Opinião

Considerações sobre o inquérito civil no Projeto de Lei nº 4441/20

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8 de outubro de 2020, 14h11

A sintética previsão legislativa do inquérito civil no artigo 8º, §1º, da Lei da Ação Civil Pública, posteriormente acolhida no artigo 129, inciso III, da Constituição da República, deu origem a um instrumento de notável relevância prática e posteriormente referido esparsamente na legislação federal [1], estadual [2] e outros atos normativos relacionados aos ramos dos Ministérios Públicos [3].

A relevância prática do inquérito civil, entretanto, não resultou em tratamento legislativo adequado, mesmo após décadas de sua intensa aplicação, com produção doutrinária robusta sobre o tema e identificação de defeitos e virtudes da aplicação prática. A fragmentação de dispositivos legais, a ausência de regras gerais claras e o confinamento do debate ao âmbito interno de órgãos do Ministério Público são incompatíveis com o estado atual do processo coletivo brasileiro e com a própria proeminência do inquérito civil na tutela de direitos transindividuais.

Revela-se, portanto, não só oportuna como imperiosa a sistematização de regras legais sobre o inquérito civil, sem prejuízo de espaço para normatizações administrativas para adaptações necessárias, não se podendo considerar que se trata de tema a ser exclusivamente disciplinado internamente pelo Ministério Público, confundindo-se o protagonismo procedimental com exclusividade temática.

O inquérito civil é um valioso instrumento que, por natureza, é vinculado ao Ministério Público, desde sua gênese [4] até sua previsão no artigo 129, III, da Constituição da República, que o consagrou como função institucional. Trata-se de procedimento administrativo de instauração facultativa cuja finalidade é fornecer subsídios idôneos para a tutela de direitos transindividuais. Em síntese, é um conjunto de atos presididos por membro do Ministério Público com a finalidade de colher elementos de convicção suficientes para a resolução extrajudicial de direitos ou o ajuizamento de ação coletiva.

No inquérito civil vige a denominada "publicidade mitigada", já que se trata de um procedimento inquisitivo, mas não secreto. É necessária sua ampla publicidade no momento de sua instauração, de seu eventual arquivamento e do ajuizamento de ação civil pública a partir da prova colhida, até mesmo em razão da concorrência de legitimados e da natureza dos interesses em jogo. Entretanto, por se tratar de um procedimento de investigação, o sigilo de determinadas informações é de sua própria natureza, em razão de sua finalidade específica, de modo que sua publicidade não pode ser vista de modo amplo e irrestrito, o que já anuncia alguns problemas práticos, assim como se mostram controvertidas questões sobre o efetivo contraditório e a eficácia probatória em eventual processo jurisdicional. Além disso, há a questão controvertida da exclusividade de sua utilização pelo Ministério Público, o que foi habilmente disciplinado no projeto de lei, sobretudo que a norma constitucional define de modo indiscutível é que não se pode subtrair sua utilização.

Em linhas gerais, com base no artigo 6o da Lei Complementar nº 75/93, que bem condensa a matéria, podem ser objeto do inquérito civil a proteção dos direitos constitucionais, a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, a proteção dos interesses individuais indisponíveis [5], difusos e coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família, à criança, ao adolescente, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao consumidor, além de outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos. O inquérito civil tem se mostrado um importante instrumento não só para o fornecimento de subsídios para a eventual propositura de uma ação judicial, mas sobretudo porque possibilita a realização extrajudicial de direitos, especialmente pela solução negociada do conflito.

Demonstrada a pertinência e a relevância de tratamento legislativo mais minudente, passemos ao exame objetivo dos dispositivos correspondentes no Projeto de Lei nº 4441/2020, de autoria do deputado federal Paulo Teixeira, cujo núcleo está no artigo 26 e seus 24 parágrafos, a seguir noticiados.

Além de sistematizar adequadamente a matéria em minudentes e necessárias regras, o projeto de lei apresenta as seguintes previsões: a) natureza instrutória do procedimento, reforçando o poder requisitório de meios de provas (artigo 26, caput), podendo ser instaurado de ofício ou mediante notícia identificada ou anônima, desde que contenha elementos objetivos (§1º); b) regulação a conexão entre inquéritos civis, com frequência ocorrência prática (§2º); c) prevê-se a possibilidade de atos conjuntos ou concertados entre órgãos do Ministério Público, na forma do artigo 69, §2º, do Código de Processo Civil (§3º), podendo também ser instaurado processo jurisdicional de produção antecipada de prova para complementar a instrução (§4º), com a possibilidade de participação de entidades, órgãos ou pessoas para melhor apuração dos fatos (§5º), remetendo-se para as leis orgânicas dos Ministérios Públicos o modo de expedição de notificações, requisições, intimações ou outras correspondências para determinadas autoridades (§6º); d) os ofícios requisitórios de informações ao inquérito civil e ao procedimento preparatório deverão ser fundamentados e acompanhados de cópia da portaria que instaurou o procedimento (§7º); e) a publicidade do inquérito civil é a regra, com exceção dos casos em que haja sigilo legal ou em que a publicidade possa acarretar prejuízo às investigações, casos em que a decretação do sigilo será fundamentada e, preferencialmente, limitada a determinadas pessoas, provas, informações, dados, períodos ou fases, cessando quando extinta a causa que a motivou (§8º), com amplo acesso ao advogado, que deve apresentar procuração nos casos de sigilo (§9º e §10), ressalvando-se, porém, a limitação do exame apenas à identificação do representante e aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências (§ 11); f) acolhendo a orientação para a prevalência da autonomia negocial dos interessados, autoriza-se a celebração no decorrer do inquérito civil de negócios jurídicos de direito material ou processual, ainda que não importem arquivamento parcial ou total do procedimento (§12); g) o fundamental tema da eficácia probatória do inquérito civil está no §13 e dependerá de o contraditório ter sido oportunizado contemporaneamente à produção da prova ou, justificadamente, em momento diferido; h) o regramento do arquivamento total do inquérito civil, com a devida publicidade e com controle interno de órgão colegiado, está previsto nos §§14, 15 e 16, facultando-se a participação de demais colegitimados; i) já no §17 está previsto o arquivamento parcial, quando deverão ser remetidas para o órgão colegiado de revisão cópia integral dos autos, para possibilitar a apreciação integral dos objetos de investigação, sem prejuízo da continuidade ordinária da parte não arquivada; j) revisto o arquivamento, será designado outro órgão do Ministério Público para o prosseguimento das investigações, caso haja determinação de diligências específicas, ou ajuizamento da ação (§18); k) caso seja caso de indeferimento de plano de representação para a instauração de inquérito civil, o subscritor poderá recorrer ao órgão revisor (§19); l) dispõe o §20 sobre o desarquivamento do inquérito civil, se houver novas provas e enquanto não houver prescrição da pretensão ou da decadência que lhe for subjacente; m) já o §21 reforça a facultatividade do inquérito civil; n) prevê-se a aplicação do disposto no artigo 220 do CPC (suspensão de prazos durante o recesso forense), salvo no caso de realização de atos urgentes ou referentes à tramitação do arquivamento do procedimento ou indeferimento de plano de representação; o) no §23, em relevante inovação, estende-se à Defensoria Pública a possibilidade de instauração de procedimento administrativo de investigação, aplicando-se, no que couber, o disposto no referido artigo 26; e p) encerra-se com a previsão do crime do §24, referente retardamento ou a omissão de dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil pública, quando requisitados pelo Ministério Público.

Além desses dispositivos centrais, há outras regras que se referem à facultatividade do inquérito civil e à sua função documental para instrução da inicial, em paralelo a outros documentos probatórios (artigos 11, § 3º, e 19, V), à possibilidade de celebração de compromisso de ajustamento de conduta no decorrer de sua tramitação (artigo 29, §4º), podendo ensejar seu arquivamento em caso de efetivação total, mediante apreciação de órgão colegiado interno (artigos 30, §9º, 32, §3º, e 37).

Verifica-se, portanto, que em essência houve precisa sistematização de regras esparsas, disciplinando devidamente o inquérito civil, com síntese dos diversos atos normativos sobre o tema, de pronunciamentos jurisdicionais e da produção doutrinária das últimas décadas, submetendo-se o regramento ao necessário debate no decorrer do processo legislativo.

P.S.: A íntegra do projeto de lei pode ser consultada aqui. Tramita em paralelo ao mencionado projeto de lei outra iniciativa parlamentar para disciplinar a "nova Lei da Ação Pública" (PL nº 4778/20). Entretanto, por não tratar do inquérito civil, salvo na isolada menção em seu artigo 20 ("Não se considera suficientemente motivada a sentença, se baseada exclusivamente na apuração de fatos ocorrida no inquérito civil, salvo se realizada mediante autorização judicial, com contraditório"), não será objeto do presente texto. Registre-se, porém, que nos parece imprescindível e até mesmo incontornável que qualquer iniciativa de mudança legislativa envolvendo processo coletivo discipline instrumento tão relevante, com sede constitucional e de relevância prática notável, razão pela qual há necessidade ao menos desse aperfeiçoamento no debate legislativo.


[1] Como a Lei Complementar nº 79/1993, a Lei 8625/1993, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso etc.

[2] As "leis orgânicas" estaduais dos respectivos Ministérios Públicos trazem dispositivos sobre o tema.

[3] Os órgãos administrativos internos dos diversos Ministérios Públicos editaram diversos atos normativos, alguns bem detalhados, e o Conselho Nacional do Ministério Público possui igualmente alguns atos normativos importantes, especialmente a Resolução nº 23/2007.

[4] Registre-se que a gênese do inquérito civil se deu em reuniões internas de membros do Ministério Público do Estado de São Paulo, mas não só se tratava de outra realidade normativo, em que havia um vazio quase absoluto na disciplina do processo coletivo, como também a proposta foi submetida ao devido debate legislativo que resultou na Lei da Ação Civil Pública e na Constituição da República. Ou seja: mesmo em sua própria origem, o inquérito civil partiu do ambiente interno para o debate e regulação públicos.

[5] A fragmentação legislativa faz com que se preveja o inquérito civil para a tutela de direitos individuais indisponíveis, o que vem causando alguns problemas práticos, sobretudo na parte de controle do arquivamento e em futuro ajuizamento de ação civil pública para a tutela de direitos que não coletivos, ensejando a conhecida postura anacrônica jurisprudencial que não admite ações em razão do rótulo. Ou seja, melhor seria não utilizar tais instrumentos para a tutela de direitos individuais.

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