Uma das principais mazelas do sistema de administração da Justiça criminal pátria é a defesa técnica não efetiva, que atinge principalmente os menos favorecidos, integrantes da clientela preferencial desse sistema.
A sobredita pesquisa empírica apurou que, entre esse universo de acusados: 1) 97,69% não tiveram qualquer tipo de defesa técnica ao ensejo da lavratura do auto de prisão em flagrante; 2) 77% não tiveram requerimento de qualquer medida (pedido de relaxamento de flagrante, liberdade provisória, revogação de prisão preventiva ou Habeas Corpus) em favor da sua liberdade; 3) 92,89% não tiveram acesso à defesa técnica logo após a denúncia; 4) 21,82% não contaram com a assistência de defensor técnico por ocasião do interrogatório; 5) 9,09% não tiveram defesa prévia; 6) 35,7% não tiveram pedido de diligências; e 7) 98,84% não tiveram sustentação oral recursal.
Por outro lado, praticamente todos os condenados tiveram alegações finais e razões de apelação confeccionadas pelos respectivos defensores técnicos.
A conclusão à qual se chegou é que só houve exercício da defesa técnica mediante apresentação as peças processuais que à época eram consideradas obrigatórias pela jurisprudência, sob pena de nulidade processual [1].
É lícito supor que, entre as causas dessa precariedade da defesa técnica, estão: 1) a falta de infraestrutura, de pessoal e o excesso de demanda dos órgãos públicos de assistência judiciária; 2) a precariedade da formação, capacitação e remuneração dos advogados nomeados para prestar serviço de assistência judiciária dativa; 3) a falta de fiscalização judicial rigorosa sobre a falta de efetividade da defesa técnica; 4) a tendência jurisprudencial de se exigir prova do prejuízo decorrente de defesa técnica não efetiva.
Trata-se de grave disfunção do sistema de administração da Justiça criminal brasileira, pois a defesa técnica transcende o interesse pessoal do acusado, revestindo-se de interesse público na legitimidade ética e política desse sistema (nemo iudex sine defensione) [2].
A defesa técnica deve ser efetiva, revelando capacitação técnica e empenho pessoal do defensor.
Nessa seara, o conceito de defesa penal inexistente é pouco útil.
Como o ordenamento constitucional assegura a defesa penal ampla, com os meios e recursos a ela inerentes, afirmar que a defesa penal inexistente enseja atipicidade constitucional é praticamente um truísmo.
Tampouco se afigura adequado o conceito de defesa penal deficiente.
Devido à sua raiz etimológica (o latim efficientia: faculdade de produzir um efeito; virtude, propriedade, ação), a palavra eficiência denota algo que efetivamente produz resultado específico e desejado.
Ocorre que o defensor técnico não tem dever de obter sempre o resultado absolutório, e, sim, dever de atuação tecnicamente capacitada e pessoalmente empenhada na obtenção desse resultado. Logo, a defesa técnica se assemelha à obrigação de meio, e não de resultado.
A prática forense demonstra que por vezes a defesa penal é efetiva, havendo empenho pessoal de defensor tecnicamente capacitado, e mesmo assim ela não atinge resultado absolutório. E isso por motivo completamente alheio à vontade do acusado e de seu defensor: a robustez dos elementos probatórios incriminadores. Nessas hipóteses, a defesa técnica pode ser considerada deficiente, pois não logrou o resultado que almejava, porém não há que se falar em nulidade processual.
Logo, é recomendável a depuração desse imbróglio conceitual, pelo manejo de dois conceitos: 1) defesa penal ampla: aquela que atende à exigência da cláusula petrificada no artigo 5º, LV do texto magno; 2) defesa penal restrita (antítese daquela): aquela que viola a cláusula em tela, ensejando nulidade processual absoluta [3].
Tal nulidade processual pode decorrer da demonstração casuística da imperícia ou negligência do defensor técnico.
Isso porque a norma jurídica deve ser dotada, além de vigência (cumprimento dos requisitos formais de incorporação ao ordenamento jurídico) e validade (conformidade com o restante do ordenamento jurídico), de efetividade. Esta última pressupõe concepção instrumental do ordenamento jurídico a serviço de determinados fins, classificando a norma jurídica pelo critério da sua idoneidade para atingir determinado objetivo [4].
Nas hipóteses em que o defensor técnico do acusado é imperito ou negligente, desperdiçando sucessivas oportunidades processuais a ponto de diminuir as chances de resultado processual mais favorável, não resta dúvida que se retira da ampla defesa esse atributo da efetividade.
A grande dificuldade para a caracterização da nulidade processual em digressão é a falta de standards claros para aferição da imperícia ou negligência do defensor técnico, na prática judiciária.
Creio ser possível apresentar modesta proposta de standards para essa aferição.
De início, a efetividade da defesa técnica não deve, em regra, ser analisada com base em ato processual isolado, e, sim, levando em conta o complexo ou conteúdo diversificado da atuação do defensor.
Com efeito, omissão pontual do defensor pode não advir de negligência, e, sim, integrar estratégia defensiva. Por exemplo: a não oposição da exceção de incompetência territorial, no prazo legal (artigo 108 do Código de Processo Penal), acarreta preclusão temporal, mas pode ser tática defensiva, por se considerar o juízo territorialmente incompetente mais favorável.
A exceção a essa regra geral é a falta de efetividade da defesa técnica em sede de alegações finais orais (ou memorial escrito). Tal ato processual, por representar o momento culminante e decisivo da atividade defensiva, pode, por si só, autorizar conclusão de que o acusado está indefeso.
Destarte, é possível esboçar alguns standards, com base em duas ordens de considerações distintas: empenho pessoal e capacitação técnica do defensor técnico.
O standard vinculado ao empenho pessoal pode ser desmembrado em três critérios: 1) comparecimento a atos processuais: a ausência injustificada inquestionavelmente indica negligência; 2) protocolização de arrazoados: a falta de resposta à acusação, memorial escrito ou razões de apelação comprova, por si só, negligência do defensor. Em se tratando de acusado preso, a falta de pedido de relaxamento de prisão, liberdade provisória ou Habeas Corpus também indicam negligência; e 3) requerimento de provas: a resposta à acusação consiste na única oportunidade para exercício do direito à prova defensiva, sendo difícil conceber defesa efetiva dissociada do requerimento de provas nesse ensejo.
Por outro flanco, o standard relacionado à capacitação técnica do defensor leva em consideração o conteúdo técnico dos seus arrazoados mais complexos. Malgrado a resposta à acusação possa comportar maior grau de singeleza por estratégia defensiva, não se pode conceber alegações finais orais, memorial escrito ou razões de apelação destituídos de: 1) fundamentação jurídica consistente, baseada em citações doutrinárias, jurisprudenciais e legislativas; 2) análise crítica dos elementos probatórios amealhados nos autos; e 3) pedido de absolvição do acusado.
Assim, alegações finais orais e memoriais escritos que se circunscrevem a sucintas e polivalentes considerações genéricas, independentes das peculiaridades do caso concreto, denotam imperícia do defensor. O mesmo se diga quanto a argumentos manifestamente equivocados, do ponto de vista da dogmática penal e processual penal.
Por fim, importa salientar que esses dois critérios não são cumulativos. Vale dizer: basta a constatação de que o defensor técnico é imperito ou negligente para se concluir que o acusado está indefeso.
Como a defesa penal ampla é cláusula pétrea constitucional, sua violação acarreta sempre nulidade absoluta do processo, em razão da dimensão de garantia que tem a norma em digressão, que interessa à ordem pública e à boa condução do processo [5].
Portanto, não há de se cogitar de nulidade relativa, irregularidade, nem necessidade de demonstração do prejuízo suportado pelo acusado.
Quanto à questão do prejuízo, ao que tudo indica os tribunais atribuem ao acusado o ônus de provar que, caso o defensor técnico tivesse capacitação técnica e empenho pessoal, o resultado processual seria mais favorável.
Não obstante, trata-se de prova impossível (probatio diabolica), pois é humanamente impossível para o acusado satisfazer esse rigoroso ônus.
Tal aspecto foi realçado pelo ilustre ministro Sepúlveda Pertence, em julgamento acerca de nulidade decorrente de falta de notificação do defensor técnico para a sessão de julgamento do recurso. Nessa ocasião, o ministro ressalvou ser impossível essa prova do prejuízo, ou seja, de que, caso houvesse sustentação oral, o resultado do julgamento recursal seria outro [6].
Tal raciocínio também se aplica à nulidade em apreço: o acusado não tem como provar que, caso ele tivesse defesa técnica efetiva, haveria deslinde processual mais favorável.
O argumento da ausência de prejuízo acaba servindo como artifício retórico para justificar sistemática negativa em se declarar nulidade decorrente da falta de efetividade da defesa técnica.
Essa conjuntura é agravada pela subsistência do Enunciado nº 523 da súmula da Suprema Corte: "No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu".
Esse verbete sumular foi aprovado em 1969, no auge do recrudescimento do regime de exceção de 1964, portanto antes de o Brasil iniciar a redemocratização do seu sistema de administração da Justiça criminal, ratificar a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos etc.
Nada obstante, desde a promulgação do enunciado sumular em apreço houve profunda ressignificação da cláusula pétrea da defesa penal ampla, com sucessivas mudanças legislativas (com destaque para a Lei nº 10.792/03) que asseguram: 1) a assistência jurídica ao preso em flagrante delito; 2) a assistência jurídica ao cliente investigado, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento, e elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes; 3) a entrevista reservada entre o acusado e o defensor técnico, previamente ao interrogatório; 4) o interrogatório do acusado na presença do defensor técnico; 5) a proibição de uso do silêncio do interrogando como argumento de prova incriminador; 6) as reperguntas ao interrogando pelo defensor técnico; 7) o exame cruzado das testemunhas de acusação; 8) a proibição de julgamento do acusado, ainda que ausente ou foragido, sem defensor; 9) a exigência de manifestação fundamentada da defesa técnica; 10) a nomeação de defensor técnico para o acusado, quando o juiz presidente do Tribunal do Júri considerá-lo indefeso etc.
Nessa mesma toada, o Supremo Tribunal Federal vem exercendo importante papel institucional de ampliar o conteúdo da cláusula em análise, reconhecendo: 1) o direito do acusado à livre escolha do defensor técnico [7]; 2) o estreito vínculo entre as prerrogativas profissionais do advogado e o regime constitucional das liberdades públicas [8]; 3) o direito à comunicação pessoal e reservada entre defensor técnico e acusado preso [9]; 4) o direito do defensor técnico de acessar os autos do inquérito policial [10]; 5) o direito do defensor técnico à última palavra [11]; 6) o direito do defensor técnico a formular perguntas a corréus [12]; 7) o direito do defensor dativo à intimação pessoal [13]; 8) o direito do defensor técnico ao prazo em dobro, quando há multiplicidade de acusados com procuradores distintos [14]; 9) o direito do defensor a ser notificado da data da sessão de julgamento [15]; 10) o direito do defensor técnico do corréu delatado a apresentar memorial escrito após o defensor do corréu delator [16] etc.
Assim, é lícito concluir que o vetusto Verbete nº 523 da súmula da Suprema Corte está a merecer cancelamento, pois ele maneja conceitos inadequados (inexistência e deficiência) e não fornece standards satisfatórios para aferição da efetividade da defesa técnica.
Além disso, o prejuízo exigido por esse enunciado sumular acaba servindo como artifício retórico para sistemática negativa de declaração de nulidade decorrente de defesa técnica não efetiva.
Isso porque a prova de que, caso o defensor técnico tivesse capacitação técnica e empenho pessoal, o resultado processual seria mais favorável ao acusado constitui prova impossível (probatio diabolica).
[1] MARTINS, Fernanda Vargues; REZENDE, Guilherme Madi. Defesa formal x defesa substancial, In: Decisões judiciais nos crimes de roubo em São Paulo: A lei, o direito e a ideologia, pp. 97-107. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais/Instituto de Defesa do Direito de Defesa, 2005.
[2] MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis, BASTOS, Cleunice A. Valentim. Defesa penal: Direito ou garantia? In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 04, pp. 110-125, out./dez. 1993.
[3] MALAN, Diogo. Defesa penal efetiva, In: Ciências Penais, São Paulo, n. 04, pp. 253-277, jan./jun. 2006.
[4] SERRANO, José Luis. Validez y vigencia: La aportación garantista a la teoría de la norma jurídica, especialmente pp. 20-23. Madrid: Trotta, 1999.
[5] GRINOVER, Ada Pellegrini. O sistema de nulidades processuais e a Constituição, In: O processo em evolução, pp. 35-44. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
[6] "Sustentação oral frustrada pela ausência de intimação da pauta de julgamento: demonstração de prejuízo: prova impossível (v.g., HC 69.142, 1ª T., 11.2.92, Pertence, RTJ 140/926). Frustrado o direito da parte à sustentação oral, nulo o julgamento, não cabendo reclamar, a título de demonstração de prejuízo, a prova impossível de que, se utilizada aquela oportunidade legal de defesa, outra teria sido a decisão do recurso" (STF, 1ª Turma, HC 85.443-SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 13.05.2005, p. 19).
[7] STF, 1ª Turma, HC 67.755-SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 11.09.1992.
[8] STF, 2ª Turma, MS 23.576-DF (ordem liminar), Rel. Min. Celso de Mello, DJ 07.12.1999.
[9] STF, 1ª Turma, HC 85.200-RJ, Rel. Min. Eros Grau, DJ 03.02.2006.
[10] STF, 1ª Turma, HC 87.827-RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 23.06.2006.
[11] STF, Pleno, HC 87.926-SP, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 25.04.2008.
[12] STF, 2ª Turma, HC 94.016-SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27.02.2009.
[13] STF, 2ª Turma, HC 110.656-PR, Rel. Min. Ayres Britto, DJ 21.06.2012.
[14] STF, Pleno, AP 470-MG AgR (vigésimo segundo), Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 24.09.2013.
[15] STF, 1ª Turma, RHC 120.031-SP, Rel. Min. Rosa Weber, DJ 12.02.2014.
[16] STF, 2ª Turma, HC 157.627-PR AgR, Rel. Min. Edson Fachin, DJ 17.03.2020.