Opinião

A defesa prévia é ainda mais importante na ação de improbidade administrativa

Autor

  • Georges Humbert

    é advogado professor e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP e pós-doutor pela Universidade de Coimbra.

7 de outubro de 2020, 6h35

Ao elaborar a Lei de Improbidade Administrativa, como é denominada a Lei nº 8.429/1992, o legislador inseriu uma etapa preliminar ao recebimento do processo, na qual o acusado é notificado para demonstrar a improcedência da ação antes mesmo de que ocorra a sua citação. É por meio dessa fase processual que o constrangimento de responder a uma ação de improbidade indevida é evitado.

No livro "Mandado de Segurança", de Hely Lopes Meirelles, a questão é tratada de maneira lapidar, nos seguintes termos:

"O objetivo do novo procedimento, que a princípio pode parecer repetitivo, é o de filtrar as ações que não tenham base sólida e segura, obrigando o juiz – com a possibilidade de recurso ao tribunal – a examinar efetivamente, desde logo, com atenção e cuidado, as alegações e os documentos da inicial, somente dando prosseguimento àquelas ações que tiverem alguma possibilidade de êxito e bloqueando aquelas que não passassem de alegações especulativas, sem provas ou indícios concretos. O instituto da defesa preliminar, existente no direito penal para os funcionários públicos (CPP, art. 514), como antecedente ao recebimento da denúncia, funciona como proteção moral para o agente público acusado, para quem o simples fato de ser réu pode já implicar mancha na sua reputação. Abre-se a possibilidade de uma defesa antes de a ação ser recebida, de molde a cortar pela raiz aquelas ações que se mostrem levianas ou totalmente sem relação com a realidade dos fatos" [1].

É inegável que a simples existência de uma ação de improbidade causa prejuízos aos réus, que, desde logo, tornam-se alvos de um juízo moral de reprovação a macular a imagem dos envolvidos. Por isso é essencial que a fase de defesa prévia seja efetivamente encarada como uma etapa essencial do processo, e não simplesmente uma obrigação processual, pois é nela que devem ser barradas ações manifestamente improcedentes, mal dirigidas e precariamente formuladas, sem documentação ou elementos mínimos de prova, sem identificação e quantificação do dano, e até sem a imputação de conduta, simultaneamente dolosa e de má-fé, porque ninguém é improbo, corrupto ou desonesto por mera culpa, ainda que a chamada culpa grave. Esses são óbices tanto por não observar o disposto no artigo 17 da Lei nº 8.429/1992, ou em face da ocorrência da prescrição, nos termos do artigo 23 da referida lei, além de consolidada jurisprudência de STF e STJ.

Agora, a defesa prévia ganha mais realce e importância, à luz das novas normas que se aplicam aos atos administrativos que podem ser enquadrados em improbidade. Refere-se, aqui, à Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, à Lei de Abuso de Autoridade e à Lei de Liberdade Econômica.

Com efeito, na LIDB, o artigo 22 prescreve que a interpretação das normas sobre gestão pública deve considerar a realidade e os obstáculos enfrentados pelos gestores, sem prejuízo dos direitos dos administrados, combinado ao artigo 28, que dispõe que o "agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro"

Veda-se, assim, a utilização de valores jurídicos abstratos, limitando o uso de expressões genéricas e conceitos jurídicos indeterminados, impedindo ações com base em imputações genéricas, decisões vazias  imotivadas que não façam a análise da realidade fática no caso concreto. Aqui a defesa previa poderá demonstrar violação a esses dispositivos, ensejando o fim sumário da demanda.

Já o artigo 27 da Lei de Abuso de Autoridade prescreve incorrer em ilícito penal a autoridade que "requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa", bem como, no artigo 30, "dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente", no artigo 31 "estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado" e no artigo 32 "negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso às peças relativas as diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível".

Todas essas condutas podem e devem ser alegadas em sede de defesa prévia como impeditivos ao seguimento de ação cujos atos preliminares ou investigatório tenham afrontado tais normas.

Finalmente, a Lei da Declaração da Liberdade Econômica, em seu artigo 1, determina que "interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas".

Tal regra explícita deixa claro e sem margem de dúvidas, pondo uma pá de cal numa lógica até então dominante em searas punitivistas, da interpretação e aplicação da norma e das restrições em favor do erário, implicando em uma presunção tácita dos atos dos agentes públicos e dos particulares que com estes se relacionam. É preciso prova indiciária substancial de dano e dolo, bem descrita, correta e precisa da conduta, com a tipificação adequada e clara na lei, para se imputar e propor uma ação de improbidade, condições que, acaso não preenchidas, devem ser objeto de defesa previa a ensejar a extinção da ação, por falta de requisitos e condições essenciais a sua propositura.

Dessa forma, a proeminência da defesa prévia ganha reforço com essas novas leis, como forma de potencializar direitos e garantias individuais, notadamente a presunção de inocência, de boa-fé e a segurança jurídica, sendo certo que toda ação de improbidade administrativa que trouxer essas violações não merece ultrapassar a fronteira do conhecimento, sendo rejeitada nos termos do §8º do artigo 17 da Lei 8.429/92 e do Código de Processo Civil, com a possibilidade de condenação do autor por litigância de má-fé e por crime de abuso de autoridade, estas de responsabilidade pessoal.

O Estado democrático de Direito e nossa Constituição não toleram convivência com o mero recebimento de ação temerária, de denúncia vazia, ainda mais em se tratando de um processo de alto grau de exposição dos réus, de graves consequências desde a sua mera propositura, com manchas indeléveis na sua imagem e honra, a qual pode, ademais, tirar a disponibilidade de bens, o cargo e mesmo o bem maior de qualquer indivíduo: a sua cidadania.

 


[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 28Ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.232-233.

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