Pensando em Habeas

O estéril dever de revisão da manutenção da preventiva no prazo de 90 dias

Autor

  • Mariana Madera Nunes

    é advogada ex-assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e é professora de Processo Penal da Universidade Católica de Brasília (UCB).

8 de outubro de 2020, 8h01

Não é à toa que a população carcerária atingiu o elevado patamar de 773.151 pessoas recolhidas (Infopen 2019). Em parte, tal fato se deve ao desprezo pelo caráter excepcional das prisões cautelares no processo penal brasileiro, cuja imposição decorre de expressa previsão constitucional (artigo 5º, LXI), dando conta do fenômeno retratado diversas vezes pelo ministro Marco Aurélio acerca de que "revelando-se no campo da excepcionalidade, inverte a sequência natural das coisas, prendendo-se, para, depois, apurar-se" (HC 103.411/PE, j. 27.11.2012).

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Basta lembrar que a Lei 12.403/2011, ao ampliar o rol de medidas cautelares diversas, não atingiu o efeito desencarcerador pretendido, tornando regra, em vez da liberdade, a imposição de providências alternativas à prisão. Tudo isso aliado à cultura de espetacularização do processo penal, mediante exposição midiática dos alvos de investigação criminal e massificação das prisões cautelares, desvelam um cenário de ofensa generalizada a direitos e garantias individuais.

No ponto, a inclusão do parágrafo único no artigo 316 do Código de Processo Penal pela Lei 13.964/2019, cuja redação também foi modificada para abarcar, expressamente, a possibilidade de revisão, de ofício, do suporte fático legitimador da custódia, está relacionada com um problema antigo do regramento cautelar pessoal: a falta de definição, em lei, da duração máxima da prisão cautelar e também da previsão de uma sanção processual em caso de excesso. "Com a nova lei, a prisão preventiva segue sem prazo determinado, contudo passa a existir o dever de a autoridade judiciária, de ofício, apreciar novamente a matéria no prazo de 90 dias. Não o fazendo, a prisão passa a ser ilegal, devendo ser relaxada" [1].

De fato, o princípio da provisoriedade estabelece a exigência da observância de um critério temporal de duração da prisão, na medida em que tutela uma situação fática (provisionalidade) e não pode assumir contornos de cumprimento antecipado da pena [2]. Com efeito, "da normatividade da presunção de inocência artigo 5º, LVII, da Constituição Federal deflui que a prisão preventiva, tal qual as demais cautelares pessoais, é protetiva, e não satisfativa" [3].

Nada obstante a literalidade do artigo 316, parágrafo único, do CPP, de um modo geral, a inobservância do reexame obrigatório no prazo de 90 dias não tem conduzido, em sede de Habeas Corpus, à automática revogação da preventiva pelo Supremo Tribunal Federal [4] e pelo Superior Tribunal de Justiça [5]. Apesar de reconhecido o constrangimento ilegal decorrente da ausência de renovação da manutenção do decreto, os tribunais têm optado por deferir a ordem para determinar que o juízo correspondente reavalie, com urgência, os fundamentos da prisão imposta ao investigado ou acusado.

Deveras, na apreciação monocrática do HC 181.187 ED/SP, em 21/9/2020, o ministro Gilmar Mendes concluiu que a ausência da revisão prevista no artigo 316, parágrafo único, em que pese representar um direito do réu à reanálise da necessidade da prisão a cada 90 dias, não conduz ao afastamento imediato da segregação, "cabendo ao Poder Judiciário determinar sua pronta satisfação".

Nessa mesma linha, no AgRg no HC 606.872/GO (15/9/2020), a 6ª Turma do STJ assentou que o prazo de 90 dias para reavaliação da prisão preventiva "deve ser examinado pelo prisma jurisprudencialmente construído de valoração casuística, observando as complexidades fáticas e jurídicas envolvidas, admitindo-se, assim, uma eventual e não relevante prorrogação da decisão acerca da manutenção da necessidade das cautelares penais".

No entanto, em sentido diverso, o ministro Marco Aurélio entende configurado o excesso de prazo da prisão "ante a não constatação da existência de decisão posterior, na qual reiterada a necessidade da medida" (HC 179.932 MC/MS, j. 5.3.2020; HC 190.463 MC/SC, j. 9.9.2020), determinando a imediata expedição de alvará de soltura clausulado.

Não obstante, quando do julgamento do mérito das impetrações, a 1ª Turma do STF tem refutado o argumento, cassando a liminar anteriormente implementada pelo ministro, uma vez que "a razoável duração do processo deve ser aferida à luz da complexidade da causa, da atuação das partes e do Estado-juiz" [6]. Em outras oportunidades, o colegiado assentou ainda que a falta de renovação da preventiva no prazo legal não compreende teratologia ou excepcionalidade apta a ensejar a superação dos óbices ao cabimento do writ na corte [7].

Intensificando ainda mais o debate sobre a eficácia do dispositivo introduzido no ordenamento processual penal pelo chamada lei "anticrime", consoante noticiado nesta ConJur [8], no último dia 22 de setembro, ao examinar o HC 589.544/SC e aludindo a idêntico entendimento adotado pela 5ª Turma (HC 569.701/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 9.6.2020), a 6ª Turma do STJ estabeleceu que a obrigação de revisar a manutenção da prisão, a cada 90 dias, é imposta apenas ao "órgão emissor da decisão" — juízo ou tribunal que impôs a cautela.

Mais especificamente, segundo o superior tribunal, tendo em vista que "a inovação legislativa se apresenta como uma forma de evitar o prolongamento da medida cautelar extrema, por prazo indeterminado, sem formação da culpa", proferida sentença ou prolatado acórdão condenatório, a impugnação à custódia deve ser feita através das vias recursais ordinárias, não remanescendo o dever judicial a que se comina sanção processual de ilegalidade da prisão.

Não se desconhece, na linha do entendimento esposado, que a árdua tarefa de revisão periódica dos decretos preventivos, presente o contexto de sobrecarga de processos nos tribunais, representa laborioso ofício. Entretanto, é preciso rememorar que o limite temporal da presunção de inocência adotado pela Constituição Federal de 1988 é o trânsito em julgado da condenação penal (artigo 5º, LVII), estando voltada a medida cautelar pessoal no processo penal a resguardar risco atual decorrente do estado de liberdade do acusado, o que pressupõe o reexame constante dos seus motivos ensejadores.

Com efeito, à semelhança do previsto nas Constituições de Portugal (artigo 32.2) e da Itália (artigo 27.2), o marco constitucional da presunção de inocência no nosso ordenamento supera o disposto nos diplomas internacionais de direitos humanos, de modo que a determinação do recolhimento cautelar limita-se aos casos enquadráveis nos requisitos do artigo 312 do CPP e submete-se a periódica reanálise, para que não se transmute em indesejável execução antecipada de pena.

Assim, por expressa disposição do parágrafo único do artigo 316 do CPP, sobeja o dever de reexame dos fundamentos das prisões cautelares, a cada 90 dias, em todas as fases processuais, até o eventual trânsito em julgado do título condenatório, caso o acusado permaneça recolhido durante todo o processo, sob pena de limitação do marco temporal da presunção de inocência e restrição do alcance da própria garantia fundamental.

De fato, se os princípios da excepcionalidade, da provisoriedade e da provisionalidade, que norteiam o regramento cautelar pessoal no nosso ordenamento processual, fossem efetivamente observados, sequer seria necessário exigir-se a renovação periódica do decreto mediante fundamentação concreta e individualizada. A intenção do legislador de evitar a perpetuação da segregação provisória, sob pena de ilegalidade, pode ter se tornado, em pouco mais de oito meses de vigência da Lei 13.964/2019, em letra morta de lei.

 


[1] Assumpção, Vinícius. Pacote Anticrime: comentários à Lei n. 13.964/2019 [livro eletrônico]. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 144-145.

[2] LOPES JR., Aury. Direito processo penal [livro eletrônico]. 17. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2020. p. 901.

[3] GOMES, Willian Akerman. Fundamentos da prisão cautelar. In: PEDRINA, Gustavo Mascarenhas Lacerda [et al.]. Habeas corpus no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 190.

[4] STF, HC 190.364/CE, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 22.9.2020; HC 184.769/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 5.5.2020.

[5] STJ, RHC 133.266/MS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, j. 8.9.2020; HC 567.289 MC/PI, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, j. 18.3.2020.

[6] STF, HC 185.321/BA, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. p./ acórdão Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, j. 5.8.2020.

[7] STF, HC 178.897/MT, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. p./ acórdão Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, j. 22.6.2020; HC 178.586/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. p./ acórdão Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, j. 16.6.2020.

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    é advogada, mestranda em Direito (IDP), ex-assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal e professora da pós-graduação em Ciências Criminais da Universidade Católica do Salvador.

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