Opinião

O defensor público contrário às minorias

Autor

  • Rafael Albuquerque

    é graduando em Direito pelo Ibmec-RJ estagiário de Direito na área criminal e coautor de artigos científicos desenvolvidos no Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento (vinculado à Ibmec-RJ).

11 de outubro de 2020, 7h12

Poderia ser mais uma daquelas antíteses que se ouvem, como "médicos antivacina" ou "pacifistas pró-armamento", mas não é. É pior. É o caso do defensor público da União Jovino Bento Júnior, que propôs uma ação civil pública na última segunda-feira (5/10) em face da companhia Magazine Luiza em razão de seu programa de trainee destinado exclusivamente a candidatos negros [1].

A Defensoria Pública é uma das instituições mais lindas e republicanas de terrae brasilis. Não à toa, a 2ª Seção do STJ reconheceu a condição de custos vulnerabilis da Defensoria Pública no bojo dos embargos de declaração opostos no REsp. nº 1.712.163-SP, de relatoria do ministro Moura Ribeiro, julgado em 25 de setembro de 2019 [2]. É dizer o papel institucional da Defensoria Pública, é olhar pelos cidadãos que detenham alguma vulnerabilidade frente à sociedade para além do critério puramente econômico. Notadamente, a população negra, a comunidade LGBTQI+, povos indígenas etc. possuem o atributo de vulnerabilidade jurídica por razões de jaez históricos que não cabem nesta coluna.

Isso presta-se à seguinte constatação, óbvia até: a fiscalização do ordenamento jurídico cabe ao Ministério Público, nesse caso o do Trabalho, o qual arquivou a denúncia feita sobre o caso. Não cabe à Defensoria Pública da União essa atribuição — embora seja legítima para propor a ação civil pública —, eis que o direito de nenhuma pessoa vulnerável foi violado.

Daí surge a alegação de que haveria um tratamento discriminatório em relação à demais minorias. Em primeiro lugar, uma ação afirmativa direcionada a determinado segmento não significa discriminação aos demais grupos. Suponha-se que a Magazine Luiza possua uma quantidade equitativa de funcionários homens e funcionárias mulheres — é uma suposição, friso, falta-me o dado. Haveria razão em fazer uma ação afirmativa nesse sentido? Penso que não. Condicionar a realização de uma ação afirmativa à inclusão simultânea de todos os grupos marginalizados é contraproducente, para não dizer que pode ser facilmente caracterizado como estratégia de mitigação das ações afirmativas. O outro argumento é a ausência de vedação pela Lei nº 12.288/10 no que tange às pessoas jurídicas de direito privado porque falta de regulamentação não impede, em regra, a materialização de institutos, sendo inclusive antissistêmica uma interpretação desse viés, pois vai de encontro com as ações afirmativas previstas nos artigos 429 da CLT e 93 da Lei nº 8.213/90.

Bom, mas o que dizer quando o próprio subscritor da petição inicial que deflagrou o processo em comento é apoiador de sugestão de projeto levado ao Senado (Sugestão nº 27 de 2019), que propõe a exclusão de Paulo Freire como patrono da educação brasileira por ter sido "de esquerda" (sic) e por seu método ter sido "catastrófico" (sic). Além disso, a exposição da sugestão consigna que o "socioconstrutivismo é a materialização do marxismo cultural" (sic). E, ainda, o método do pedagogo teria demonstrado "em todas as avaliações internacionais que é um fracasso retumbante". O rapaz claramente não tem ideia do que está apoiando. E duvido que tenha lido algo sobre Marx (pois não compunha sua teoria a hegemonia cultural, que passa a existir a partir da releitura feita por Gramsci) ou Paulo Freire ou, ainda, alguma das avaliações internacionais que foram citadas — as quais, aliás, estou curiosíssimo para ler [3].

A alcunha dada à ação afirmativa de "marketing de lacração" possui objetivo claro de desqualificá-la. Contudo, chamou-me a atenção a condenação da conduta do Magazine Luiza por não ser "necessariamente preocupada com as questões sociais que veiculam" e por ter "por objetivo aumentar exponencialmente os lucros das grandes empresas em um futuro relativamente próximo" [4]. Ora, não serei leviano em dizer que toda empresa privada não se importa com causa sociais, em que pese seja difícil conceber a burguesia com algum engajamento diferente daquele com o próprio bolso. Contudo, a questão é: qual o problema de se valer da ação afirmativa como estratégia de marketing? Poder-se-ia protestar pela sua imoralidade, mas certamente não pela sua ilicitude.

Aliás, será que o defensor público signatário da ação civil pública sabe que é antiliberal a medida que pede ao Judiciário? Será que os conservadores sabem que o marxismo, ao qual o defensor público manifestou oposição, é precursor do comunismo e ele também é antiliberal? Ou será que o liberalismo só permite a autonomia da sociedade civil para prejudicar minorias? Enfim, questionamentos. E o paradoxo: ser a favor da ação civil pública torna-lhe menos liberal na economia ao mesmo tempo em que ser contra lhe faz menos meritocrático. É, companheiros, um péssimo dia para ser conservador. Mas não vos desespereis, sempre podereis recorrer ao "duplipensamento".

O que é mais temerário é ver os próprios juristas pensarem podem fazer da Constituição o que quiserem. Chegamos ao ponto em que uma instituição pública voltada para a defesa dos interesses das minorias fundamenta, com base na Constituição da República, a movimentação do Poder Judiciário com o objetivo de impedir uma ação afirmativa, a qual visa justamente a garantia de direitos a determinada minoria. Se fosse em uma sala de uma faculdade, estariam os alunos estupefatos com esse desatino e o professor, com uma expressão de lamento.

São ensinamentos como "a Constituição brasileira é classificada, quanto à ideologia, como eclética, portanto sua interpretação depende do partido que está no poder" (sic) que propiciam haraquiris jurídicos como essa ação civil pública. A Constituição da República é social-democrata, em especial porque os direitos fundamentais são cláusulas pétreas.

É preciso recordar o discurso de Ulysses Guimarães naquele 5 de outubro, há 32 anos: "Quanto a ela (Constituição), discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca". E, se necessário, repeti-lo à exaustão. Deve-se ser totalmente capaz de cumprir os ditames constitucionais, mesmo sem concordar com eles. Os juristas precisam compreender que o Direito não é um mero jogo/instrumento de poder. Ao contrário, a política, a economia e a moral até podem moldá-lo, mas, uma vez posto, o Direito constitui autonomia e nada fora dele existe ou subsiste, tampouco é apto a alterá-lo. O debate público saudável e democrático pressupõe o respeito à Carta da República, assim como a capacidade dos juristas e da sociedade de se resignarem frente ao seu comando naquilo que é pétreo. Basta de juristas-panaceia que pensam poder fazer o que bem entendem do Direito.

Ao tempo em que escrevo, o pedido de tutela de urgência ainda não foi deferido. Acho que só me resta torcer pelo seu indeferimento e, depois, pela improcedência total dos pedidos. Enquanto isso e daqui em diante, precisamos levar mais a sério a formação de nossos juristas.

 

[1] https://www.jota.info/tributos-e-empresas/trabalho/defensor-publico-federal-ajuiza-acao-contra-trainee-para-negros-do-magazine-luiza-06102020.

[2] https://sconºstj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201701829167&dt_publicacao=27/09/2019.

[3] https://revistaforum.com.br/brasil/autor-de-acao-contra-magazine-luiza-apoia-retirada-de-paulo-freire-como-patrono-da-educacao/.

[4] https://static.poder360.com.br/2020/10/0000790-37-2020-5-10-0015-1-compressed.pdf.

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