Escritos de mulher

A Constituição e o regimento do Tribunal Superior do Trabalho

Autor

  • Kenarik Boujikian

    é desembargadora aposentada do TJ-SP especialista em Direitos Humanos membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

7 de outubro de 2020, 8h40

Spacca
Outubro é o mês da comemoração do natalício da Constituição Federal e, dois anos atrás, participei do seminário “30 anos da Constituição Cidadã — Avanços e Retrocessos”, promovido pela Folha de São Paulo, Conectas e Fundação Getúlio Vargas. Lá, critiquei uma fala do então presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Dias Toffoli, que se referiu ao período da ditadura civil militar como “movimento” e foquei na disfuncionalidade do Judiciário, com indicação de várias situações que mostravam este caráter.

Um dos aspectos que apontei foi o modo de funcionamento da nossa Corte Suprema, que nem sempre atua como uma unidade colegiada, já que permite que decisões sejam enfeixadas na mão de apenas um ministro, sem qualquer tipo de controle. Vemos que os rumos do país, no recorte jurisdicional, fica nas mãos de uma pessoa.

Assim, exemplifiquei que é o relator que decide quando um processo vai para julgamento e não há qualquer prazo para tal (pode demorar anos); depois é o presidente do STF que decide se e quando o processo é pautado; na sessão de julgamento, um ministro pode pedir vista e trancar o andamento pelo tempo que ele bem entender.

Tudo isso sem uma pitada de transparência.

Pois bem, este aspecto da disfuncionalidade está presente no cotidiano do STF, repercutindo negativamente para o necessário ambiente democrático.

Há ações em curso no STF que têm por objeto as estruturas postas pelo próprio Poder Judiciário e nas quais se busca a conformidade com o regramento constitucional.

Focarei na ADI 4.168, que foi proposta pela Anamatra em outubro de 2008 e, passados 12 anos, estamos ainda naquela primeira etapa, em que se aguarda o relator decidir que está pronto para julgamento.

Soube de sua interposição, no início deste ano, quando li que o Corregedor Geral do TRT, na atuação administrativa, em sede de correição parcial, teria dado uma decisão que tinha cunho jurisdicional.

Evidentemente que fiquei perplexa e achei que houve má compreensão de minha parte ou do autor da matéria, pois é fundante que nenhum órgão correcional pode interferir em decisão judicial.

Mas não é que isto é fato?

Pouco antes da interposição desta ADI, criou-se no Regimento Interno da Corregedoria da Justiça do Trabalho, esta esdrúxula possibilidade, ao dispor em seu artigo art.13, §1º:

“Art. 13 A correição parcial é cabível para corrigir erros, abusos e atos contrários à boa ordem processual e que importem em atentado a fórmulas legais de processo, quando para o caso não haja recurso ou outro meio processual específico.

Parágrafo único. Em situação extrema ou excepcional, poderá o Corregedor-Geral adotar as medidas necessárias a impedir lesão de difícil reparação, assegurando, dessa forma, eventual resultado útil do processo, até que ocorra o exame da matéria pelo órgão jurisdicional competente”.

O que se constata é que o TST extrapolou os poderes normativos próprios de um tribunal , concedeu função jurisdicional à atividade correcional e por esta via subtraiu do jurisdicionado o seu juiz natural, que é o único que deveria decidir estas questões.

Não é minimamente razoável que um Corregedor suspenda ou reforme decisão judicial, utilizando a via correcional, que deve ter vinculação exclusiva com o chamado “error in procedendo”, erros de procedimento cometidos por magistrados.

O Corregedor não está investido de poder jurisdicional, de modo que não pode, em hipótese alguma, substituir o Estado-juiz. Órgão para modificar decisão judicial, cassando, reformando, anulando ou suspendendo é unicamente o órgão investido de poder jurisdicional, que é indelegável.

Permitir o uso desta via administrativa em substituição ao arcabouço recursal e de ações cautelares é retirar a jurisdição do órgão próprio, criado por lei. É suprimir a instância recursal constitucional e legal. Ao assim proceder usurpa-se atribuição exclusiva do Poder Legislativo e subverte-se o sistema recursal estabelecido na nossa legislação.

As violações constitucionais estão evidentes: rompeu-se o devido processo legal, o princípio do juiz natural, a inafastabilidade da jurisdição.

Mas neste espaço restrito cabe lembrar a dicção do art. 5º LIII, da Constituição Federal: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. A lide sempre é atribuída por antemão à um juiz competente, que detém a jurisdição, o poder de dizer o direito para aquele caso, ou seja, por quem tem poder jurisdicional. A fonte desta atribuição é a Constituição e a lei.

Nos elementos constitutivos do devido processo legal encontramos esta figura da qual irradia o papel do Judiciário, no Estado Democrático de Direito, que é o juiz natural, a que ninguém pode ser subtraído. Em questão jurisdicional só é permitida a atuação de quem tem competência jurisdicional e corregedor só tem função administrativa.

Bem, a ADI cumpriu os trâmites regulamentares; em 2018 houve reiteração do pedido liminar, ainda não apreciado; em 2020 teve pedido de ingresso na ação como “amicus”, da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Houve manifestação do TST e da AGU (manifestando pela interpretação conforme e limitada do referido artigo 13 para atos que caracterizam como “erro en procedendo”), em 2009 e no mesmo ano a Procuradoria Geral da República apresentou parecer pela procedência parcial da ADI, do qual destaco:

“Por outro lado, o defendido caráter administrativo da medida prevista no caput do art. 13 não parece estar presente em seu § 1º, notadamente no que concerne à sua parte final, ao permitir que o Corregedor Geral conceda tutelas de urgência ‘até que ocorra o exame da matéria pelo órgão jurisdicional competente’.

Para o exame de questões que devam ser levadas ao Corregedor-Geral, por meio de tais reclamações, não pode haver órgão jurisdicional competente.

E aqui, pelo que sugere a redação do referido § 1º do art. 13, o Corregedor-Geral poderá apreciar medidas cautelares relativas a processos em que haja recurso pendente de julgamento ou ainda não interposto…

O fato é que o § 1º do art. 13 subverte a medida objeto do próprio caput do artigo, conferindo-lhe abrangência muito mais ampla: uma nova via de reforma de decisões judiciais”.

Infelizmente, uma das disfuncionalidades que mencionei naquele seminário, se revelam nesta ADI e no regimento do TST. A demora no julgamento impõe danos sociais elevados.

Mas convenhamos, já é tempo do próprio TST rever esta normativa, como já fizeram outros tribunais ao constatar a impertinência de algumas regras regimentais.

Recordo-me que a primeira manifestação da AJD e uma das primeiras do CNJ, em julho de 2005, foi justamente para que este Órgão vertesse o olhar para os temas atinentes ao juiz natural e a independência judicial e um dos exemplos apontados era a existência de normas regimentais de concentração de decisões em matéria liminar nos vice-presidentes, ao invés de distribuição ao relator do processo. Posteriormente, foi apresentado um pedido específico nesta matéria referente ao Tribunal de Justiça de São Paulo, mas antes mesmo de qualquer decisão, o Órgão Especial do TJSP reviu seu regimento interno e alterou a regra violadora do princípio do juiz natural.

O TST poderia perfeitamente se debruçar para este quadro e realinhar seu Regimento à determinação constitucional.

Sempre há que se comemorar a Constituição de 1988, uma grande conquista do povo brasileiro, mas é preciso chegar o momento de comemorar seu cumprimento. Muito ainda se espera do Judiciário: que não seja o violador dos direitos fundamentais; que as disfuncionalidades não façam mais parte de seu cotidiano; que a ADI 4168 seja julgada o quanto antes, especialmente sua liminar; que as distorções regimentais sejam retiradas do mundo normativo e mais, que o TRT, reveja seu próprio regimento dando nova redação ao artigo 13.

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    é desembargadora TJ-SP (1989/2019), especialista em Direitos Humanos, consultora da Comissão de OAB-SP, cofundadora da AJD e ABJD e membro do Grupo Prerrogativas.

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