Diário de classe

A atuação dos juristas na formação do constitucionalismo moderno

Autores

  • Danilo Pereira Lima

    é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar) doutor e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica vinculado ao CNPq e do grupo DASEIN — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Isadora Ferreira Neves

    é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) como bolsista Capes/Proex e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

10 de outubro de 2020, 12h18

A criação do Leviatã foi responsável pela superação de diversos núcleos autônomos de poder espalhados por todo o território europeu. Diante da ameaça crescente de um poder despótico, o constitucionalismo surgiu para melhor controlar o Leviatã e evitar experiências sufocantes como a do totalitarismo, ao reivindicar a institucionalização de diversas técnicas de limitação do poder e de defesa das liberdades.

Sua formulação foi atravessada por muitas tendências políticas que enxergavam o exercício arbitrário do poder como um grave problema e, por isso, recebeu a influência do liberalismo na crítica ao absolutismo; do conservadorismo na crítica ao despotismo das maiorias; e também das reivindicações dos movimentos operários por direitos sociais e sufrágio universal, que somente se consolidaram a partir do século XX. Por meio dessa complexa conjunção de movimentos políticos, situados em diferentes posições ideológicas, é que surge o constitucionalismo.

A luta de todos esses movimentos — contra a enorme engrenagem de poder firmada pelo Estado — fez com que o constitucionalismo se transformasse num importante movimento de luta pelas liberdades civis, políticas e sociais. Nesse sentido, o direito começou a deixar de lado sua condição instrumental de mero organizador das estruturas de poder, para passar a ocupar um papel de maior autonomia em relação à política, no sentido de submeter o exercício do poder ao controle constitucional.

A atuação do jurista na configuração do constitucionalismo moderno pode ser bem observada nas revoluções inglesa (século XVII) e estadunidense ( século XVIII). Nos dois casos os juristas desempenharam um importante papel na construção do Estado de Direito. Suas formulações teóricas e suas contribuições nas disputas políticas serviram para domesticar o exercício do poder por meio do direito. Se antes, durante a construção do Estado absolutista, o direito havia servido muito mais para erguer as colunas do poder estatal, que no caso se faziam necessárias para a formação de uma autoridade comum em substituição às relações sociais presentes no medievo; a partir do constitucionalismo moderno, os juristas substituíram sua concepção instrumental sobre o direito pela defesa de uma ordem política limitada pelo direito. Desse modo, entram em cena importantes atores como o juiz inglês Edward Coke e os pais fundadores da democracia estadunidense.

No século XVII, a Inglaterra foi atingida por uma série de acontecimentos políticos que ajudaram a moldar seu sistema político. O historiador Christopher Hill definiu esse período como o século das revoluções, já que a sociedade e o Estado moderno inglês, fundamentais para a consolidação de seu império marítimo nos séculos XVIII e XIX, ganharam forma a partir dos movimentos políticos que criticavam o tamanho das prerrogativas reais 1.

Os momentos mais marcantes desse processo político ocorreram durante a guerra civil (1642-1651) e a revolução Gloriosa (1688-1689). Em ambos os casos o Parlamento se apresentou como um obstáculo às intenções políticas do monarca, que na tentativa de imitar seu colega frances e estabelecer-se como um déspota, acabou sendo obrigado a aceitar a supremacia parlamentar. Numa perspectiva historicista, que promove transformações políticas mais lentas e não descarta totalmente o acúmulo institucional de anos anteriores, a Inglaterra foi capaz de modificar sua estrutura política sem ao mesmo tempo eliminar sua monarquia – com exceção do curto período em que Oliver Cromwell assumiu o governo como Lorde Protetor (1653-1659). Desse modo, sem a radicalidade presente na revolução francesa, as revoluções inglesas definiram que o rei poderia reinar, mas não governar.

A partir desse caráter historicista, muito se tem falado da disputa política entre o Parlamento e as forças monarquistas na formação da matriz constitucional inglesa, deixando um pouco de lado o papel desempenhado pelos juízes no processo de definição jurisprudencial dos limites constitucionais dos poderes do monarca e do Parlamento 2. Para além da ideia de supremacia do Parlamento, muito comentada por analistas do sistema político inglês, também é importante ressaltar o papel dos juízes na construção do direito.

Ao contrário da Europa continental, que no caso francês teve a atividade legislativa como um momento fundamental para a construção de códigos que deveriam limitar a atuação dos juízes do ancien régime; e que no caso alemão teve na atuação dos eruditos professores um elevado apego aos estudos de Bolonha, voltando-se, portanto, para uma maior recepção do direito romano em terras germânicas; a construção jurisprudencial do direito inglês optou pela edificação de um corpo jurídico comum estabelecido a partir de decisões judiciais tomadas no passado, sendo estas responsáveis pela definição de uma tradição jurídica baseada no sistema de precedentes3, no qual “[…] decir common law era decir también supremacía de la ley; reconocer, por tanto, que ésta representaba algo fundamental, ya que garantizaba los derechos de los ingleses, que ningún poder legítimo en el mundo habría podido usurpar”4. Desse modo, falar do constitucionalismo inglês somente a partir da supremacia do Parlamento contribui para obscurecer a atuação dos juízes do common law na construção do Estado de Direito, ao jogar nas sombras o papel desempenhado pelo juiz Edward Coke como um importante arquiteto das liberdades constitucionais.

Durante a época em que o juiz Coke se manifestou contra os excessos das prerrogativas reais, a Inglaterra vivenciava um momento em que a dinastia Stuart oferecia outro significado para a relação entre o poder monárquico e o poder divino, com o claro intuito de oferecer um fundamento despótico para a sua autoridade. Diferentemente das teorias medievais, que centravam a origem divina apenas no oficio monárquico, os teóricos próximos dos Stuart buscavam transferir para a pessoa do rei o elemento sagrado, no sentido de deslegitimar qualquer tipo de resistência às suas vontades pessoais.

Assim, se no medievo os questionamentos feitos ao monarca que não governava retamente poderiam alcançar a sua pessoa, sem que simultaneamente o sagrado ofício real fosse atingido; para os teóricos favoráveis aos Stuart, a oposição à pessoa do rei deveria ser considerada como um ato contrário ao próprio Deus, já que todo monarca descenderia de Adão, a quem Deus teria outorgado pela primeira vez o poder de soberania, conforme a obra Patriarca de Robert Filmer 5.

Desse modo, ao reforçarem o caráter divino da pessoa do monarca, os teóricos vinculados ao rei fortaleciam a prerrogativa real e colocavam o monarca acima do próprio direito. É por isso que o filósofo Francis Bacon, aliado político dos Stuart, dizia que os juízes deveriam agir como leões abaixo do trono, sem criar qualquer tipo de obstáculo às prerrogativas reais; enquanto Edward Coke, em sentido completamente diferente, afirmava que os juízes deveriam se comportar como leões em defesa das liberdades dos cidadãos, com o claro objetivo de sobrepor o common law às prerrogativas do monarca6.

Em oposição aos desmandos dos Stuart, o juiz Coke deu corpo a um projeto constitucional baseado na subordinação do monarca à autoridade do direito 7. Foi a partir desse entendimento constitucional que ele se posicionou na disputa com o arcebispo de Canterbury em torno dos Writs of prohibition e também a respeito dos excessos praticados pelas Proclamations. Segundo Coke, o direito construído ao longo da história, responsável pela afirmação das liberdades frente a qualquer autoridade, não poderia ser instrumentalizado pelo monarca, ao ponto de comprometer a autonomia do common law. Assim, nos dois casos Coke reforçou a ideia de separação entre o gubernaculum e a iurisdictio.

A necessidade de subordinar o exercício do poder político ao direito também é encontrada em outra decisão do juiz Edward Coke. No Bonham’s case, o juiz Coke foi provocado pelos advogados de Thomas Bonham, um médico formado pela Universidade de Cambridge, mas que estava impedido de exercer a profissão pelo Colégio de Médicos — um órgão que desde 1540 havia recebido do Parlamento amplos poderes para a fiscalização do exercício da medicina.

Após a prisão de Thomas Bonham, o Tribunal do common law foi chamado a se manifestar e, por meio do juiz Edward Coke, proferiu uma decisão extremamente importante para a configuração do Estado de Direito inglês, ao diferenciar as infrações penais das administrativas (exercer medicina de forma incorreta e exercer medicina sem licença); apontar para a impossibilidade de um mesmo órgão se colocar como julgador e parte no processo (Colégio de Médicos); e apontar para a possibilidade de revisão judicial de qualquer ato normativo – seja ele aprovado pelo monarca ou pelo Parlamento – que esteja em contradição com o common law, já que o Act of Parliament que regulamentava a atuação do Colégio de Médicos encontrava-se em clara contradição com a longa tradição jurídica do common law 8.

Desse modo, não apenas a luta do Parlamento, mas também a atuação de juristas como Edward Coke ajudou a formular uma concepção negativa de liberdade para os ingleses, pela qual, segundo Christopher Hill, “[…] liberdade significa não ser incomodado, não sofrer prisão arbitrária, não pagar tributo para o qual ele não votou, não prestar serviço militar obrigatório (exceto os muito pobres), não sofrer interferência do governo em sua atividade econômica, não sofrer perseguição religiosa” 9.

Nessa perspectiva de afirmação do constitucionalismo, do outro lado do oceano Atlântico a velha tradição do common law tomou novos contornos após o processo de independência das treze colônias em 1776. Herdeira do contratualismo de Locke e das decisões judiciais do juiz Edward Coke, a república estadunidense assumiu a difícil tarefa de construir uma ordem política limitada pelo direito, que ao mesmo tempo fosse capaz de evitar a anarquia social e impedir o exercício despótico do poder contra as liberdades individuais.

Após o processo de independência, os pais fundadores da Constituição estadunidense receberam a missão política de costurar um pacto capaz de impedir a fragmentação do território estadunidense. Era necessário encontrar uma solução que contemplasse a centralização governamental e a descentralização administrativa, no sentido de que um governo nacional tivesse condições de impedir a anarquia separatista – como ocorreu mais tarde no processo de independência da América Latina – sem que, ao mesmo tempo, a autonomia local dos estados fosse suprimida.

Por isso, o dilema dos delegados da Convenção era encontrar uma fórmula constitucional capaz de contemplar dois pontos: a organização do poder e a sua limitação pelo direito. Composta majoritariamente por advogados, a Convenção da Filadélfia substituiu a confederação por uma República federalista. Para que os Estados Unidos chegassem neste formato institucional, um de seus principais articuladores, James Madison, importou da Europa a famosa ideia de freios e contrapesos de Montesquieu, pela qual o equilíbrio institucional entre os Poderes deveria ser formulado da seguinte forma: “Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder” 10.

Mas essa complexa obra institucional, iniciada pelos delegados da Convenção da Filadélfia em 1787 — entre os quais o presente trabalho destacou as marcantes atuações de Madison e Hamilton —, ainda estava incompleta, pois ainda não havia definido as bases institucionais para a sustentação da supremacia da Constituição em relação às leis aprovadas pelo Legislativo. Afinal, em casos em que o Legislativo aprovasse uma lei contrária à Constituição, quem se encarregaria de declará-la inconstitucional? O Executivo? O próprio Legislativo? Ou, quem sabe, a Suprema Corte do país? A solução judicial somente iria se consolidar no início do século XIX, mais precisamente no ano de 1803, por meio do famoso caso Marbury v. Madison.

A decisão prolatada pelo chief justice John Marshall marca o momento em que uma longa tradição de controle judicial da atividade legislativa, que começou a ganhar seus primeiros contornos a partir do século XVII, com o juiz Edward Coke, consolida-se como o meio institucional mais adequado para a afirmação da supremacia da Constituição.

É claro que esse mecanismo de controle de constitucionalidade não era bem visto por todas as lideranças políticas da época. Entre os principais opositores da judicial review estava o presidente Thomas Jefferson, que, como simpatizante da revolução francesa, reproduzia a mesma desconfiança que os revolucionários de 1789 sentiam em relação aos juízes. Acontece que, sem a judicial review, dificilmente o sistema presidencialista conseguiria amortecer as paixões majoritárias oriundas do Legislativo.

Com esta elaboração institucional, a engenharia constitucional estadunidense apresentou um sistema político baseado na incorporação simultânea de elementos majoritários e contramajoritários, assumindo, assim, a perspectiva de que tanto o despotismo das minorias quanto o das maiorias deve ser evitado. Esse complexo equilíbrio entre os Poderes foi formulado por juristas como Madison, Hamilton, Marshall e tantos outros que, a exemplo do constitucionalismo inglês, pensaram o direito não apenas do ponto de vista da elaboração do poder, mas também no sentido da sua limitação.

Nesse sentido, a democracia estadunidense foi construída com base na combinação de princípios políticos que, inicialmente, quando observados de maneira muito superficial, podem parecer extremamente contraditórios, mas que, na fórmula constitucional apresentada pelos juristas, alcançou a base institucional necessária para a formação de um poder limitado. Desse modo, se por um lado o princípio democrático apresentou-se na atuação majoritária das massas no momento do voto; por outro lado um corpo de magistrados, reunidos na Suprema Corte, encarregou-se de impedir que a vontade majoritária viesse a se transformar numa nova forma de despotismo.

Nos dois casos apresentados, as experiências constitucionais inglesa e estadunidense contaram com a contribuição decisiva dos juristas. Foi com o auxílio deles que o poder ganhou o formato de Estado de Direito, colocando num mesmo nível de importância a construção da autoridade e a defesa das liberdades individuais.

A partir dessa leitura, que permite a compreensão do papel desempenhado pelos juristas na formação da ordem política moderna, é possível investigar a importância dos juristas não apenas na consolidação da democracia, mas também a maneira como muitos deles se serviram de um conhecimento técnico para favorecer a ascensão de regimes autoritários. Seja na elaboração do constitucionalismo ou na construção de ditaduras, um jurista sempre desempenha um papel fundamental na consolidação do desenho institucional de um regime político.


1 HILL, Christopher. O século das revoluções, 1603-1714. São Paulo: Editora UNESP, 2012, p. 5.

2 FRIEDRICH, Carl. Teoría y realidad de la organización democrática. México: Fondo de Cultura Económico, 1946, p. 219.

3 Conforme análise de VAN CAENEGEM, Raoul C. Juízes, legisladores e professores. São Paulo: Campus Jurídico, 2010. Também nessa mesma tendência, ver: STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

4 MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad: historia del constitucionalismo moderno. op. cit., 1998, p. 81.

5 Ibid., pp. 84-85.

6 Ibid., p. 89.

7 Nesse sentido, ver: STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pp. 361-367.

8 ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, pp. 344-348.

9 HILL, Christopher. O século das revoluções, 1603-1714. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 319.

10 MONTESQUIEU. O espírito das leis. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 166.

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