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Lenio Streck: O que é “revisar a prisão a cada 90 dias”?

12 de outubro de 2020, 10h13

Por Redação ConJur

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Spacca
1. O imbróglio do caso da liminar de Marco Aurélio cassada por Fux
Há poucos dias tivemos um imbróglio jurídico interessante. Aqui não preciso aprofundar o caso especifico. O que me interessa é discutir a hermenêutica do artigo 316, parágrafo único, do CPP, alterado recentemente, que diz:

Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

Parece claro que o ônus de manter a prisão é do Estado. Do Ministério Público e do juiz. Essa foi a mens legislatoris. E é de fácil leitura.

Aliás, diz a lei que essa (re)fundamentação deve ser de ofício. Não depende de requerimento defensivo. É a lei ajudando na interpretação da própria lei.

2. O caso concreto do habeas corpus e da suspensão: a boa resposta de Maia!
Um indivíduo estava preso há mais de 90 dias (preventiva) sem que houvesse essa renovação (refundamentação) exigida pelo artigo 316.

Impetrou habeas ao STJ, que lhe foi negado liminarmente. Foi ao STF e teve uma liminar deferida pelo Ministro Marco Aurélio, sob o fundamento da leitura literal do aludido dispositivo. No caso concreto, o sujeito estava preso e, condenado, lá permanecia com prisão preventiva e, na pendência de recurso, a prisão não foi refundamentada no prazo de 90 dias. O Ministro Fux, na qualidade de presidente do STF, cassou a decisão, em uma suspensão liminar que levou o número 1.395.

O MP e o juiz cochilaram, como bem disse a jornalista Madeleine Lackso. Rodrigo Maia também respondeu muito bem à 3ª Turma do STF (Globo News), que estava enlouquecida com a decisão de MAM. Maia foi no rim! O "Ministro" Valdo Cruz, da Globo News, redarguiu: "— mas era um traficante condenado…". Maia respondeu: "— Mais ainda por isso é que o MP deveria ter ficado atento!" E Maia complementou: " — Por que sempre colocam a culpa na política?"

Veja-se: a questão, sob o ponto de visto do Direito — que, para mim, é o único que importa — é muito singela: não há, dentre as atribuições do presidente do STF (art. 13, RISTF), disposição para que este "atravesse" decisões liminares em HCs construídas a partir de uma racionalidade técnico-jurídica, como é o caso. O Min. Marco Aurélio, ainda que a sua decisão possa ser, eventualmente, reformada, deferiu a liminar com amparo no excesso de prazo. A fundamentação, nesse sentido, segue uma lógica jurídica coerente. Por outro lado, o argumento do Min. Fux para cassar tal decisão — ainda que o RISTF o conferisse essa prerrogativa, o que não ocorre — não faz sentido ("supressão de instância"), na medida em que o HC pode ser concedido de ofício, quando diante de flagrante ilegalidade.

3. Dois problemas que se apresentam
O primeiro é o STF poder revogar com suspensão de liminar decisões de ministros. A Corte terá de tratar disso. Já houve outros casos anteriormente. E sempre isso gera mal estar. O Regimento Interno por enquanto não permite esse tipo de decisão. E a Lei que permite suspensão de liminar não trata exatamente disso. Não parece que a Lei tratou de cassação de liminar em habeas corpus.

Todavia, o que me interessa é o segundo ponto, mais do que o primeiro. Quero discutir a interpretação do parágrafo único do artigo 316 do CPP. O Ministro Fux diz que houve supressão de instância, porquanto a questão do prazo nonagesimal não foi apreciada pelo STJ e, tampouco, o indeferimento liminar do HC foi desafiado por agravo regimental, o que impediria o conhecimento no STF; o Ministro Schietti disse no HC que gerou o HC em tela, que não havia excesso de prazo e indeferiu liminarmente a ordem. O excesso aventado, no entanto, se vinculava ao período em que o paciente estava preso (8 meses) e não propriamente em relação à interpretação do novel art. 316, parágrafo único, do CPP. Não estava em questão o artigo 316 na decisão de Schietti.

De todo modo, importa, em termos de teoria do direito, processo penal e hermenêutica, é discutir e questionar o modo como uma dogmática jurídica como a brasileira facilmente adere a interpretações despistadoras. Facilmente, parcela da dogmática faz análise teleológica, isto é: primeiro olha se o dispositivo é bom, se agrada, e, depois, arruma argumentos para sustentar a tese. Li textos nas redes dizendo que onde está escrito “revisar” não se deve ler “revisar”. Mas, céus, devemos ler o quê? Devemos chamar os originalistas e ou os textualistas americanos para ajudar? (aqui)

4. É evidente que a refundamentação deve ser de ofício
Parece claro que o fato de ser de ofício essa revisão não é uma contradição com a proibição de o juiz decretar prisões de ofício. Ora, processo penal é Estado versus cidadão. Garantias são contra o poder de arbítrio. Setores da dogmática não conseguem entender isso.

Outra vez: é obvio que a revisão deve ser de ofício. Isto porque o ônus é do Estado e não da defesa. O Estado quer prender? Então tem o ônus de, a cada 90 dias, dizer por que mantém preso. Ou será que a prisão e sua manutenção passaram a ser ônus do réu?

O Ministro Gilmar Mendes, em voto no HC 179.859, tem claro que a reforma legislativa (Lei 13.964/2019) introduziu a revisão periódica dos fundamentos da prisão preventiva, sendo que a manutenção da prisão preventiva depende de fundamentação periódica. Bem na linha do que aqui vai sustentado e do que disse o ministro Marco Aurélio.

5. Na democracia não é proibido cumprir a “letra de uma lei”
Em uma democracia, não é proibido fazer sinônimas. Aplicar aquilo que comumente se chama de “letra da lei” (podemos chamar também de textualidade) não é ruim e nem feio. A menos que a lei (dispositivo) seja inconstitucional (ver aqui as seis hipóteses pelas quais um juiz pode deixar de aplicar uma lei). Caso a lei passe por esse filtro, a sua aplicação é obrigatória. Um dever fundamental.

É o caso do parágrafo único do artigo 316 do CPP. Se ele não é inconstitucional e nem padece de outro vicio hermenêutico (como explico nas seis hipóteses), deve se aplicado sem culpas e consequencialismo. Foi o que o Min. Marco Aurélio fez. Que foi também a posição do Min. Gilmar no HC 179.859.

A pergunta que não cala: Por que é sempre mais difícil fazer cumprir leis garantidoras? Lutamos três anos para retornar à singela literalidade do artigo 283 do CPP. E agora temos de demonstrar que onde está escrito revisão de 90 em 90 dias deve-se ler “revisão de 90 em 90 dias”. E que o ônus é do Ministério Público. E do Estado-Juiz. Desculpem-me, mas mais simples que isso é impossível.

6. Post scriptum: uma dose maciça de farisaísmo de Moro
Moro, bancando o “outsider”, diz que foi contra o dispositivo do parágrafo único do artigo 316 do CPP. Ah, sim. Na Folha de São Paulo chegou a culpar Bolsonaro, dizendo que este não vetara para beneficiar o filho Flávio. Uma coisa que não está dita: se Moro sabia disso, por que ficou no governo? Por que não denunciou? Se é verdade que o Presidente não vetou por interesses pessoais, então Moro acusa mais uma vez o Presidente de um crime? Tem provas disso? E, de novo: por que Moro, sabendo disso, permaneceu no governo?

Nosso Duque de Maringá já nem sabe mais o que fala. Para criticar seus desafetos, ataca. E dá tiro no pé. Mais um.

Por que o Moro não explica o projeto que queria fragilizar o HC, usar prova ilícita de boa fé e quejandos? E agora quer dar lição de moral? Ah, eu fui contra… Ah, bom.

Maia está certo. Faz-se uma lei para preservar direitos, autoridades não cumprem e depois põem a culpa no legislador. Logo, logo, vai aparecer um deputado ou senador histriônico para revogar o parágrafo único do artigo 316. Sabem por quê? Porque o MP e o juiz cochilaram em um caso. Que tal? E haverá aplauso de gente do Direito.