Opinião

A proteção das APPs e os limites da desregulação nas revogações do Conama

Autor

  • Rafael Martins Costa Moreira

    é juiz federal na 5ª Vara de Caxias do Sul (RS) presidente da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Ajufergs) professor de Direito Ambiental e Administrativo doutorando e mestre em Direito pela PUCRS e autor das obras "Direito Administrativo e Sustentabilidade: O Novo Controle Judicial da Administração Pública" e "Manual de Direito Ambiental" ambos pela editora Forum.

6 de outubro de 2020, 12h04

No dia 28 de setembro, o Conama, em decisão polêmica, revogou três resoluções: a Resolução 284/01, que trata de licenciamento ambiental de empreendimentos de irrigação; a Resolução 302/2002, que dispõe sobre Áreas de Preservação Permanente (APPs) de reservatórios artificiais e o regime de uso do entorno; e a Resolução 303/2002, que dispõe sobre parâmetros, definições e limites de APPs. O fato foi amplamente noticiado, levantou controvérsias e vozes autorizadas consideraram a medida como retrocesso ambiental [1]. Quanto às Resoluções 302 e 303, que serão objeto deste artigo, a questão foi judicializada em ação popular proposta perante a Justiça Federal do Rio de Janeiro, em que decisão liminar suspendendo a revogação restou posteriormente reformada no TRF-2 [2].

Não se controverte que, nos últimos anos, tem-se acelerado o movimento de flexibilização regulatória que iniciara ainda nos anos 1980. O que se testemunha agora é uma maior tendência à desregulação ambiental, realidade que se verifica, por exemplo, com a nova composição do Conama, promovida pelo Decreto 10.003/19, que reduziu a participação da sociedade civil e ampliou a participação do poder público [3]; ou as propostas de simplificação e agilização do licenciamento ambiental [4]. Quando se distancia da polarização político-partidária e ideológica que lamentavelmente ainda domina os debates nessa seara, pode-se dizer que, por um lado, a racionalização ou mesmo a redução da regulação, por si só, não pode ser inquinada de ilegítima; mas, de outro lado, a desregulação encontra limites jurídicos, notadamente diante dos deveres constitucionais de proteção e implementação das normas ambientais impostos à sociedade e aos poderes públicos (CF, artigo 225), da vedação de retrocesso ambiental e de proteção deficiente. Esse é o cerne da controvérsia sobre o futuro da política ambiental, e é sob esse aspecto que deve ser analisado se a revogação das Resolução 302 e 303 operada pelo Conama cruzou esses limites e ingressou no campo da inconstitucionalidade e ilegalidade.

Quanto à Resolução 302/02, que dispôs sobre APP de reservatórios artificiais e o regime de uso do entorno, é inafastável concluir pela sua revogação pelo novo Código Florestal. De fato, e independentemente da discussão sobre eventual retrocesso ambiental derivado de tópicos da Lei nº 12.651/12, o STF considerou constitucionais os dispositivos que tratam das APPs no entorno de reservatórios d’água artificiais [5], os quais dispõem de forma diversa que a referida resolução. E o Conama, por dever de autotutela [6], tem de declarar a ilegalidade de sua própria resolução.

Diversa, porém, é a situação da Resolução nº 303/02. Essa resolução foi editada quando ainda vigorava o Código Florestal anterior (Lei 4.771/65), o qual permitia, no artigo 3º [7], que "ato do poder público" (sem especificar qual) declarasse áreas como APPs. Em contraste, o artigo 6º [8] do novo Código Florestal previu que apenas "ato do chefe do Poder Executivo" pode fazê-lo, o que significa que o Conama não mais ostentaria competência para criar novas APPs. Diante disso, exsurge a seguinte indagação: em caso de revogação ou alteração da lei, os atos normativos que regulamentaram a lei antiga permanecem em vigor?. Ou, perguntado de outro modo: se não mais vigora a base legal que serviu de fundamento para a edição dos atos normativos, estes perdem a validade?.

A resposta é negativa se a nova lei não dispuser de modo diverso da lei antiga ou do regulamento [9]. Sobre o assunto, já decidiu o STJ que a "revogação expressa de uma lei nova, nem sempre acarreta a derrogação do regulamento. Se os dispositivos do regulamento são compatíveis com os novos preceitos, o regulamento é recebido pelo diploma superveniente" [10]. Em outro acórdão, decidiu o STJ que a "revogação de uma lei por outra que vem disciplinar a mesma matéria não implica na revogação automática do decreto que a regulamentava, o qual é eficaz para reger as relações que são objeto do aludido diploma revogador até o advento do novo decreto" [11].

O que se tem na Resolução 303 é uma situação heterogênea: algumas disposições foram disciplinadas pela nova lei, de forma idêntica ou diversa; outras, porém, não foram tratadas diretamente. Assim, quanto aos itens que restaram positivados de forma contrária na Lei nº 12.651/12, é inevitável concluir pela sua revogação. Foi o que aconteceu com as seguintes APPs: em faixa marginal, em que o STF [12] considerou constitucional a contagem da borda da calha do leito regular, e não mais do nível mais alto [13]; no entorno das nascentes e dos olhos d'água, que o STF incluiu como APPs também as intermitentes [14]; ao redor de lagos e lagoas naturais [15]; faixa marginal em veredas [16]; topo de morros, montes, montanhas e serras [17]; as encostas, bordas de tabuleiro e chapadas [18].

Quanto ao manguezal, é verdade que já consta como APP no artigo 4º, VII, do novo Código Florestal. O mesmo se pode dizer das restingas, conforme previsão do artigo 4º, VI. Entretanto, a Resolução 303 amplia a proteção às restingas e mangues, ao definir, no artigo 3º, IX, "a", como APP também a faixa mínima de 300 metros, medidos a partir da linha de preamar máxima, que não constava no antigo, nem consta no atual Código Florestal. Outrossim, a previsão da resolução como APP em altitude superior a 1,8 mil metros já consta de forma idêntica na lei nova, mas a APP a ser prevista pelos Estados que não tenham tais elevações também não foi tratada [19]. Outras hipóteses que não constam no novo código, mas apenas na Resolução 303, são as APPs em: linhas de cumeada, dunas, locais de refúgio ou reprodução de aves migratórias; locais de refúgio ou reprodução de exemplares da fauna ameaçados de extinção; nas praias, em locais de nidificação e reprodução da fauna silvestre [20]. A prevalecer a interpretação do Conama, esses locais ficariam destituídos do regime protetivo da APP.

A fundamentação utilizada para a revogação da Resolução 303 nesses pontos, conforme parecer da consultoria jurídica do Ministério do Meio Ambiente [21], gravitou em torno alegada ausência de base legal para criação de APP pelo Conama, e pela desnecessidade da resolução porque já disciplinadas as APPs pela novel legislação, o que exigiria a revogação do ato infralegal ex vi do artigo 8º do Decreto 10.139/19. E aqui reside a nossa discordância.

Como referido, a mudança operada na legislação não torna ilegal todo o cabedal de atos normativos editados com base na lei antiga, se não contrariarem a nova lei. A incompetência superveniente do órgão que editou a resolução, a nosso ver, não acarreta automática ilegalidade dessa resolução. Por se tratar apenas de incompatibilidade formal com o novo quadro legal, o ato pode ser recepcionado pela nova lei, tal como ocorreu, v.g., com os "decretos-leis" recepcionados como lei ordinária ou lei complementar pela CF/88. E não seria razoável imaginar outro cenário, pois, do contrário, a alteração legislativa poderia conduzir a um estado desproporcional e lesivo de "vácuo regulamentar", sobretudo em matéria de grande complexidade e dinamicidade como o direito ambiental [22].

Sobre o tema, o STJ já vinha considerando legítimas as Resolução 302 e 303 do Conama. Decidiu-se que o órgão não exorbitou de sua competência e possui autorização legal para editar atos que visem à proteção do meio ambiente e dos recursos naturais, inclusive mediante a fixação de parâmetros, definições e limites de APPs [23]. Essa posição foi mantida na vigência do novo código, em que o STJ entendeu pela manutenção como APP da referida faixa de proteção de restinga de 300 metros desde a linha de preamar máxima, porque, segundo afirmou o ministro Benjamin, "o Conama não exorbitou de sua competência ao fixar a faixa de 300 metros medidos a partir da linha de preamar máxima como restritiva ao direito de propriedade. Trata-se de texto normativo recepcionado pelo regime do Código Florestal de 2012" [24]. Orientação também agasalhada, v.g., pelos TRF-3 [25] e TRF-4, ao considerarem que a Resolução 303 não perdeu sua validade com o advento do novo Código Florestal, porque, como afirmou a desembargadora federal Marga Tessler, "o suporte normativo legal que autoriza o Conama a estabelecer as normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção do meio ambiente é a Lei nº 6.938/1981 (artigo 8º, inciso VII)" [26].

Ora, o poder normativo do Conama, se, por um lado, não pode contrariar a lei, por outro não está restrito à mera repetição de disposições legais. Como escrevemos em outro estudo, "as peculiaridades das relações administrativas disciplinadas por determinado ente estatal poderá exigir maior liberdade na normatização, de acordo com a dicção legal e as características do setor regulado, como ilustra a maior amplitude do poder normativo das agências reguladoras. (…) O mesmo ocorre na seara ecológica, onde a realidade demonstra que a complexidade e rapidez da evolução tecnológica e dos riscos a ela inerentes demandam dos agentes públicos celeridade, flexibilidade e conhecimento técnico para bem desempenhar sua obrigação constitucional de proteger e preservar o meio ambiente. Desse modo, mediante expedição de resoluções, o Conama poderá descer a detalhes técnicos que ao legislador ordinário se revela impraticável" [27]. Portanto, não se inquina de ilegal resolução do Conama que desce a detalhes técnicos e especifica o regime regulatório das APPs, inclusive das restingas e manguezais, como ocorre, v.g., com a proteção dispensada à faixa de 300 metros da linha de preamar máxima.

A celeuma suscitará (e já suscitou) a intervenção judicial, não apenas em processos coletivos em primeiro grau (como a ação popular no Rio de Janeiro), mas também em sede de controle concentrado e jurisdição constitucional, sendo que já foram apresentadas ao STF ações contra essas revogações [28]. Se efetivamente for reconhecido que a Resolução 303 não foi totalmente revogada pelo novo Código Florestal, questiona-se: essa revogação pelo Conama pode ser invalidada pelo Judiciário? Entendemos que sim. Do Conama, como qualquer ente público, exige-se motivação [29] para emissão de atos, inclusive revocatórios de outros. Motivação que deve ser explícita, clara, veraz, congruente e suficiente, inclusive mediante demonstração de que atende a critérios de sustentabilidade, racionalidade intertemporal e justiça intergeracional [30]. Se o motivo alegado (revogação da resolução pela Lei 12.651/12) não subsiste, a motivação é viciada e o ato (ou seja, a revogação da resolução) é nulo. Invalidade que inclusive deve ser decretada com apoio na teoria dos motivos determinantes. Poderia o Conama, se assim o pretender, proceder à revogação da Resolução 303, mas mediante argumentos técnicos e científicos relacionados à desnecessidade de manutenção dessas APPs do ponto de vista da proteção ecológica, com amplo debate, participação social e motivação válida.

Portanto, o programa governamental e político de racionalização da regulação, inclusive ambiental, não é, por si só, juridicamente ilegítimo. A burocratização excessiva e autorreferente tem de ser, efetivamente, revista e alterada. Isso, porém, não pode conduzir a uma desregulação insensata, insustentável, sem esteio em exigências técnicas e científicas, ao arrepio das normas constitucionais e dos deveres estatais de proteção ambiental, ou por razões de mera "aversão ideológica" à regulação. Um movimento de desregulação que destoe dos princípios constitucionais e prejudique o núcleo essencial dos direitos fundamentais pode, justamente, levar a retrocesso ilegítimo e ao "estado de coisas inconstitucional" da política pública de tutela do meio ambiente [31].


[1] Para uma análise abalizada da revogação das resoluções do Conama como medida que se dirige a um "estado de coisas inconstitucional", vide: FENSTERSEIFER, Tiago; SARLET, Ingo Wolfgang. Resoluções do Conama: rumo ao estado de coisas inconstitucional ambiental. CONJUR, 02 out. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-out-02/direitos-fundamentais-resolucoes-Conama-proibicao-retrocesso-ecologico. Acesso em: 05 out. 2020.

[3] O Decreto 1003/19 é alvo da ADIn 623, ainda pendente de decisão do STF.

[4] PEC 65/2012, PL 3729/04 e PLS 654/15.

[5] Os arts. 4ª, §§ 1º e 4º; 5º e 62 da Lei 12651/12 foram declarados constitucionais pelo STF na ADC 42 e ADINs 4901, 4902, 4903 e 4937.

[6] O dever de a administração anular seus próprios atos ilegais, que já era consagrado com as súmulas 346 e 473, restou positivado no artigo 53 da Lei 9784/99 e, mais recentemente, no Decreto 10.139/19.

[7] Lei 4771/65, artigo 3º: "Consideram-se, ainda, de preservação permanentes, quando assim declaradas por ato do poder público, as florestas e demais formas de vegetação natural destinadas: (…)".

[8] Lei 12.651/12, artigo 6º: "Consideram-se, ainda, de preservação permanente, quando declaradas de interesse social por ato do chefe do Poder Executivo, as áreas cobertas com florestas ou outras formas de vegetação destinadas a uma ou mais das seguintes finalidades: (…)".

[9] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36 ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 184;

[10] STJ, RMS 14.219/PR, j. 16/04/2002.

[11] STJ, HC 108.190/SP, j. 25/08/2009.

[12] Conforme decisão na ADC 42 e ADINs 4901, 4902, 4903 e 4937.

[13] Lei 12.651/12, artigo 4º, I.

[14] Lei 12.651/12, artigo 4º, IV.

[15] Lei 12.651/12, artigo 4º, II.

[16] Lei 12.651/12, artigo 4º, XI.

[17] Lei 12.651/12, artigo 4º, IX.

[18] Lei 12.651/12, artigo 4º, VIII.

[19] Resolução 303/02 Conama, artigo 3º, XII.

[20] Resolução 303/02 Conama, artigo 3º, VI, XI, XIII, XIV e XV.

[22] Nesse sentido, vide: FIALDINI, Matheus Jacob; HELENA, Alexandre Petry. As resoluções Conama e a reforma do Código Florestal. Revista de Direito Ambiental, V. 66, P. 299-312, abr.-junº/2012.

[23] STJ, REsp 1462208/SC, j. 11/11/2014; REsp 994.881/SC, j. 16/12/2008.

[24] STJ, REsp 1544928/SC, j. 15/09/2016.

[25] TRF3, ApelRemNec 0000104-36.2016.4.03.6135, j. 21/8/2020.

[26] TRF4, AC 5014084-67.2018.4.04.7201, 23/09/2020.

[27] MOREIRA, Rafael Martins Costa; WEDY, Gabriel. Manual de Direito Ambiental: de acordo com a jurisprudência dos tribunais superioResolução Belo Horizonte: Forum, 2019. p. 112-113.

[28] Foram ajuizadas ao menos três APDFs contra a Resolução 500/20 do Conama, que gerou a revogação da Resolução 284, 302 e 303: ADPF 747, 748 e 749.

[29] Conforme artigo 50 da Lei 9784/99.

[30] Sobre os requisitos da motivação das decisões administrativas, inclusive quanto à sustentabilidade, vide trabalho de nossa autoria: MOREIRA, Rafael Martins Costa. Direito Administrativo e Sustentabilidade: o novo controle judicial da administração pública. Belo Horizonte: Forum, 2017.

[31] Como anteviu o Minº Barroso quando das audiências públicas ocorridas no âmbito da ADPF 708 (http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=452174&caixaBusca=N).

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