Embargos Culturais

O escritor alagoano Graciliano Ramos e as vidas secas

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

11 de outubro de 2020, 8h01

Na crônica "Em nome da seca", Graciliano Ramos (1892-1953) problematizou uma anunciada maldição do nordeste brasileiro. Graciliano (que era alagoano) concedia que certamente havia demasiada miséria no sertão, como em toda parte, mas que não era indispensável que a chuva faltasse para que o camponês pobre se desfizesse "dos filhos inúteis". A passagem é dura, chocante. Confrontada com "Vidas Secas", um de seus romances mais representativos, a passagem apenas confirma uma percepção de sertão, que Graciliano descrevia, mas que, necessariamente, não se confirmava na vida real. De qual sertão falava? Graciliano pretendia uma explicação para a penúria e para o êxodo. Relatou o drama dos retirantes. "Vidas Secas" é um livro que se preocupa com a opressão. É um livro que permite que reflitamos em torno do tema da justiça.

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"Vidas Secas" se inicia com retirantes (Mudanças) e se encerra com a partida (Fuga). Na passagem desconcertante de que não haveria necessidade de falta de chuva para o abandono de um filho, Graciliano, creio, em relação a essa sina, culpava menos a natureza e mais a exploração e o descaso. Em "Vidas Secas", já em forma de romance, essa questão foi retomada. O livro foi publicado pela Editora José Olympio em 1938. Graciliano fora libertado da prisão no ano anterior, e já vivia no Rio. Esteve na capital em 1914, retornando para Alagoas no ano seguinte por causa da morte de alguns irmãos na epidemia da peste bubônica. Depois de solto da prisão, viveu no Rio até a morte.

Segundo Ricardo Ramos, filho de Graciliano, o título original de "Vidas Secas" era "O mundo coberto de penas". É um livro simples para ler e complexo para pensar. Em carta à esposa, Heloísa de Medeiros Ramos, datada de 30 de dezembro de 1935, Graciliano comentava que não era necessário arrumar histórias complicadas demais. Criticava José Américo de Almeida (ainda que fossem amigos). Os livros de José Américo eram cheios de combinações, "que depois de meses matutando o escritor ditava uma droga à datilógrafa". Palavras de Graciliano.

 "Vidas Secas" contém 13 capítulos que podem ser lidos em qualquer ordem, direta, invertida, salteada, sobreposta, repetida. Já se observou que "Vidas Secas" é um "romance desmontável". O livro se desdobra em torno de Fabiano (o jagunço deslocado, perturbado pelas limitações de domínio da linguagem, explorado, desconfiado), de Sinha Vitória (atentem bem, não há o acento oxítono; "sinhá", acentuadamente, era reservado para as patroas), de dois filhos (que não têm nome; há, apenas, o menino mais novo e o menino mais velho). O menino mais novo quer ser igual ao pai, a quem admira. O menino mais velho ouve a palavra "inferno", cujo significado não compreende, pedindo que a mãe lhe explicasse o que era. A pobreza do vocabulário é retomada no capítulo referente à ida à festa de natal, quando não sabiam como nomear tudo que viam. Estavam rotos, mal vestidos, sujos. Foram ignorados. Sinha Vitória urinou de cócoras, atrás de uma barraquinha; viveu inusitado sentimento de liberdade.

Há uma cachorra (Baleia, cativante). "Vidas Secas" tem como ponto de partida um conto que descreve Baleia, que fazia parte da família. Fabiano terá de sacrificá-la. Baleia sonhava com um mundo no qual haveria muitos preás. Há também um patrão distante, a par do Soldado Amarelo, que certamente simboliza um agente público desprezível (que Graciliano identifica com o "governo"). Há ainda a menção a uma benzedeira (Sinha Terta). Vez ou outra um preá ou um papagaio circulam, matando a fome dos retirantes ou aviando sonhos (sonhados por Baleia). Há também animais mortos e abutres.

Há um tal de "seu Tomás da bolandeira" cuja cama construída com tiras de couro parece ser o maior desejo de Sinha Vitória. O desejo por uma cama, em alguma interpretação freudiana, pode significar a aspiração por uma vida sedentária e resolvida. Sinha Vitória deu um chute na cachorra Baleia, talvez para se vingar de Fabiano, que não lhe providenciava a cama de couro que pedia. Percebe-se uma tendência à animalização de Fabiano (zoomorfização), ao mesmo tempo em que se verifica uma humanização da cachorra Baleia (antropomorfização). O leitor ainda encontra Seu Inácio, dono da venda, que parece adulterar tudo o que vendia. Misturava água na pinga.

"Vidas Secas" é um livro sobre a humilhação permanente do sertanejo. Os retirantes buscam sombra. Passam fome. Comem o papagaio que morreu. Baleia conseguiu um preá, que entregou à família. Sinha Vitória deu um beijo no focinho de Baleia, lambendo os restos do sangue do roedor morto. Ao acertar as contas com o patrão, subtraindo os débitos dos créditos que supostamente tinha, os números nunca batiam. Fabiano sempre perdia. Calculando com Sinha Vitória, que usava sementes no chão para inventariar o quanto poderiam receber, Fabiano alcançava uma matemática que o patrão recusava. As diferenças eram atribuídas aos juros. Segundo o narrador, "o sertanejo endividava-se (…) ao chegar a partilha, estava encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia". Fabiano não podia dizer em voz alta que aquilo era furto. Fabiano recuou, pensando na família.

A humilhação maior ocorre no capítulo "Cadeia", no qual temos um personagem alegórico: o Soldado Amarelo. Fabiano fora até a feira da cidade comprar sal, farinha, feijão e rapadura. A esposa lhe pedira uma garrafa de querosene e um corte de chita vermelha. Recusando negociar, criticando os preços, Fabiano viu-se jogando na botega, e ao seu lado, o Soldado Amarelo. Deixando a mesa sem despedir-se da autoridade, Fabiano provocou a ira do soldado prepotente. Fabiano foi preso, apanhou na prisão. Fabiano respeitava a autoridade. Ingenuamente, no entanto, acreditava que autoridades foram pensadas para proteger pessoas. É a literatura militante de Graciliano.

Em outro capítulo, Fabiano encontrou o Soldado Amarelo. Estavam no meio de uma "vereda que ia desembocar na lagoa seca, torrada, coberta de catingueiras e capões do mato". Nesse momento e estavam apenas os dois Fabiano poderia matar o desafeto. Sem saber (e sem querer) chegou a atingi-lo. Era, no entanto, um soldado magrinho, enfezadinho, que tremia. Isto é, em outra situação, na qual não havia a vantagem da autoridade constituída, o Soldado Amarelo se apequenava. Fabiano se perguntava se "aquilo" ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas. A redução do Soldado Amarelo a um pronome demonstrativo "aquilo" é indício de que na percepção do narrador onisciente a autoridade desumanizava-se. Fabiano não chegou ao fim de um acerto de contas e o leitor fica em dúvidas se há algum arrependimento nessa recusa. Fabiano teve pena do Soldado Amarelo. Há em seu gesto uma medida de perdão. Fabiano se engrandece na avaliação de um leitor humanista.

"Vidas Secas" é também uma especulação em torno das limitações linguísticas dos personagens do sertão. Há uma recorrência a grunhidos e a conversas desconexas. Fabiano fala uma língua animalesca. Os diálogos entre Fabiano e Sinha Vitória são marcados por interjeições e exclamações sem sentido; não estão tratando do mesmo assunto. O narrador reconhece (na pele de Fabiano) que seu vocabulário era limitado e que, em horas de comunicabilidade se enriquecia com expressões do misterioso e admirado "seu Tomás da bolandeira". Tomás talvez trabalhava na cana-de-açúcar, ou mesmo possuía um engenho. Nos engenhos a bolandeira era a grande roda cheia de dentes que girava sobre a moenda. Não sabemos da origem dessa criatura; tem-se a impressão de que fora patrão de Fabiano. Era um homem que vivia com livros. Cortês, ainda assim era obedecido. Fabiano o admirava.

Fabiano se aproximou do cangaço, mas fraquejou na hora de tomar atitudes. No tempo de Graciliano, o cangaceiro já era uma espécie em extinção. Na crônica "Em nome da seca", acima mencionada, Graciliano afirmava que o cangaceiro fora uma "espécie de Quixote que se rebelava contra a ordem para corrigir injustiças, por questões de honra ou desavença política". Já em seu tempo, primeira metade do século XX, o cangaceiro era uma figurava que lutava para não morrer de fome. O cangaceiro-herói tomava armas ao lado de parentes e aliados, segue Graciliano, para eliminar o "delegado, o juiz, todas as autoridades que favoreciam os seus inimigos". O cangaceiro do tempo de Graciliano era, em sua visão, um bárbaro, monstruoso, que resultava da desorganização econômica. Entre os primeiros (heróis), Graciliano classificava Jesuíno Brilhante. Entre esses últimos, Lampião. Graciliano repudiava visões do nordeste centradas no folclore, no burlesco e no cômico.

Fabiano não tomou posição quanto a esses tipos ideais. Faltou-lhe força, entusiasmo, motivos. Por vezes era hostil com os filhos; ao mais velho, no início do livro, refere-se como "condenado do diabo" e determina que ande. Andavam o dia todo. Estavam cansados e famintos. O narrador conta-nos que "o pirralho não se mexeu e Fabiano desejou matá-lo, (…) tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça". É na fronteira do desespero com a falta de opções que Graciliano localiza a agressividade com os mais fracos como uma forma de superação. Por outro lado, Fabiano tomou consciência da violência que praticaria. Arrependeu-se. Carregou o menino nas costas.

Incapacitados de erguerem vozes e forças contra quem os humilha, humilhados despejam vozes e forças contra quem deles depende, engatilhando um círculo interminável de violência e opressão. O mais fraco, fraquíssimo, é, nesse contexto, mais fortemente oprimido. O Menino mais Velho e o Menino mais Novo (agora grafados como nomes próprios, que não têm, ou desconhecem) marcam uma zona de total falta de proteção e amparo. Deixando-se Fabiano, Sinha Vitória, e mesmo a Baleia, sobre quem tanto se escreveu, uma possível chave interpretativa para "Vidas Secas" aponta para uma olhada misericordiosa para esses sem-nome que transitam pelo mundo. Talvez sejam os verdadeiros heróis de uma imaginária ordem justa, porque a eles se negou dignidade, justamente porque nem o nome próprio possuem.

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