Opinião

Advocacia criminal e defesa técnica efetiva

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7 de outubro de 2020, 8h05

Uma das principais mazelas do sistema de administração da Justiça criminal pátria é a defesa técnica não efetiva, que atinge principalmente os menos favorecidos, integrantes da clientela preferencial desse sistema.

Spacca
Há interessante pesquisa do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), que analisou amostragem de 570 apelações relativas ao crime de roubo, julgadas pelo antigo Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, em 1999 e 2000.

A sobredita pesquisa empírica apurou que, entre esse universo de acusados: 1) 97,69% não tiveram qualquer tipo de defesa técnica ao ensejo da lavratura do auto de prisão em flagrante; 2) 77% não tiveram requerimento de qualquer medida (pedido de relaxamento de flagrante, liberdade provisória, revogação de prisão preventiva ou Habeas Corpus) em favor da sua liberdade; 3) 92,89% não tiveram acesso à defesa técnica logo após a denúncia; 4) 21,82% não contaram com a assistência de defensor técnico por ocasião do interrogatório; 5) 9,09% não tiveram defesa prévia; 6) 35,7% não tiveram pedido de diligências; e 7) 98,84% não tiveram sustentação oral recursal.

Por outro lado, praticamente todos os condenados tiveram alegações finais e razões de apelação confeccionadas pelos respectivos defensores técnicos.

A conclusão à qual se chegou é que só houve exercício da defesa técnica mediante apresentação as peças processuais que à época eram consideradas obrigatórias pela jurisprudência, sob pena de nulidade processual [1].

É lícito supor que, entre as causas dessa precariedade da defesa técnica, estão: 1) a falta de infraestrutura, de pessoal e o excesso de demanda dos órgãos públicos de assistência judiciária; 2) a precariedade da formação, capacitação e remuneração dos advogados nomeados para prestar serviço de assistência judiciária dativa; 3) a falta de fiscalização judicial rigorosa sobre a falta de efetividade da defesa técnica; 4) a tendência jurisprudencial de se exigir prova do prejuízo decorrente de defesa técnica não efetiva.

Trata-se de grave disfunção do sistema de administração da Justiça criminal brasileira, pois a defesa técnica transcende o interesse pessoal do acusado, revestindo-se de interesse público na legitimidade ética e política desse sistema (nemo iudex sine defensione[2].

A defesa técnica deve ser efetiva, revelando capacitação técnica e empenho pessoal do defensor.

Nessa seara, o conceito de defesa penal inexistente é pouco útil.

Como o ordenamento constitucional assegura a defesa penal ampla, com os meios e recursos a ela inerentes, afirmar que a defesa penal inexistente enseja atipicidade constitucional é praticamente um truísmo.

Tampouco se afigura adequado o conceito de defesa penal deficiente.

Devido à sua raiz etimológica (o latim efficientia: faculdade de produzir um efeito; virtude, propriedade, ação), a palavra eficiência denota algo que efetivamente produz resultado específico e desejado.

Ocorre que o defensor técnico não tem dever de obter sempre o resultado absolutório, e, sim, dever de atuação tecnicamente capacitada e pessoalmente empenhada na obtenção desse resultado. Logo, a defesa técnica se assemelha à obrigação de meio, e não de resultado.

A prática forense demonstra que por vezes a defesa penal é efetiva, havendo empenho pessoal de defensor tecnicamente capacitado, e mesmo assim ela não atinge resultado absolutório. E isso por motivo completamente alheio à vontade do acusado e de seu defensor: a robustez dos elementos probatórios incriminadores. Nessas hipóteses, a defesa técnica pode ser considerada deficiente, pois não logrou o resultado que almejava, porém não há que se falar em nulidade processual.

Logo, é recomendável a depuração desse imbróglio conceitual, pelo manejo de dois conceitos: 1) defesa penal ampla: aquela que atende à exigência da cláusula petrificada no artigo 5º, LV do texto magno; 2) defesa penal restrita (antítese daquela): aquela que viola a cláusula em tela, ensejando nulidade processual absoluta [3].

Tal nulidade processual pode decorrer da demonstração casuística da imperícia ou negligência do defensor técnico.

Isso porque a norma jurídica deve ser dotada, além de vigência (cumprimento dos requisitos formais de incorporação ao ordenamento jurídico) e validade (conformidade com o restante do ordenamento jurídico), de efetividade. Esta última pressupõe concepção instrumental do ordenamento jurídico a serviço de determinados fins, classificando a norma jurídica pelo critério da sua idoneidade para atingir determinado objetivo [4].

Nas hipóteses em que o defensor técnico do acusado é imperito ou negligente, desperdiçando sucessivas oportunidades processuais a ponto de diminuir as chances de resultado processual mais favorável, não resta dúvida que se retira da ampla defesa esse atributo da efetividade.

A grande dificuldade para a caracterização da nulidade processual em digressão é a falta de standards claros para aferição da imperícia ou negligência do defensor técnico, na prática judiciária.

Creio ser possível apresentar modesta proposta de standards para essa aferição.

De início, a efetividade da defesa técnica não deve, em regra, ser analisada com base em ato processual isolado, e, sim, levando em conta o complexo ou conteúdo diversificado da atuação do defensor.

Com efeito, omissão pontual do defensor pode não advir de negligência, e, sim, integrar estratégia defensiva. Por exemplo: a não oposição da exceção de incompetência territorial, no prazo legal (artigo 108 do Código de Processo Penal), acarreta preclusão temporal, mas pode ser tática defensiva, por se considerar o juízo territorialmente incompetente mais favorável.

A exceção a essa regra geral é a falta de efetividade da defesa técnica em sede de alegações finais orais (ou memorial escrito). Tal ato processual, por representar o momento culminante e decisivo da atividade defensiva, pode, por si só, autorizar conclusão de que o acusado está indefeso.

Destarte, é possível esboçar alguns standards, com base em duas ordens de considerações distintas: empenho pessoal e capacitação técnica do defensor técnico.

O standard vinculado ao empenho pessoal pode ser desmembrado em três critérios: 1) comparecimento a atos processuais: a ausência injustificada inquestionavelmente indica negligência; 2) protocolização de arrazoados: a falta de resposta à acusação, memorial escrito ou razões de apelação comprova, por si só, negligência do defensor. Em se tratando de acusado preso, a falta de pedido de relaxamento de prisão, liberdade provisória ou Habeas Corpus também indicam negligência; e 3) requerimento de provas: a resposta à acusação consiste na única oportunidade para exercício do direito à prova defensiva, sendo difícil conceber defesa efetiva dissociada do requerimento de provas nesse ensejo.

Por outro flanco, o standard relacionado à capacitação técnica do defensor leva em consideração o conteúdo técnico dos seus arrazoados mais complexos. Malgrado a resposta à acusação possa comportar maior grau de singeleza por estratégia defensiva, não se pode conceber alegações finais orais, memorial escrito ou razões de apelação destituídos de: 1) fundamentação jurídica consistente, baseada em citações doutrinárias, jurisprudenciais e legislativas; 2) análise crítica dos elementos probatórios amealhados nos autos; e 3) pedido de absolvição do acusado.

Assim, alegações finais orais e memoriais escritos que se circunscrevem a sucintas e polivalentes considerações genéricas, independentes das peculiaridades do caso concreto, denotam imperícia do defensor. O mesmo se diga quanto a argumentos manifestamente equivocados, do ponto de vista da dogmática penal e processual penal.

Por fim, importa salientar que esses dois critérios não são cumulativos. Vale dizer: basta a constatação de que o defensor técnico é imperito ou negligente para se concluir que o acusado está indefeso.

Como a defesa penal ampla é cláusula pétrea constitucional, sua violação acarreta sempre nulidade absoluta do processo, em razão da dimensão de garantia que tem a norma em digressão, que interessa à ordem pública e à boa condução do processo [5].

Portanto, não há de se cogitar de nulidade relativa, irregularidade, nem necessidade de demonstração do prejuízo suportado pelo acusado.

Quanto à questão do prejuízo, ao que tudo indica os tribunais atribuem ao acusado o ônus de provar que, caso o defensor técnico tivesse capacitação técnica e empenho pessoal, o resultado processual seria mais favorável.

Não obstante, trata-se de prova impossível (probatio diabolica), pois é humanamente impossível para o acusado satisfazer esse rigoroso ônus.

Tal aspecto foi realçado pelo ilustre ministro Sepúlveda Pertence, em julgamento acerca de nulidade decorrente de falta de notificação do defensor técnico para a sessão de julgamento do recurso. Nessa ocasião, o ministro ressalvou ser impossível essa prova do prejuízo, ou seja, de que, caso houvesse sustentação oral, o resultado do julgamento recursal seria outro [6].

Tal raciocínio também se aplica à nulidade em apreço: o acusado não tem como provar que, caso ele tivesse defesa técnica efetiva, haveria deslinde processual mais favorável.

O argumento da ausência de prejuízo acaba servindo como artifício retórico para justificar sistemática negativa em se declarar nulidade decorrente da falta de efetividade da defesa técnica.

Essa conjuntura é agravada pela subsistência do Enunciado nº 523 da súmula da Suprema Corte: "No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu".

Esse verbete sumular foi aprovado em 1969, no auge do recrudescimento do regime de exceção de 1964, portanto antes de o Brasil iniciar a redemocratização do seu sistema de administração da Justiça criminal, ratificar a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos etc.

Nada obstante, desde a promulgação do enunciado sumular em apreço houve profunda ressignificação da cláusula pétrea da defesa penal ampla, com sucessivas mudanças legislativas (com destaque para a Lei nº 10.792/03) que asseguram: 1) a assistência jurídica ao preso em flagrante delito; 2) a assistência jurídica ao cliente investigado, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento, e elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes; 3) a entrevista reservada entre o acusado e o defensor técnico, previamente ao interrogatório; 4) o interrogatório do acusado na presença do defensor técnico; 5) a proibição de uso do silêncio do interrogando como argumento de prova incriminador; 6) as reperguntas ao interrogando pelo defensor técnico; 7) o exame cruzado das testemunhas de acusação; 8) a proibição de julgamento do acusado, ainda que ausente ou foragido, sem defensor; 9) a exigência de manifestação fundamentada da defesa técnica; 10) a nomeação de defensor técnico para o acusado, quando o juiz presidente do Tribunal do Júri considerá-lo indefeso etc.

Nessa mesma toada, o Supremo Tribunal Federal vem exercendo importante papel institucional de ampliar o conteúdo da cláusula em análise, reconhecendo: 1) o direito do acusado à livre escolha do defensor técnico [7]; 2) o estreito vínculo entre as prerrogativas profissionais do advogado e o regime constitucional das liberdades públicas [8]; 3) o direito à comunicação pessoal e reservada entre defensor técnico e acusado preso [9]; 4) o direito do defensor técnico de acessar os autos do inquérito policial [10]; 5) o direito do defensor técnico à última palavra [11]; 6) o direito do defensor técnico a formular perguntas a corréus [12]; 7) o direito do defensor dativo à intimação pessoal [13]; 8) o direito do defensor técnico ao prazo em dobro, quando há multiplicidade de acusados com procuradores distintos [14]; 9) o direito do defensor a ser notificado da data da sessão de julgamento [15]; 10) o direito do defensor técnico do corréu delatado a apresentar memorial escrito após o defensor do corréu delator [16] etc.

Assim, é lícito concluir que o vetusto Verbete nº 523 da súmula da Suprema Corte está a merecer cancelamento, pois ele maneja conceitos inadequados (inexistência e deficiência) e não fornece standards satisfatórios para aferição da efetividade da defesa técnica.

Além disso, o prejuízo exigido por esse enunciado sumular acaba servindo como artifício retórico para sistemática negativa de declaração de nulidade decorrente de defesa técnica não efetiva.

Isso porque a prova de que, caso o defensor técnico tivesse capacitação técnica e empenho pessoal, o resultado processual seria mais favorável ao acusado constitui prova impossível (probatio diabolica).

 

[1] MARTINS, Fernanda Vargues; REZENDE, Guilherme Madi. Defesa formal x defesa substancial, In: Decisões judiciais nos crimes de roubo em São Paulo: A lei, o direito e a ideologia, pp. 97-107. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais/Instituto de Defesa do Direito de Defesa, 2005.

[2] MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis, BASTOS, Cleunice A. Valentim. Defesa penal: Direito ou garantia? In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 04, pp. 110-125, out./dez. 1993.

[3] MALAN, Diogo. Defesa penal efetiva, In: Ciências Penais, São Paulo, n. 04, pp. 253-277, jan./jun. 2006.

[4] SERRANO, José Luis. Validez y vigencia: La aportación garantista a la teoría de la norma jurídica, especialmente pp. 20-23. Madrid: Trotta, 1999.

[5] GRINOVER, Ada Pellegrini. O sistema de nulidades processuais e a Constituição, In: O processo em evolução, pp. 35-44. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.

[6] "Sustentação oral frustrada pela ausência de intimação da pauta de julgamento: demonstração de prejuízo: prova impossível (v.g., HC 69.142, 1ª T., 11.2.92, Pertence, RTJ 140/926). Frustrado o direito da parte à sustentação oral, nulo o julgamento, não cabendo reclamar, a título de demonstração de prejuízo, a prova impossível de que, se utilizada aquela oportunidade legal de defesa, outra teria sido a decisão do recurso" (STF, 1ª Turma, HC 85.443-SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 13.05.2005, p. 19).

[7] STF, 1ª Turma, HC 67.755-SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 11.09.1992.

[8] STF, 2ª Turma, MS 23.576-DF (ordem liminar), Rel. Min. Celso de Mello, DJ 07.12.1999.

[9] STF, 1ª Turma, HC 85.200-RJ, Rel. Min. Eros Grau, DJ 03.02.2006.

[10] STF, 1ª Turma, HC 87.827-RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 23.06.2006.

[11] STF, Pleno, HC 87.926-SP, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 25.04.2008.

[12] STF, 2ª Turma, HC 94.016-SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27.02.2009.

[13] STF, 2ª Turma, HC 110.656-PR, Rel. Min. Ayres Britto, DJ 21.06.2012.

[14] STF, Pleno, AP 470-MG AgR (vigésimo segundo), Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 24.09.2013.

[15] STF, 1ª Turma, RHC 120.031-SP, Rel. Min. Rosa Weber, DJ 12.02.2014.

[16] STF, 2ª Turma, HC 157.627-PR AgR, Rel. Min. Edson Fachin, DJ 17.03.2020.

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