Opinião

Professores de Direito Constitucional, onde nós erramos?

Autor

  • Gustavo Ferreira Santos

    é advogado professor de Direito Constitucional e do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco membro do Grupo de Pesquisa Recife Estudos Constitucionais (REC) e do Instituto Publius e pesquisador PQ 2-CNPq.

8 de outubro de 2020, 17h08

A democracia constitucional está em crise no mundo. Cada um com suas peculiaridades, diversos países vivem processos de enfraquecimento de seus mecanismos democráticos e veem a ascensão ao poder de líderes e grupos autoritários. No Brasil, são cotidianos os ataques às instituições. Cresce uma cultura de desprezo à democracia e aos direitos fundamentais.

Nesse contexto, sinto-me fracassado como professor de Direito Constitucional quando vejo um ex-aluno, hoje, profissional, fazendo críticas genéricas "aos direitos humanos" ou, ainda, defendendo coisas como o fechamento do STF ou do Congresso Nacional. Acho que falhei. Aliás, todos nós, professores de Direito Constitucional, falhamos.

Falhamos ao não transformar as nossas disciplinas em espaços de afirmação cotidiana da democracia. Acho que não conseguimos entender suficientemente o nosso papel como quem lança o carvão na fornalha dessa complexa máquina que é a democracia. Se pararmos de alimentá-la, ela para.

Um rápido olhar nos programas das disciplinas de Direito Constitucional dos cursos de Direito dá bem a dimensão dessa falha. A palavra democracia pouco aparece. Às vezes, aparece, como qualificador do "Estado de Direito", quando se fala dele. Outras vezes, por ser inevitável, quando fala de "defesa do Estado e das instituições democráticas".

Tratamos como se falar do tema fosse dispensável. É como se falássemos de coisas que existem desde sempre e sempre existirão. Esquecemos que o que ensinamos é um produto de contextos históricos, tem razões para sua adoção e tem inimigos.

O estudo do Direito Constitucional não pode ser inodoro. O constitucionalismo é, em si, uma ideologia. Foi com a ideia de uma democracia condicionada por uma constituição, que procedimentalizava o exercício do poder, que superamos formas tradicionais e autoritárias. O constitucionalismo, em todas as suas versões e variantes, prega um desenho institucional específico, com distribuição de funções por diferentes órgãos, e não abre mão dos direitos fundamentais.

É, fundamentalmente, uma ideologia de contenção do poder, de limitação do poder. E não só do poder do Estado, do poder político. Mas dos poderes. Nesse movimento, cabem diferentes visões de mundo, defensoras de catálogos de direitos maiores ou menores, com instituições mais ou menos infiltradas pelo povo.

Na história, nos últimos 200 anos, vários foram os movimentos de resistência a esse conteúdo. O nazismo e o fascismo, por exemplo, estão fora dessa tradição do constitucionalismo. E o mundo viveu essas experiências depois de já ter muito tempo de prática das ideias de Constituição, democracia, direitos fundamentais. As idas e vindas nos deixam claro que nunca vamos conseguir banir os inimigos da democracia constitucional.

A democracia, por suas características, deixa existir no seu seio a semente de sua própria destruição. Os direitos fundamentais que garantem a democracia garantem, também, o agir dos inimigos da democracia. Ao serem questionados, sempre alegam, em sua defesa, algum direito, como, por exemplo, a liberdade de expressão e o direito de reunião. Assim, eles sempre existirão e sempre estarão tramando contra ela.

Nós, professores de Direito Constitucional, caímos em uma ciranda cotidiana e vamos nos tornando tipos de robôs, repetindo fórmulas, conceitos prontos. Precisamos deixar clara, em cada tema que tratamos, a conexão com a democracia. Não importa se falamos de teoria da Constituição, de controle de constitucionalidade, de princípios fundamentais, direitos fundamentais, organização do Estado ou organização dos poderes.

Quando a gente fala em "organização de poderes", estamos falando de um pilar da ideia de democracia constitucional. Faz conexão lá com o artigo 16 da declaração de direitos do homem e do cidadão, da Revolução Francesa. "Como é possível falar em Poder Legislativo sem fazer expressa referência a democracia? À representação?".

Lembro de ter visto, anos atrás, Carmen Lucia Antunes Rocha, antes de ser a ministra Carmen Lucia, falando em um evento da OAB-PE, dizendo que, quando era estudante, fez prova sobre Poder Legislativo com o Congresso Nacional fechado por Geisel.

Hoje eu ressalto aos alunos que, por pior que seja o Parlamento de um país, ali é onde pode existir, ainda, algum pluralismo. Onde podem se tornar visíveis algumas posições que autocratas querem esconder e, não por acaso, não é incomum que o órgão seja fechado por golpes militares. Aqui, no Brasil, o Congresso Nacional foi fechado 18 vezes. Na ditadura, houve expurgos, com cassação de indesejados, e, quando Geisel o fechou, o fez alegando que havia "elementos contrarrevolucionários" no Congresso.

Como estudar Judiciário e defender fechamento do STF, por mais que sejam criticáveis decisões do STF? Acho que não é razoável um jurista que abraça esse discurso. Muitas vezes, o problema é de caráter. Aí, podemos fazer pouco por ele. Mas, muitas vezes, é problema de formação, de incapacidade de fazer conexões entre coisas básicas de sua vida e esse desenho institucional.

É terrível ver alguém que cursou Direito agindo assim, mas é ainda mais chocante quando é um professor de Direito Constitucional que o faz.

Precisamos repensar nosso papel, nosso lugar como professores, como constitucionalistas. Precisamos ver direitos e instituições como conquistas que precisam ser conhecidas e reafirmadas cotidianamente. Precisamos contribuir para que elas componham uma "cultura constitucional". Cada norma de direitos fundamentais tem uma história,  representa uma luta contra uma opressão específica. Essa informação não virá no DNA das pessoas. Elas precisam ser expostas a essa história e, por isso, aderir às conquistas das gerações anteriores.

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    é advogado, professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco, professor do Programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, membro do Grupo Recife de Estudos Constitucionais (REC) e pesquisador PQ 2-CNPq.

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