Opinião

A impossibilidade de recurso da decisão absolutória injusta do Tribunal do Júri

Autor

10 de outubro de 2020, 17h09

O cancioneiro popular ainda entoa os versos de Raul Torres e João Bosco Pacífico em "Cabocla Tereza", na confissão do feminicida que, movido pelo sentimento egoístico de posse, ceifou a vida de sua companheira na forma trazida nos versos "O meu sonho nesse oiá, paguei caro meu amor, pra mór de outro caboclo meu rancho ela abandonou. Senti meu sangue fervê, jurei a Tereza matá, o meu alazão arriei e ela eu vô percurá. Agora já me vinguei, é esse o fim de um amor, esta cabocla eu matei, é minha história, doutor (sic)".

O machismo estrutural retratado nas estrofes da música popular brasileira escancara a realidade de suas mulheres que pagam com a vida o seu direito de escolha e são punidas quando seus algozes são absolvidos injustamente, mesmo com autoria confessada em detalhes.

Nesse cenário cultural, um feminicídio tentado, semelhante ao narrado na canção, ganhou repercussão no julgamento do HC/MG nº 17.877 que tramitou perante o Supremo Tribunal Federal, tendo como paciente réu confesso de tentativa de homicídio de sua companheira absolvido pelo Tribunal do Júri da Comarca de Nova Era (MG).

Considerando que a decisão dos jurados era manifestamente contrária à prova dos autos, representando cultura e costume de tolerância com a violência contra a mulher, o Ministério Público interpôs recurso de apelação contra o veredicto injusto, oportunidade em que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais proveu o apelo e determinou um novo julgamento perante o tribunal popular, acórdão esse confirmado em sede de Recurso Especial pelo Superior Tribunal de Justiça.

Para refutar a determinação do STJ de novo julgamento do agressor, a Defensoria Pública impetrou Habeas Corpus perante a Supremo Tribunal Federal alegando o princípio da soberania dos veredictos em que ponderou que a absolvição objurgada correspondia à livre convicção dos jurados que eram dispensados de fundamentarem o voto. O pedido e seu fundamento foram prontamente recebidos pela Suprema Corte, que concedeu a ordem para restabelecer a decisão absolutória, tendo como votos vencidos os ministros Alexandre de Moraes e Luis Roberto Barroso [1].

Ocorre que a decisão do STF no HC/MG 17.877, além de injusta e de caracterizar desamparo à vítima da violação a direito humano, atinge o postulado da proporcionalidade que dirige o Direito Penal brasileiro e corresponde a uma decisão em descompasso com a Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como com a sua interpretação estampada nos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

É cediço que o princípio da proporcionalidade não se esgota na proibição de excesso do Estado, mas também está atrelado a um dever de proteção dos direitos fundamentais e direitos humanos, inclusive quanto às agressões provenientes de terceiros, que leva à proibição da proteção insuficiente desses direitos. A impossibilidade de recorrer do veredicto injusto configura proteção deficiente à vítima da violação [2].

A decisão do Supremo Tribunal Federal afrontou sobejamente o artigo 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, portanto totalmente inválida por ser inconvencional, uma vez que o dispositivo é contundente ao prever que toda pessoa vítima de violação de direitos humanos tem direito a um recurso simples e rápido perante juiz ou tribunal competente.

Importante sublinhar que a Convenção Americana de Direitos Humanos integra a ordem jurídica brasileira e goza de status hierárquico superior às leis domésticas conforme já decidiu o STF (RE 466.343-1 São Paulo. rel. min. Cezar Peluso. J. 13/12/2008), quando considerou os tratados internacionais de direitos humanos como normas supralegais no ordenamento jurídico pátrio [3].

Ademais, o Decreto Presidencial 4.463/2002, que promulgou a declaração de reconhecimento da competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, impõe como "obrigatória, de pleno direito e por prazo indeterminado, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos".

Portanto, o Supremo Tribunal Federal, ao decidir o Habeas Corpus, deveria levar em conta as normas constitucionais, as normas convencionais e os precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, exercendo o controle de convencionalidade das normas internas [4], adotando sempre as que possuem o maior espectro de proteção ao direito violado, que no caso foi o direito à vida da vítima, consoante o que determina o princípio pro homine ou pro persona, o que não ocorreu.

Flávia Piovesan afirma que a regra interpretativa do princípio pro homine indica a norma mais benéfica e protetiva à vítima [5], razão pela qual compreende-se que impedir o recurso do veredicto absolutório, diante de provas contundentes de materialidade e autoria de violação ao direito à vida, corresponde a proteção deficiente do bem jurídico tutelado, além de grave violação à ordem jurídica brasileira que ratificou a CADH.

O artigo 25 da CADH, vilipendiado pela decisão que impossibilitou recurso da decisão injusta do conselho de sentença, trata da proteção judicial das vítimas de agressões e de seus familiares e determina que os Estados adotem um sistema de recurso efetivo à disposição daqueles que alegam ter seus direitos humanos violados, garantindo todos os remédios efetivos para a proteção dos direitos contemplados na Convenção [6].

O sistema processual penal brasileiro foi construído para que o Ministério Público, na persecução penal, atue na defesa da vítima, uma vez que, por vocação constitucional é o titular exclusivo da ação penal pública, o dominus litis, exercendo parte da soberania do Estado, de forma que, ao aplicar o artigo 25 no Direito Processual Penal brasileiro, há que se considerar que é o parquet que avia os recursos e providências cabíveis na seara penal para repreender e punir as violações de direitos humanos, portanto a ele, como instituição legitimada à propositura da ação, caberãoo os recursos de que trata a CADH.

Impedir o recurso das decisões injustas do Tribunal do Júri é inconvencional não somente por força do artigo 25 da CADH, como também por não observar os precedentes da Corte IDH, mormente o entabulado no Caso Roche Azeña e Outros vs. Nicarágua, que trata da impossibilidade de recurso da decisão absolutória do júri popular, oportunidade em que a corte declarou a responsabilidade internacional do Estado-parte por violação a direitos humanos e reiterou que todas as pessoas que sofreram abusos ou violações dos direitos humanos devem ter acesso equitativo e efetivo à Justiça, acesso a um recurso efetivo, a uma reparação adequada, eficaz e rápida dos danos sofridos, bem como à informação relevantes sobre as violações de seus direitos e os mecanismos de reparação [7].

Não bastasse a dissonância da decisão do STF com a Convenção Americana de Direitos Humanos, ela ainda resgata a possibilidade de julgamentos com base na "legítima defesa da honra", já extirpado pela jurisprudência pátria desde 1991, e ressaltado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos quando apreciou as denúncias de Maria da Penha em face do Estado brasileiro por não investigar e punir adequadamente as violações de direitos humanos, oportunidade em que relatou que:

"Apesar de o Tribunal Supremo do Brasil ter revogado em 1991 a arcaica 'defesa da honra' como justificação para o assassinato da esposa, muitos tribunais continuam a ser relutantes em processar e punir os autores da violência doméstica. Em algumas áreas do país, o uso da 'defesa da honra' persiste e, em algumas áreas, a conduta da vítima continua a ser um ponto central no processo judicial de um delito sexual. Em vez de se centrarem na existência dos elementos jurídicos do delito, as práticas de alguns advogados defensores — toleradas por alguns tribunais — têm o efeito de requerer que a mulher demonstre a santidade de sua reputação e sua inculpabilidade moral a fim de poder utilizar os meios judiciais legais à sua disposição. As iniciativas tomadas tanto pelo setor público como pelo setor privado para fazer frente à violência contra a mulher começaram a combater o silêncio que tradicionalmente a tem ocultado, mas ainda têm de superar as barreiras sociais, jurídicas e de outra natureza que contribuem para a impunidade em que amiúde enlanguescem" [8].

No relatório, a Comissão louvou a atuação do Estado brasileiro quando o STF, em 1991, invalidou o conceito arcaico de "defesa da honra" como causa de justificação de crimes contra as esposas, no entanto observou que "em algumas áreas do país, o uso da "defesa da honra" persiste e, em algumas áreas, a conduta da vítima continua a ser um ponto central no processo judicial de um delito sexual" [9], recomendando ao Estado que rompa as suas barreiras sociais, jurídicas e de outra natureza que contribuem para a impunidade de delitos desse jaez. Tal fato faz com que a decisão do STF não observe a recomendação da CIDH, o que pode levar a nova denúncia do Estado brasileiro perante a Corte IDH.

Ademais, o Brasil é signatário da Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher de 1994), que estabelece que a violência contra a mulher é uma ofensa à dignidade humana e uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres e dispõe no artigo 7º que os "Estados-partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em: e) tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher".

Resta, com isso, incontestável que a absolvição de um acusado confesso de ter tentado matar a sua companheira e a impossibilidade de recurso dessa decisão desarrazoada, injusta e contra a ordem jurídica, infringe o artigo 7º da Convenção de Belém, na medida em que representa a tolerância com a violência perpetrada em desfavor da mulher, afetando sobejamente sua dignidade, o que não coaduna com o fundamento (artigo 1º, III, da CF) e nem como os objetivos (artigo 3º, da CF) da República Federativa do Brasil.

O Supremo Tribunal Federal, diante de uma violação a direito humano e uma injusta decisão que fomenta o menoscabo à vida e à integridade da mulher, deveria pautar-se nas normas mais protetivas ao direito violado, e não colocar obstáculo à apropriada punição às agressões e violações, que já ensejaram condenações do Brasil pela Corte IDH.

 


[1] STF HC/MG 178.177. relator min. Marco Aurélio de Melo. j. 29.09.2020.

[2] Neste sentido: "soberania não é sinônimo de onipotência desenfreada e descomedida. Não se confunde com irracionalidade nem com arbitrariedade. Decisões irracionais e abusivas não coadunam com o Estado Democrático de Direito. Isso significa dizer que as decisões dos jurados devem encontrar respaldo no ordenamento jurídico e no conjunto probatório do processo, ainda que advenham da consciência (sistema da íntima convicção). Ora, nenhum sistema jurídico afeto a um Estado que pretenda ser Democrático de Direito suporta resoluções de demandas baseadas na irracionalidade e no abuso de poder. Nenhum julgador, togado ou leigo, detém poder para condenar ou absolver fora das hipóteses legais (artigo 386 do Código de Processo Penal)[2]. Afinal, o erro judiciário tem duas faces: a positiva, que é a condenação de inocente; e a negativa, que a absolvição de culpado." (PIEDADE, Antonio Sergio Cordeiro; LOUREIRO, CAIO, Márcio Loureiro; NOVAIS, César Danilo Robeiro, FARIA, Marcelle Rodrigues da Costa. Tribunal do Júri: Recurso contra Veredicto Injusto. In Conjur. 15.07.2020).

[3] O entendimento do STF em relação à supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos está sedimentado em inúmeros precedentes da Corte, como o do exarado no julgamento do HC 185051 ED / SC – Santa Catarina "a questão da posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos (natureza constitucional ou caráter supralegal?). Doutrina. Precedentes do Supremo Tribunal Federal que conferem a esses diplomas internacionais a condição de supralegalidade. Posição pessoal do Relator (Ministro Celso de Mello) que atribui qualificação constitucional, inclusive com apoio na noção conceitual de bloco de constitucionalidade, a tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil ou a que o Estado brasileiro haja aderido. "Pacta sunt servanda" (Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, Artigo 26)." (STF. HC 185051. relator mini. Celso de Mello. J. 21/07/2020).

[4] Para detalhamento ver: MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Controle Jurisdicional da Convencionalidade da Leis. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

[5] PIOVESA, Flávia; FACHIN, Melina; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. São Paulo: Forense, 2019, p. 239.

[6] Idem, p. 231.

[7] Corte IDH. Caso Roche Azeña vs. Nicarágua. Sentença 03. 06. 2020, parágrafo 91.

[8] Comissão IDH. Relatório n.º 54/2001, Caso 12.051: “Maria da Penha Maia Fernandes Vs. Brasil”, de 04.04.2001.

[9] Idem.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!