Paradoxo da Corte

Em defesa do devido processo legal digital

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

6 de outubro de 2020, 8h00

Atento ao exercício profissional da advocacia, já abordei, em mais de uma coluna, as inúmeras vantagens e também os problemas que emergem das novas ferramentas eletrônicas, cuja utilização acabou sendo ampliada, de forma abrupta, em decorrência da imposição do distanciamento social, em particular, no que toca ao dia a dia dos serviços judiciários.

Anoto que o vigente Código de Processo Civil, como se infere do artigo 213, já havia se preparado para um futuro tecnológico mais distante, ao autorizar, com todas as letras, a prática de ato processual por meio eletrônico. A pandemia, contudo, acelerou, em muito, o ritmo para a introdução das inovações digitais correlatas, com o deliberado escopo de imprimir continuidade à prestação da atividade jurisdicional, aliás, considerada, como é cediço, uma das mais essenciais da Administração Pública.

Entre as minhas anteriores manifestações, procurei contribuir para o aperfeiçoamento desse novo normal no artigo intitulado "Possível ilegalidade do julgamento telepresencial por ausência de publicidade" (23/6/2020), no qual, longe de conspirar contra essa exitosa modalidade de julgamento como imaginou um leitor apressado, que, sem ter o cuidado de ler o texto, deixou-se impressionar pelo seu título , formulei algumas sugestões que, ao meu ver, serviriam para aprimorar a novel transformação da administração da Justiça, visando, sobretudo, a afastar eventual arguição de nulidade.

No âmbito de um cenário mais digital, é certo que os profissionais do Direito mesmo os mais antigos — vão se acostumando com as plataformas eletrônicas e com as novas regras que propiciam a participação do advogado na realização de inúmeros atos processuais.

Observo, a propósito, que a operosa Associação dos Advogados de São Paulo, atualmente presidida pelo ilustre colega Renato Cury, vem prestando inestimável auxílio aos seus associados para inseri-los, tanto quanto possível, na dinâmica cotidiana de um mundo virtual, que, para muitos, descortina-se como absoluta novidade.

Passados alguns meses, quanto ao ambiente em que tenho atuado com mais frequência, vale dizer, nos domínios da Justiça Estadual de São Paulo, devo ressaltar, em primeiro lugar, o inequívoco empenho do nosso Tribunal de Justiça, sob a direção segura de seu eminente presidente, desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco, cujos entusiasmo e esforço refletem-se certamente na consciência da grande maioria dos magistrados e dos serventuários.

No que se refere ao primeiro grau de jurisdição, a despeito da distância física, as audiências, por exemplo, têm sido realizadas de forma profícua, revestidas das garantias asseguradas às partes e aos advogados. Cumpre enfatizar que alguns atos exigem redobrada atenção, como aquele previsto no artigo 458 do Código de Processo Civil, atinente ao compromisso da testemunha, "de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado". A advertência judicial, ex vi do parágrafo único desse dispositivo, irrompe como imperativo da validade da prova, que não pode ser dispensado.

Saliente-se, outrossim, que, no desenrolar da audiência telepresencial, a regra do parágrafo único do artigo 361 do Código Processo Civil deve ser observada com maior dose de razão, no sentido de que, para evitar tumulto, durante o depoimento da parte ou da testemunha, os advogados e o representante do Ministério Público não poderão intervir ou apartear sem autorização judicial.

A prolação da sentença, ainda, ao ensejo da audiência por videoconferência, deve ter rigorosamente presente o disposto no artigo 194 do Código de Processo Civil, em particular, no que respeita ao princípio da publicidade.

Se, por um lado, o resultado da realização dos atos processuais tem sido positivo, por outro, os advogados, durante todo o período de distanciamento compulsório, continuam encontrando considerável obstáculo para o agendamento de despacho com os juízes de primeiro grau. A tentativa de interlocução, em regra, evidencia acentuada margem de dificuldade de acesso, até porque as solicitações formuladas pelos advogados, na generalidade das vezes, ficam sem qualquer resposta.

Não obstante, essa situação não se constata em segundo grau, até porque disponibilizada, em momento oportuno, a listagem institucional dos respectivos endereços eletrônicos de todos os desembargadores do Tribunal de Justiça.

Com efeito, sem opor qualquer recusa ou entrave, a maioria dos desembargadores, que já recebiam os advogados antes da pandemia, continuam agendando dia e hora para despacho por videoconferência. Essa importante cooperação processual e, aliás, reconhecida e merece todo elogio da classe dos advogados!

Já no que toca aos julgamentos em segundo grau, a experiência tem revelado que a plataforma oferecida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo apresenta-se deveras satisfatória, sobretudo se os advogados prestarem atenção nas diretrizes estabelecidas pelos próprios cartórios, procurando otimizar a imagem e o som das sessões, que se realizam, em regra, no horário determinado. Raramente se iniciam com atraso significativo.

Ademais, diferentemente do que estava ocorrendo nas primeiras sessões de algumas câmaras, hoje em dia a garantia da ampla publicidade, pelo sistema digital implantado, é assegurada a quem quer que tenha interesse em receber o link para ingresso na respectiva sessão.

Tenho também notado certa condescendência pelos julgadores, quando surge alguma dificuldade de comunicação entre a sessão e o advogado que deve efetivar a sustentação oral. Geralmente, nessas hipóteses, as câmaras julgadoras ou deixam para o final da sessão ou adiam o julgamento para não prejudicar a parte, representada pelo advogado que, por alguma razão, não conseguiu manter a conexão ativa quando apregoado o julgamento de seu recurso.

Observo, outrossim, que, mesmo contrariando o regimento interno, a maioria das turmas julgadoras inicia a sessão julgando primeiro as preferências simples para, em seguida, passar às sustentações orais, providência essa extremamente adequada e benfazeja, cuja finalidade é a de liberar muitos advogados logo no início da sessão.

Todavia, ainda quanto a esse tema, permito-me fazer uma crítica construtiva. Apesar do reconhecimento do esforço conjunto objetivando, de um lado, contemporizar os efeitos deletérios da pandemia, e, de outro, reinventar o modelo de julgamentos em segundo grau, não tem o menor sentido fazer o advogado ficar aguardando como se fosse verdadeiro castigo horas e horas na frente de uma tela a sua vez para intervir, efetivando sustentação oral.

Na verdade, creio não ser difícil estabelecer de antemão, a cada sessão, um número máximo razoável de sustentações orais, numeradas pela ordem de inscrição, com a necessária comunicação ao advogado, quando lhe enviado o respetivo link, do número de sua sustentação. Mas isso só não basta. Seria de todo producente que, já no início da sessão, o presidente noticiasse o número de sustentações e, ao apregoar cada uma, declinasse o seu número. Com essa preciosa informação, sem qualquer dificuldade adicional acrescida ao desembargador presidente, o causídico se certificaria, com segurança, do momento aproximado em que deverá intervir em prol de seu cliente.

São, com certeza, esse e outros eventuais ajustes que contribuirão para o aperfeiçoamento de uma nova era de transformação da prestação jurisdicional, garantindo a observância do devido processo legal digital!

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