Opinião

O futuro que foi negado pelo Estado

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11 de outubro de 2020, 9h09

Quem diria que já houve campo de concentração no Brasil? Pois é disso que se trata, quando uma política higienista do Estado brasileiro afastava os filhos de portadores de uma doença de seus pais, negando-lhes o direito à convivência familiar e comunitária, o carinho e cuidados dos pais e os colocava compulsoriamente em "preventórios", onde além do "apartheid" familiar e comunitário, eram privados da liberdade e sofreram todo tipo de violência, incluindo estupros, violência física, psicológica e até assassinatos em nome do Estado brasileiro. Embora o futuro seja um mistério, não se sabe o que vai acontecer amanhã, mas para essas crianças negaram até o direito de sonhar e ter futuro. Muitos morreram nas masmorras do Estado e poucos sobreviveram despersonalizados e sem passado afetivo.

O Congresso Nacional, reconhecendo a culpa do Estado brasileiro por esse crime contra a humanidade, editou a Lei 11.520/2007, que concede uma pensão mensal às pessoas atingidas pela hanseníase que foram submetidas a isolamento e internação compulsória em hospitais-colônia, a título de reparação. Contudo, esqueceu o legislador de estender essa reparação aos filhos isolados, que sofreram mais que seus pais, que bem ou mal, estavam internados em hospitais-colônia, em tratamento, mas e os filhos que nenhum tratamento receberam a não ser, nas palavras deles, "porradas e violações dos direitos humanos". Mantê-los separados de seus familiares não foi diferente da prática nazista de levar judeus, ciganos e portadores de doenças para os campos de extermínio.

Não foi diferente dos trabalhos escravos e forçados, dos estupros e assassinatos dos campos de concentração. Ainda que hoje estejam em liberdade, nunca serão os mesmos, falta-lhe a base familiar afetiva e educacional, faltam-lhes referências, além de terem negado o futuro, apagaram seu passado. Trata-se, portanto de crime de caráter permanente, que nunca sairá da formação e da psique da pessoa que sofreu tais danos. Segundo todos os tratados internacionais de direitos humanos, tratam-se de crimes perpetrados de forma desumana (já reconhecido pela Lei 11.520/2007 em nosso ordenamento jurídico) — extermínios, separação familiar, extermínios e desaparecimentos. Generalizados e sistemáticos, praticados contra parte determinada da população civil: os filhos de hansenianos. E uma política promovida por agentes públicos do Estado.

Assim como o Brasil reconheceu a imprescritibilidade dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar, e sendo signatário do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, assim como da Convenção Americana de Direitos Humanos, e como afirmou a Assembleia Geral das Nações Unidas, de 1950, que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis, suas consequências nocivas às vítimas dessa política higienista devem ser suportadas e reparadas pelo Estado, enquanto estiverem vivos com todas as suas sequelas as vítimas dessa política desumana. Embora a Constituição do Brasil preveja apenas duas hipóteses de imprescritibilidade em seu artigo 5º, inciso XLII, é evidente que, tendo aderido aos tratados internacionais de direitos humanos, tais regras devem ser aplicadas como direito supraconstitucional que é.

A Convenção sobre imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade da Assembleia Geral da ONU, de 26 de novembro de 1968, define como imprescritível em seu artigo 1º:

"2. Os crimes contra a humanidade, sejam cometidos em tempo de guerra ou em tempo de paz, como tal definidos no Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg de 8 de agosto de 1945 e confirmados pelas Resoluções nº 3 (I) e 95 (i) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 13 de fevereiro de 1946 e 11 de dezembro de 1946; a evicção por um ataque armado; a ocupação; os atos desumanos resultantes da política de 'apartheid'; e ainda o crime de genocídio, como tal definido na Convenção de 1948 para a prevenção e repressão do crime de genocídio, ainda que estes atos não constituam violação do direito interno do país onde foram cometidos".

A Morhan é um organismo de reunião desses filhos separados que pretendem ver seus direitos à reparação respeitados pelo Estado brasileiro. Para tanto, alguns ingressaram com ações individualmente e já obtiveram ganho de causa em duas ações julgadas pelo Tribunal do Rio Grande do Sul, outros dois também individualmente aguardam que o Supremo Tribunal Federal analise e decida a questão da imprescritibilidade desses direitos. Como é de conhecimento, o histórico do STF é de vanguarda e reconhecimentos e prestígio dos direitos humanos. A Morhan conta com uma rede jurídica de advogados que voluntariamente e pro bono auxiliam a causa desses brasileiros tão sofridos. Contam ainda com o ingresso como amigos da corte do projeto legal e da Comissão Nacional dos Direitos Humanos, da Defensoria Pública Federal e do Conselho de Direitos Humanos da OAB Nacional.

Resta-nos torcer para que se faça justiça no Judiciário, mas, se não houver o reconhecimento desse direito humano inalienável, ainda resta o protagonismo do Congresso Nacional para reparar essa dívida histórica com mais de 30 mil brasileiros que cumpriram pena de isolamento social e privação de liberdade pelo simples fatos de seus pais serem portadores de uma doença. Essas crianças separadas que sobreviveram ao massacre do isolamento familiar jamais tiveram paz para si, assim como não há armistício para a mãe amputada do filho, ou do pai que é enterrado sem que o filho passa vê-lo por derradeiro. Trata-se de um sofrimento permanente e incurável, portanto, imprescritível.

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