Nos 30 anos do CDC, a busca pelo equilíbrio entre proteção e segurança jurídica
11 de outubro de 2020, 6h05
Em setembro de 2020, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) chegou ao seu 30º aniversário, que tem sido (justamente) comemorado por vários setores da sociedade brasileira: imprensa, associações de consumidores, operadores do Direito e órgãos dos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo.
É inegável que o CDC trouxe sensíveis avanços para consumidores e fornecedores: regras claras sobre as relações de consumo reduzem custos de transação e insegurança jurídica, ao passo que a facilitação da defesa do consumidor em juízo, mediante o emprego de técnicas como a inversão do ônus da prova e a responsabilização objetiva dos fornecedores de produtos e serviços nos casos de acidente de consumo, serve como efetiva ferramenta para a superação dos entraves que, até então, obstavam a efetiva proteção da parte hipossuficiente da relação.
Se os avanços são inegáveis, os motivos para preocupação também existem. A prática contenciosa em matéria consumerista revela que subsistem desafios para que a defesa do consumidor não ocorra às expensas dos direitos dos fornecedores. Trazemos neste artigo alguns desses principais desafios, em busca de fomentar o debate acerca do tema.
A análise do mais recente relatório "Consumidor em Números", elaborado pela Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública, revela que 69,4% das reclamações registradas na plataforma Consumidor.gov ao longo de 2019 dizem respeito a setores da atividade econômica desenvolvidos sob a regulação de agências federais, cuja atuação também é orientada em prol da defesa do consumidor.
Todavia, vê-se que o alinhamento de objetivos entre a regulação setorial e a defesa do consumidor tem se mostrado insuficiente para garantir a segurança jurídica esperada. Citamos como exemplo caso em que foram consideradas abusivas cláusulas-padrão em contrato de prestação de serviços de telefonia, apesar de estarem redigidas de acordo com as disposições regulatórias pertinentes. No processo administrativo em questão, a Fundação Procon, ao se deparar com cláusula baseada no artigo 52 da Resolução nº 632/2014 da Anatel, que prevê que as prestadoras devem comunicar com antecedência mínima de 30 dias alteração ou extinção de planos, ofertas ou promoções aos consumidores, entendeu que o CDC é "claro ao coibir, ou melhor, ao considerar nula e abusiva cláusula que permita a alteração unilateral do contrato, ainda que o consumidor seja previamente informado". A fundação afirmou ainda que "não basta o consumidor ser avisado quanto à alteração contratual, pois ele tem o direito de não sofrer surpresas nos contratos que celebrou junto a seus fornecedores".
Controvérsias como essa, em vez de contribuir à pacificação das relações de consumo, trazendo maior segurança jurídica aos envolvidos, acabam alcançando o resultado inverso ao expor descompassos entre a regulação e os órgãos de proteção e defesa do consumidor.
Outro ponto que merece atenção é a necessidade de preservação das garantias à ampla defesa e ao contraditório efetivo do fornecedor em processos administrativos sancionadores, em trâmite em órgãos de defesa do consumidor ou agências reguladoras.
A importância e a utilidade da inversão do ônus da prova em prol do consumidor, em juízo, são inquestionáveis. Todavia, tem-se visto com inquietante frequência que órgãos sancionadores têm empregado a inversão do ônus da prova no processo administrativo sancionador, atribuindo aos fornecedores o (muitas vezes impossível) dever de comprovar a inocorrência da infração contra si imputada.
A jurisprudência dos tribunais mostra tendência a se consolidar no sentido de que o dever de provar a ocorrência de infrações é do órgão acusador [1]. Ainda assim, a necessidade de obtenção deste reconhecimento em juízo, após a tramitação administrativa (e a eventual imposição de penalidades contra o fornecedor), torna a preservação das garantias processuais do fornecedor extremamente onerosa.
Finalmente, destaca-se que a discricionariedade da qual são dotados os órgãos de defesa do consumidor para o cálculo e aplicação de sanções oriundas do exercício do seu poder de polícia podem conter distorções que ferem a isonomia no tratamento a fornecedores e, por vezes, violam as disposições legais e constitucionais atinentes à culpabilidade, individualização da pena, razoabilidade e proporcionalidade.
Exemplo é verificado no Estado de São Paulo, que detém a maior fatia de participação na economia e população nacional, e onde atua um dos órgãos mais ativos na defesa do consumidor no país. Editada em dezembro de 2019, a Portaria nº 57 da Fundação Procon de São Paulo tem como base de cálculo da sanção em seu artigo 34 a receita mensal bruta do fornecedor, que é multiplicada por um fator redutor e, posteriormente, por fatores de agravamento em razão da gravidade da infração e da vantagem auferida pelo fornecedor.
Conquanto a metodologia em questão contenha referência a todos os elementos previstos no artigo 57 do CDC [2], dela resulta uma indevida relevância ao porte econômico do fornecedor: desde que a receita mensal bruta de um fornecedor "A" seja oito vezes superior à de "B", ainda que este fornecedor "A" tenha praticado uma infração de menor relevância, sem dela ter auferido vantagem, a sanção a ele imposta será equivalente à de "B", ainda que "B" tenha agido de modo nefasto contra consumidores e daí obtido vantagem.
Por exemplo, contrastam-se: a) um estabelecimento local de comércio de alimentos que venda produtos com prazo de validade ultrapassado; com b) um provedor de serviços de internet que tenha ultrapassado o prazo para a retirada de um modem da residência de um consumidor após a solicitação de cancelamento dos serviços. Basta que o faturamento do comerciante de alimentos com validade ultrapassada seja inferior (até oito vezes) ao do provedor de serviços de internet para que a sanção eventualmente imposta aos dois seja a mesma, apesar da notável discrepância da gravidade das condutas e inexistência de vantagem ao fornecedor no segundo caso.
Ou seja, o descompasso entre a fixação dos valores das multas a partir da metodologia empregada pela Fundação Procon em São Paulo em relação à natureza das infrações e da (in)existência de vantagem auferida pelo fornecedor será mais exacerbado tanto maior for o seu faturamento.
A constatação é relevante na medida em que, como já observado, a maior quantidade de reclamações de consumidores está relacionada a setores regulados, em que serviços são prestados de forma massificada. É natural, portanto, que os fornecedores tenham receitas mensais brutas elevadas e sejam penalizados em valores exacerbados unicamente em razão do seu porte econômico, com pouca — por vezes nenhuma — influência dos demais fatores no cálculo da penalidade.
O saldo dos 30 anos do CDC — e da cultura de defesa do consumidor — por ele inaugurada é inegavelmente positivo. Não obstante, os apontamentos aqui feitos servem de provocações para que se possa amadurecer, cada vez mais, a defesa do consumidor, preservando também as garantias à segurança jurídica, o devido processo legal e a razoabilidade e a proporcionalidade na aplicação de sanções, também essenciais ao bom funcionamento dos mercados e da sociedade brasileira.
[1] Por exemplo, em matéria disciplinar, STJ, MS 15.783/DF, Rel. ministro Napoleão Maia Filho, Primeira Seção, DJe 30/06/2017. Especificamente em matéria consumerista, vide TJRS, Apelação Cível, Nº 70076487354 (0013947-87.2018.8.21.7000, Segunda Câmara Cível, relatora desembargadora Laura Louzada Jaccottet, Julgado em: 31/08/2018.
[2] "Artigo 57. A pena de multa, graduada de acordo com a gravidade da infração, a vantagem auferida e a condição econômica do fornecedor, será aplicada mediante procedimento administrativo, revertendo para o fundo de que trata a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, os valores cabíveis à União, ou para os fundos estaduais ou municipais de proteção ao consumidor nos demais casos".
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