Limite penal

Ministro Celso de Mello e a tutela judicial da liberdade

Autores

  • Marcella Mascarenhas Nardelli

    é doutora em Direito Processual pela Uerj professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri" da Editora Lumen Juris.

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

9 de outubro de 2020, 8h32

Spacca
O Supremo Tribunal Federal se despede de seu decano nos próximos dias, e a Constituição da República, que completou 32 anos nessa mesma semana, perde seu mais fiel guardião.

Tendo assumido o encargo no ano de 1989, em uma recém instalada democracia, pode-se dizer que a história da afirmação dos direitos, garantias e liberdades previstos na Carta Política de 1988 se confunde com a própria trajetória de Celso de Mello como ministro do STF.

“Sua atuação primorosa como Juiz Constitucional baliza um impecável legado de um garantista que nunca se negou a buscar soluções inovadoras dentro do sistema constitucional de proteção de direitos”, como destacou Gilmar Mendes.1

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A condição de decano fora conquistada em 2007, após a aposentadoria de Sepúlveda Pertence. O termo, entretanto, não lhe cabe apenas por ser o membro mais antigo do Tribunal. Conhecido por sua erudição e pelas incursões históricas, presentes nos votos e nas conversas, Celso de Mello deu substância a um posto que até então era essencialmente cerimonial2. Melhor lhe cabe, portanto, o sentido histórico outrora atribuído ao termo decanus em sua origem latina: “o comandante de dez soldados”.

Essa posição de liderança se deve, essencialmente, à sua capacidade de conciliar um perfil discreto e agregador, com um comportamento incisivo e intransigente na defesa da independência da Corte frente a ameaças de autoritarismo e momentos de tensão entre os Poderes.

Por isso mesmo, em um momento em que a legitimidade dos provimentos judiciais – cuja função contramajoritária constitui fundamento da democracia – encontra-se ofuscada pela ingerência política, cada vez mais evidente, será difícil preencher a lacuna de confiança democrática deixada no STF na ausência desse “comandante”.

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Apesar das posições contundentes de Celso de Mello na defesa dos direitos humanos e na proteção dos interesses das minorias, a ênfase de seu legado se destaca por meio de duas outras vias: a defesa das liberdades e a defesa das garantias que compõem a noção de processo justo. A própria proteção aos direitos das minorias costuma se manifestar, em sua jurisprudência, a partir de questões relacionadas à liberdade e aos procedimentos3. O ministro Celso foi responsável pela fixação de conteúdos fundamentais para a leitura atual do devido processo legal substancial.

Nada que não pudesse ser antevisto, entretanto, à atuação de quem já defendia publicamente, em um contexto de ditadura militar, o direito de resistência como forma de contenção de um poder arbitrário. Em seu discurso de posse no Ministério Público do Estado de São Paulo, em 03 de novembro de 1970, já se fazia clara a tônica de sua trajetória em defesa de uma ordem jurídica democrática ainda por ser concebida:

O Direito não pode identificar-se com a ordem jurídica injusta. São conceitos antitéticos e que se repelem. Aquele que resiste, ativa ou passivamente, à consolidação de um ordenamento jurídico assim estruturado, contrário aos princípios básicos do Direito, não pode e não deve ser equiparado a um rebelde. (…) Não desobedece por desobedecer. Desobedece para alcançar o respeito e a harmonia da ordem que vê violada. Desobedece para evitar que se continue a desrespeitar a ordem jurídica verdadeira que é o fundamento da própria vida coletiva. (…) O princípio da autoridade cessa no instante em que viola ou desrespeita a ordem jurídica orientada no sentido do bem-comum.4

Em seu discurso na solenidade de inauguração do Fórum de Osasco, em 1979, que lhe rendeu monitoramento pelos militares no período da ditadura, defendeu o direito do homem à vida e à liberdade, enquanto denunciava as condições desumanas de tratamento a que eram submetidos os presos da Cadeia Pública local:

a nossa Constituição e a Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõem que nenhuma lesão pode ser subtraída ao Poder Judiciário e os atos normativos que restringem a eficácia desse princípio universal não podem sensibilizar a consciência daqueles que acreditam e sonham com o Estado de Direito.5

Fora aplaudido de pé pelas seiscentas pessoas presentes, ao mesmo tempo em que as autoridades se mantinham passivas. Em relatórios enviados ao DOPS, delegados reclamam do promotor que aparece de surpresa nas delegacias para verificar as condições dos presos. O secretário de segurança chegou a chamá-lo de “promotor subversivo que indispõe a polícia com a população”.6

Essa firmeza com que se manifestava em favor da liberdade, contra a arbitrariedade e violência de agentes do Estado, já se fazia notável à época, tendo destaque por meio da publicação do artigo intitulado “A Tutela Judicial da Liberdade”.

A denominada prisão para averiguações, que constitui prática policial comum, além de configurar o delito de abuso de autoridade, representa a mais típica manifestação de arbitrariedade contra a liberdade de locomoção física (ou direito de ir, vir e permanecer). Daí porque o Judiciário a tem profligado, censurando a conduta dos agentes policiais que dela lançam mão, esquecendo-se que a investigação deve preceder à prisão. Investiga-se primeiro para depois prender-se. O contrário – prender para investigar — implica numa verdadeira subversão dos princípios jurídicos. 7

Ainda no texto de sua autoria, além de destacar o papel fundamental do Poder Judiciário na tutela das liberdades, como forma de contenção do poder, ressaltou a importante função da cláusula do devido processo legal nesse contexto:

A exigência do devido processo legal, nos casos em que a vida, a liberdade e a propriedade estejam afetadas ou possam vir a ser atingidas, destina-se a garantir o indivíduo contra a ação arbitrária do Estado, e a colocá-lo sob a imediata proteção da lei.8

E para quem já se esforçava com tal afinco em proclamar e defender tais valores democráticos em um contexto político ditatorial, nada mais natural que, com seu ingresso no STF, viesse a se converter na própria voz da recém promulgada Constituição cidadã. A garantia da fundamentação das decisões judiciais, que há pouco fazia-se presente constitucionalmente, ao ano de 1991 conquistou este importante defensor:

O ordenamento jurídico brasileiro, ao tornar a exigência de fundamentação das decisões judiciais um elemento imprescindível e essencial à válida configuração dos atos sentenciais, refletiu, em favor dos indivíduos, uma poderosa garantia contra eventuais excessos do Estado-Juiz, e impôs, como natural derivação desse dever, um fator de clara limitação dos poderes deferidos a magistrados e Tribunais.

(…)

A prisão provisória, que se reveste de índole cautelar, só pode ser legitimamente decretada quando o magistrado que a ordena indica, com o apoio nos autos, além de outros requisitos de atendimento indeclinável, a necessidade de sua decretação pela verificação, em concreto, de um ou mais motivos legalmente autorizativos da medida9

Paralelamente, a defesa incondicional de garantias como o contraditório e ampla defesa, além do direito ao silêncio, é marca notável de sua atuação no STF, desde seus primeiros anos. Em voto de 1992, destacou que “a nova Lei Fundamental da República, ao delinear o quadro das liberdades públicas relativo às pessoas sujeitas à ação persecutória do Estado” outorgou-lhes a prerrogativa de permanecerem em silêncio – e a de serem advertidos sobre esse direito e sobre o teor da acusação – , a de fazerem jus à assistência de advogado e a de serem notificados quanto à identificação dos responsáveis por sua prisão. Reconhecendo que tais prerrogativas se traduzem como “círculos de imunidade” que conferem ao indiciado e acusado proteção efetiva contra ação arbitrária das autoridades, considerou que o privilégio contra a autoincriminação se traduz como uma das mais expressivas consequências derivadas da cláusula due process of law.10

A ideia de contenção do poder também se manifesta por meio de sua preocupação em refrear ações abusivas em meio à atividade investigatória, o que se projeta no veemente repúdio às provas ilícitas. Conforme destaca, o réu “tem o impostergável direito de não ser denunciado, de não ser julgado e de não ser condenado com base em elementos instrutórios obtidos ou produzidos com desrespeito aos limites impostos pelo ordenamento jurídico”.

A absoluta invalidade da prova ilícita infirma-lhe, de modo radical, a eficácia demonstrativa dos fatos e eventos cuja realidade material ela pretende evidenciar. Trata-se de consequência que deriva, necessariamente, da garantia constitucional que tutela a situação jurídica dos acusados em juízo penal e que exclui, de modo peremptório, a possibilidade de uso, em sede processual, da prova – de qualquer prova – cuja ilicitude tenha sido reconhecida pelo Poder Judiciário.11

Veja-se que uma de suas muitas virtudes ao longo da carreira, desde antes de ingressar no STF, era a firmeza e coerência com que mantinha suas posições em defesa da liberdade e da Constituição, marca que distinguiu sua atuação na Corte inclusive em casos polêmicos de grande repercussão pública. Um grande exemplo nesse sentido é a estabilidade de sua postura ao longo dos anos quanto ao reconhecimento das imposições práticas da garantia da presunção de inocência, no que se refere à aplicação da pena e outras consequências somente após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Na análise sobre a constitucionalidade da regra da Lei Complementar 135/10, a Lei da Ficha Limpa, que prevê a suspensão de direitos políticos sem decisão condenatória transitada em julgado, o ministro Celso de Mello foi incisivo, embora tenha restado vencido: “Não admito possibilidade que decisão ainda recorrível possa gerar hipótese de inelegibilidade”.12 A mesma coerência ele próprio fez questão de destacar quando das recentes discussões sobre a constitucionalidade da execução provisória da pena privativa de liberdade após condenação em segunda instância:

Tem sido constante e inalterada a minha posição, no Supremo Tribunal Federal, Senhor Presidente, em torno da questão referente ao alcance e ao conteúdo da presunção de inocência. Vê-se, desse modo, que há mais de 30 (trinta) anos tenho julgado a controvérsia ora em exame sempre no mesmo sentido, ou seja, reconhecendo, expressamente, com fundamento na presunção de inocência, que as sanções penais somente podem sofrer execução definitiva, não se legitimando, quanto a elas, a possibilidade de execução provisória, em razão de as penas impostas ao condenado, a qualquer condenado, dependerem, para efeito de sua efetivação, do trânsito em julgado da sentença que as aplicou (…)..13

Como sublinhado por Gilmar Mendes, o Ministro Celso de Mello exerceu papel-chave em nossa recém-instalada Democracia, que, ainda permeada pela herança autoritária dos tempos ditatoriais, pouco estava acostumada ao estrito respeito às garantias e aos Direitos Fundamentais.14 E na medida em que sistemática e vigorosamente promovia a defesa da liberdade e do devido processo legal ao longo de toda a sua trajetória, contribuía, na mesma medida, para o fortalecimento do sistema acusatório no processo penal.

Em recente Medida Cautelar no Habeas Corpus n. 186.421, de SC, Mello tratou de três temas da maior importância para o processo penal e que vinham sendo objeto de injustificada resistência por parte de muitos magistrados. São eles: a) imprescindibilidade da audiência de custódia; b) ilegalidade da conversão de ofício da prisão em flagrante em prisão preventiva; e c) inexistência de poder geral de cautela.

Como já afirmou Jacinto Coutinho15 em diversas passagens, a estrutura (não apenas jurídico-processual, mas também de pensamento) inquisitória é o maior engenho da humanidade, permanecendo hígida por mais de 700 anos.

Nesse sentido, a decisão do ministro Celso de Mello deve ser aplaudida e incondicionalmente cumprida e observada, não só pela musculatura teórica e legal, mas pelo golpe certeiro que profere na matriz inquisitória do processo penal brasileiro e na cultura/mentalidade autoritária de muitos atores judiciários, que insistem em não compreender qual é o lugar constitucionalmente destinado ao julgador penal: garantidor da legalidade e da máxima eficácia dos direitos e garantias individuais.

Celso de Mello assumiu majestosamente esse lugar nos 31 anos em que compôs a Corte Constitucional, de modo que sua aposentadoria deixa uma sensação de que perdemos um aliado do devido processo legal substancial nesse cenário. É preciso encontrar modos de agir e pensar que, na sua ausência, dêem sustentação ao legado de tutela de liberdades que se transformou na inconfundível assinatura de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal.16


1 https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/celso-mello-homenagem-gilmar-mendes-1.pdf

2 https://veja.abril.com.br/blog/matheus-leitao/stf-se-despede-de-seu-doutor-constituicao/

3 GOMES, Juliana Cesario Alvim. Celso de Mello, liberdade e processo: como um relator bissexto construiu seu legado jurisprudencial de direitos fundamentais. Jota. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/celso-de-mello-liberdade-e-processo-21072020.

4 Transcrições presentes em:

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoPublicacaoInstitucionalPossePresidencial/anexo/Plaqueta_Possepresidencial_CelsodeMello_NOVACAPA.pdf

5 Idem.

6 https://www.conjur.com.br/2012-out-14/documentos-mostram-regime-militar-monitorou-atuais-ministros-stf

7 MELLO FILHO, José Celso de. A tutela judicial da liberdade. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, v. 13, n. 60, p. 23-34, set./out. 1979, p. 43

8 Idem, p. 45.

9 STF, 1ª Turma, HC nº 68.530-7/130 – DF. Rel. Min. Celso de Mello, Dj. 05/03/1991.

10 STF, Primeira Turma, HC 68.929, Rel. Min. Celso de Mello, Dj. 28/08/1992.

11 STF, Tribunal Pleno, HC 69.912, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Dj. 26/11/1993.

12 STF, Tribunal Pleno, ADC nº 29/ ADC nº 30 / ADI nº 4578, Rel. Min. Luiz Fux, Dj. 16/02/2012.

13 STF, Tribunal Pleno, ADC nº 43/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, Dj. 07/11/2019.

14 https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/celso-mello-homenagem-gilmar-mendes-1.pdf

15 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; GONZÁLEZ POSTIGO, Leonel; NUNES DA SILVEIRA, Marco Aurélio; PAULA, Leonardo Costa de. Reflexiones brasileñas sobre la reforma procesal penal en Uruguay: Hacia la Justicia penal acusatoria en Brasil. CURITIBA: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019.

16 Os destaques — negritos, itálicos e sublinhados — são marcas das decisões do Ministro Celso de Mello. Agradecemos à Rachel Herdy pela sugestão de seu emprego no texto em sua homenagem.

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