eleições para reitoria. Na ocasião, o PGR pediu a declaração de inconstitucionalidade da norma interna da UFRJ, discorrendo que a instituição, por ser uma autarquia federal, deveria se sujeitar às leis de pessoal e de investidura de cargos da Administração Pública Federal.

A ADI 51 foi relatada pelo então ministro Paulo Brossard, que interpretou a autonomia universitária do artigo 207 da CF como uma “não novidade” trazida pela CF 88, sendo que deveria a norma constitucional ser harmonizada com a lei de 1968, a qual fixava normas de organização e funcionamento do ensino superior. Para o relator, não deveria se supor que a autonomia universitária do artigo 207 da CF de 1988, as colocava acima da lei. Entendeu que a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão não colocava a UFRJ em outro lugar, diferente de qualquer outra autarquia que compunha a Administração pública federal, devendo receber o mesmo status jurídico que qualquer outra autarquia.

As universidades federais, em razão da organização administrativa do Estado brasileiro, compõem a chamada administração pública indireta e são conceituadas na doutrina do direito administrativo como sendo “autarquias em regime especial”6. Isso significa dizer que gozam de certas peculiaridades, como o mandato de seu dirigente ser insuscetível de demissão pelo chefe do poder executivo, na forma da súmula 47 do STF, de 19637, a possibilidade de organização interna da progressão funcional de seus servidores e normas estatutárias e regimentais próprias8. Estabelecer essa natureza de autarquia às universidades federais é dizer que elas estarão sujeitas, nas relações civis, tributárias e trabalhistas, ao chamado regime de direito público, o que implica a indisponibilidade do interesse público e a sujeição aos mecanismos de controles típicos da Administração Pública nas suas atividades administrativas e de gestão. Portanto, é evidente que todos os mecanismos de controle de contas, probidade administrativa e judicial, práticas de accontability, governo aberto e compliance público, princípios constitucionais administrativos, típicos e aplicáveis aos entes da Administração Pública, se aplicam às universidades federais. Ou seja, todas as normas de hierarquia constitucional em matéria de regime administrativo se aplicam as universidades públicas federais.

Entretanto, o que entra em jogo não é essa sujeição de controle típico das instituições mantidas sob o regime de direito público, mas, sim, em qual medida o fato de as universidades federais comporem a Administração Pública compromete a autonomia universitária constitucional plena. Ou seja, há que se perquirir se o discurso de controle administrativo não é um subterfúgio governamental para controlar a autonomia universitária, em evidente comprometimento dos fins da universidade como instituições da garantia de direitos fundamentais como à educação e ao desenvolvimento.9

Assim sendo, há que se tomar o devido cuidado com a tradicional interpretação de autarquia especial do direito administrativo, para conceituar a natureza jurídica das universidades federais, sob pena de se admitir uma leitura cruzada da norma constitucional do art. 207, com os olhos da ordem jurídica anterior a CF 88, a qual previa um controle autoritário das universidades, marca inexorável do governo ditatorial.

Em outras palavras, aquelas normas de hierarquia infraconstitucional, como as leis ordinárias e as medidas provisórias, são meios incompatíveis com a ordem constitucional para restrição da autonomia universitária. 10

Nesses termos, resta claro que o objeto da ADI 6.565 de ver declarada inconstitucional o art. 1º da Lei Federal 9.192/1995, que alterou o art. 16 da Lei 5540/68 é de suma relevância para mudança de paradigma de compreensão do alcance da autonomia universitária do art. 207 da CF 88, em especial a necessidade de que o STF reveja a posição adotada na ADI 51 de 1989, pois resta evidente que o art. 16 da lei 5540/68, com a redação dada pela lei 9.192/95, é incompatível com a CF 88, pois não é emanada pelas estruturas administrativas das próprias universidades e atribui o ato de final da escolha ao Presidente da República.

Parece que é necessário que se corrija a inconsistência dessa norma que confunde a nomeação (ato administrativo formal) com a escolha (deliberação sobre conveniência e oportunidade sobre quem deve conduzir a universidade), sendo que a segunda (escolha) não pode ser atribuída àqueles que não estão na estrutura interna da universidade, pena de comprometer a autonomia universitária, que existe para preservar a universidade como instituição de garantia dos direitos fundamentais, bases do Estado Democrático de Direito.


1 https://exame.com/brasil/equipe-de-bolsonaro-planeja-escolher-reitores-das-universidades-federais/ 

2 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/06/02/perde-eficacia-mp-que-mudava-eleicao-de-reitores-de-universidades-federais

3 CYRILLO, Carolina; SILVEIRA, Luiz Fernando Castilhos. A autonomia universitária na CF 88: em momento constitucionais.[1]. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 20, nº 1425, 22 de junho de 2020.

4 RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Controle público da educação e liberdade de ensinar na Constituição Federal de 1988. In: BONAVIDES, Paulo; LIMA, Francisco Gérson Marques de; BEDÊ, Fayga. (Coord.). Constituição e democracia: estudos em homenagem ao professor J.J. Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006.

5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 51 de 1989. Distrito Federal. Relator: Ministro Paulo Brossard. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266174>.

6 NOHARA, Irene Patrícia. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2013, p. 557

7 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: RT, 2012. p. 87.

8 FERRAZ, Ana Candida Cunha. Autonomia Universitária na Constituição de 05.10.1988. R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, 215: 117-142, jan/mar. 1999, p. 123.

9 Há evidências que indicam uma correlação positiva (apontando-a como um dos mais importantes fatores) entre o grau de autonomia acadêmica e a performance de uma instituição WESTERHEIJDEN, d. F.; DE BOER, h. F.; JONGBLOED, b. W. A.; ENDERS, j., CREMONINI, l.; FILE, j. M.; DE WEERT, e. Progress in higher education reform across Europe. Governance Reform. Volume 1: Executive Summary main report. Enschede / Kassel: Center for Higher Education Policy Studies (CHEPS), 2010. Disponível em <https://op.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/e5eba507-3f2c-4639-bb87-6aa75a0ef1f6/language-en>.

10 DE ARAGÃO, Alexandre. A autonomia universitária e suas dimensões no direito brasileiro. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, v. 32, n. 01, p. 5-28, 30 abr. 2020. p. 7.

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