Opinião

Juízo universal é a melhor solução para combater a violência contra a mulher

Autor

  • Rosana Leite Antunes de Barros

    é defensora pública coordenadora do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso (Nudem-MT) e mestranda pela Universidade Federal do Estado de Mato Grosso.

7 de outubro de 2020, 14h01

A Lei 11.340/2006, conhecida nacionalmente como Lei Maria da Penha, apresenta normas de proteção integral à mulher vítima de violência doméstica e familiar. Em acontecendo qualquer das violências descritas no artigo 7º da citada lei, é comum a necessidade de ações cíveis a serem propostas, no afã de que aconteça a solução de outras demandas, não somente as criminais.

É muito bom elucidar, como diz o artigo 5º da Lei Maria da Penha, que a violência doméstica e familiar acontece no âmbito das relações domésticas, assim entendidas como aquelas que ocorrem no convívio permanente de pessoas, no âmbito familiar e, ainda, nas relações íntimas de afeto.

Aquele ou aquela que as agride dentro dos lares conhece as vontades, a intimidade e as fragilidades das suas vítimas. Os legisladores e legisladoras, ao pensarem nessa importante norma afirmativa, que tem como finalidade criar mecanismos para coibir, prevenir, punir e erradicar as violências dentro dos lares, trouxeram inovações a atender àquelas que por muitos anos foram deixadas a protocolizar ações complexas e "recheadas" de ingredientes de violência da forma mais segura possível. Assim, deixaram evidente a importância do trâmite das ações cíveis e criminais em apenas um local, ou melhor, um juízo para o processamento, o julgamento e a execução das causas decorrentes da violência doméstica e familiar.

Os artigos 14 e 33 da Lei Maria da Penha são textuais em afirmar que as demandas cíveis e criminais originadas de violência doméstica e familiar contra a mulher devem tramitar em apenso.

De outro lado, como as medidas protetivas de urgência, em regra, inauguram os processos entre vítima e agressor, também os artigos 22, 23 e 24 da Lei 11.340/2006 dilucidam que a Lei Maria da Penha é mista em seu nascedouro. É sabido que as medidas protetivas não são exaustivas e podem ser requeridas desde o início, como garantia a salvaguardar a integridade física da mulher, de seus descendentes, familiares, amigos e amigas e, ainda, bens móveis e imóveis adquiridos na convivência.  

Juridicamente, é possível afirmar que a natureza jurídica da Lei 11.340/2006 é mista ou híbrida, sendo cível e criminal. Teria maior viés cível ou criminal? Não há como afirmar. O que se sabe é que elas, muitas vezes, só conseguem sair do episódio violência doméstica com a resolução dos processos cíveis. Outras vezes, questionadas se desejam a punição do pai de seus filhos e filhas, daquele que com ela dividiu esperanças futuras e intimidades, a resposta é negativa. Claro, em algumas circunstâncias, dependendo da situação, não cabe a elas essa escolha.

Fazendo um apanhado das estatísticas nacionais de violência doméstica e familiar contra as mulheres, principalmente após o advento da Lei Maria da Penha, é de se notar ano a ano pequena redução e pequeno aumento. Em conclusão, a violência doméstica e familiar em números é a mesma. Contudo, existe um delito com sensível aumento estatístico, os feminicídios dentro de casa. E esses assassinatos estão acontecendo em larga escala, pelo inconformismo do homem com o término do relacionamento.

Com a independência feminina muito aparente no século XXI, elas não aceitam por muito tempo as agressões dentro de casa. Logo, não é difícil dizer que esses crimes são anunciados e podem ser evitados. E se os feminicídios continuam acontecendo, por certo, existem deslizes do poder público a serem corrigidos.

As mulheres são ameaçadas ao anunciar ou protocolizar ações judiciais de divórcio, dissolução de união estável, guarda dos filhos e filhas, alimentos, e por aí afora. Diversos casos de feminicídios foram destaque na mídia nacional pelos agressores não concordarem que questões cíveis deveriam ser resolvidas, após relacionamentos amorosos. O "caso Eliza Samúdio" é um deles. Segundo consta no conjunto probatório, o goleiro Bruno queria se livrar do pagamento de pensão alimentícia ao filho dele e dela. Por "piedade" de alguém, o descendente foi poupado.

Além da peregrinação em busca de direitos, de decisões conflitantes, decisões sem a compreensão das violências por elas sofridas, de as mulheres precisarem relatar a vários juízos e autoridades os seus problemas, elas estão perdendo a vida para sair da violência doméstica.

Por óbvio que a proteção integral a essa mulher perpassa pela resolução de todos os processos (cíveis e criminais). Pensando, por exemplo, em uma situação de alimentos para uma mulher vítima de violência doméstica e familiar, quem melhor para analisar se ela sofreu alguma forma de violência que a fez ficar dependente emocional do agressor, senão o julgador ou julgadora que conhece as agressões na esfera criminal?

Sem contar que as Varas ou Juizados de Proteção à Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar possuem, ou devem possuir, equipe multidisciplinar especializada para a confecção de laudos a fazerem prova em processos cíveis e criminais sobre a questão (artigos 29 a 32, Lei 11.340/2006).

Verdadeiramente, mesmo com os artigos 14 e 14-A da Lei Maria da Penha em plena vigência, não há cumprimento nacionalmente da competência mista, que se perfaz em grande proteção. Apenas o Poder Judiciário do Estado de Mato Grosso enxergou e enxerga o quanto a competência ampliada é importante na proteção e aplica o artigo 14, com o Provimento nº 018/2006 do Conselho da Magistratura.  

O mais correto, sem qualquer dúvida, seria a instituição do juízo universal para a violência doméstica e familiar contra a mulher. Onde as agressões já ocorreram, há necessidade de grande cuidado no atendimento e atenção à mulher. A vulnerabilidade delas é visível em qualquer circunstância, dentro da unidade doméstica. A carga de historicidade, religiosidade e a diferença na compleição física as faz vulnerável em ligações domésticas.

Em acontecendo um ato de violência doméstica, imediatamente deveria ser aberto o respectivo juízo universal para processamento e julgamento das ações. Inclusive, com o "chamado" de possíveis litígios já tramitando em outros juízos em que fossem parte vítima e agressor.

Evidente que o volume de ações a aportar em determinada vara ou juizado será bem maior, tendo em vista que os juízos da atualidade a cuidar de assuntos tais se perfazem em apenas criminais. Todavia, pensar na proteção à mulher é o ideal. Arrazoar quanto à ampliação do serviço, ao invés de reduzir, é o buscado.

A ocorrência de delitos envolvendo violência doméstica e familiar faz nascer concomitantemente as demandas cíveis. Permitir que as mulheres protocolem ações cíveis em varas que não são especializadas no efetivo amparo é as deixar "largadas", como sempre aconteceu, e vem acontecendo.

A sensibilidade, a empatia, e a compreensão quanto aos direitos humanos das mulheres, aliás, conforme inteligência do artigo 6º, da Lei 11.340/2006, são ingredientes necessários para saber aquilatar que elas estão sendo lesionadas e assassinadas dentro de casa. E a dificuldade encontrada na solução das ações cíveis, em juizado ou vara que não são especializados no atendimento de violência doméstica, causa danos e traumas sem precedentes.

Quando legisladores e legisladoras pensaram no artigo 14 da Lei Maria da Penha, com certeza o incluíram para o seu cumprimento.

Posteriormente, com o advento da Lei 13.894/2019, que acrescentou a redação do artigo 14-A, à Lei Maria da Penha, com a finalidade de "virar a página da vida da mulher", resolvendo ações de divórcio e dissolução de união estável mais rapidamente no juízo especializado de proteção à mulher vítima de violência doméstica, não houve sensação de tranquilidade.

Existe fatalmente o entrelaçamento dos processos e interesses cíveis e criminais pertencentes ao arcabouço de provas colhidos nas duas esferas, quando acontece a violência doméstica e familiar.

Enquanto não houver o entendimento de que a violência doméstica e familiar é uma pandemia invisível, e que assola a todos e todas indistintamente, não haverá preocupação com pessoas, mas, sim, com processos.

O sistema de Justiça no todo acompanha o Poder Judiciário. Em havendo ampliação do número de varas e juizados especializados para a apreciação e julgamento das ações que envolvem violência doméstica e familiar a título de juízo universal, a criação de estrutura nas demais instituições será realidade.

Ainda não foi possível a instituição do juízo universal para o julgamento das ações cíveis e criminais em casos de violência doméstica e familiar na legislação brasileira. No entanto, sem pestanejar, aqueles e aquelas que atuam nessas demandas bem sabem que a melhor solução seria essa. A melhor política judiciária para proteção às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar no momento seria a instituição do juízo universal para a apreciação, julgamento e execução de todas as ações envolvendo mulher e agressor.

As ações que envolvem direitos humanos merecem muito mais que sensibilidade e afinidade, e devem perseguir o verdadeiro arquétipo de qualidade no tratamento. Enquanto a inércia é realidade nacional, as mulheres estão sendo vítimas de feminicídios no lugar que deveria ser de mais absoluta segurança: em casa.

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