Academia de Polícia

Captação ambiental e "pacote anticrime": a nova disciplina legal

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

6 de outubro de 2020, 8h00

O discurso comum, incorporado pelo campo jurídico tradicional, tem sido o de que uma "moderna criminalidade", especialmente aquela praticada pelas chamadas "organizações criminosas", demandaria novos meios de investigação e instrução do caso penal, ou seja, novas ferramentas para a obtenção da prova penal.[1]

Spacca
A própria "Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional" ("Convenção de Palermo"), de 15 de novembro de 2000, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 5.015/2004, trata, em seu artigo 20, item nº 1, das chamadas "técnicas especiais de investigação', as quais teriam por finalidade expressa "combater eficazmente a criminalidade organizada". O discurso beligerante, por óbvio, não constitui mero acaso da linguagem. Pelo contrário, evidencia justamente a sua lógica informadora.    

Nesse viés, tem se falado cada vez mais em técnicas especiais (ou métodos ocultos) de investigação e meios extraordinários de busca por fontes de provas, que se justificariam pela insuficiência dos instrumentos tradicionais de persecução (ex.: depoimentos testemunhais, acareações, reconhecimentos de pessoas etc.). Por evidente, esses novos mecanismos implicam maior grau de afetação (ou violação) no campo dos direitos fundamentais. Tudo oficialmente explicado por categorias discursivas em torno da necessidade, proporcionalidade e eficiência da medida; enfim, sempre um risco ao sistema de garantias processuais penais e ao próprio Estado de Direito. 

Conforme a lição de Manuel Valente, são métodos "operacionalizados pelas polícias", que constituem "uma autêntica intrusão nos tempos e espaços operativos humanos de ação, de interação e de comunicação entre e das pessoas visadas em concreto (quantas vezes pessoas terceiras) com o meio investigativo sem que tenham qualquer conhecimento e sem que se apercebam dessa intrusão e, em simultâneo, produzam prova incriminatória contra si próprias com uma ausência plena de autodeterminação — liberdade de e em pensar, liberdade de e em decidir, e liberdade de e em agir (interagir e comunicar) — e com uma consequente ausência de autorresponsabilidade consciente".[2]

Registre-se que a sua aplicação, embora possível em qualquer etapa da persecução penal (investigação preliminar e processo penal), é mais comum na primeira fase, até mesmo pelas características peculiares da maioria desses institutos, fortemente orientados pelo caráter de sigilo (ou segredo) da diligência, o que impede, por óbvio, o contraditório prévio.

É justamente nesse contexto que surge a interceptação de comunicação entre pessoas presentes, inserida no ordenamento jurídico brasileiro, pela Lei n. 10.217/2001, sob o nome de "captação e interceptação ambiental". A sua regulamentação, no entanto, apenas se deu no ano de 2019 com o chamado "pacote anticrime".

Vale lembrar que, antes da Lei nº 13.964/2019, com entrada em vigor no ano de 2020, a "interceptação entre presentes" figurava como meio de investigação de prova nominado, porém atípico. Nominado pois mencionado formalmente na legislação processual penal. Atípico, no entanto, uma vez que seu procedimento não havia sido regulado (ou previsto) em lei.[3] Tinha-se o nome, porém ausente a disciplina (probatória ou informativa), o que gerava sérias dúvidas a respeito da sua constitucionalidade.

Portanto, a licitude dessa medida (atípica) ficava vinculada a dois critérios: i) não haver violação a nenhum direito fundamental individual durante a sua produção; ii) haver meio de investigação de prova típico cujo procedimento informativo lhe pudesse ser aplicado por analogia.[4] O que, em nossa visão, não se mostrava possível à época, tornando ilícita essa modalidade de interceptação naquele contexto normativo.[5]  

Outra, no entanto, é a situação atual, uma vez que a Lei nº 13.964/2019, dentre inúmeras modificações promovidas no âmbito legislativo criminal, inseriu dois novos dispositivos à Lei de Interceptação Telefônica, os quais tratavam desse meio "especial" (ou "extraordinário") de investigação (ou pesquisa) de prova

A Lei nº 9.296/1996 passou, então, a prever o regramento da "interceptação da comunicação entre pessoas presentes", que pode ser definida como uma "atividade de captação e registro de comunicação entre pessoas presentes de caráter reservado, por um terceiro, com o emprego de meios técnicos, utilizados em operação oculta e simultânea à comunicação, sem o conhecimento dos interlocutores ou com o conhecimento de um ou de alguns deles".[6] Vejamos, portanto, algumas de suas características fundamentais à luz da nova disciplina normativa, prevista entre os artigos 8º-A e 10-A da Lei n. 9.296/1996.

Em primeiro lugar, reafirmada a necessidade de autorização judicial para implementação da medida, o que apenas terá lugar a partir de representação formulada pela autoridade policial ou de requerimento apresentado pelo órgão ministerial. Incabível, portanto, a sua decretação de ofício pelo juiz.

Ademais, esse pedido policial ou ministerial deverá obrigatoriamente conter a descrição circunstanciada do local e da forma de instalação do dispositivo de captação ambiental, a fim de permitir o regular controle pela autoridade judicial.

No que diz respeito ao lugar em que mantido o diálogo entre pessoas presentes, existem algumas controvérsias sobre a constitucionalidade (ou não) do procedimento de interceptação, bem como a respeito da necessidade (ou não) de autorização judicial. Em que pese divergência,[7] parece-nos que toda e qualquer interceptação da comunicação entre pessoas presentes, independentemente do lugar, inclusive aberto ou público, exige necessariamente autorização judicial.

O que não se confunde, por óbvio, com as situações de "gravação clandestina"[8] ou sistemas gerais de monitoramento e gravação de imagens, instalados por entes públicos ou privados em determinados espaços, enquanto ferramentas de segurança coletiva ou particular, destituídas de qualquer finalidade prévia e direta quanto à busca por fontes de prova penal (ex.: câmeras instaladas em praças públicas ou mercados particulares para captação e gravação de imagens destinadas à tutela preventiva do patrimônio público ou particular).      

Os requisitos fundamentais à decretação judicial dessa modalidade de interceptação são dois: a) imprescindibilidade ("a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis e igualmente eficazes" — art. 8º-A, I, da Lei n. 9.296/1996); b) fumus comissi delicti ("elementos probatórios razoáveis de autoria e participação em infrações criminais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos ou em infrações penais conexas" — art. 8º-A, II, da Lei nº 9.296/1996).

Quanto ao primeiro requisito, "importante respeitar os limites semânticos do texto legal", de maneira que não se interprete o significante eficácia "como sinônimo de maior comodidade ou facilidade para os órgãos encarregados da persecução penal".[9]

Quanto ao segundo limite normativo, relacionado ao âmbito de incidência da medida conforme o objeto da investigação, embora a admissibilidade da interceptação entre presentes seja mais restritiva que a prevista para a interceptação telefônica, ainda assim mostra-se excessiva ou desproporcional em face da legislação penal brasileira.

Cite-se, por exemplo, a possibilidade em abstrato quanto ao emprego dessa medida extrema de interceptação no caso de uma investigação criminal de abigeato, ou seja, furto de gado (artigo 155, § 6º, do CP). Claro que, em uma situação desse tipo, para a adoção da interceptação entre presentes, os demais requisitos legais precisariam estar satisfeitos (v.g. a imprescindibilidade).

O que, contudo, não esvazia a possível crítica quanto ao exagero no plano da admissibilidade legal. Aliás, há quem sustente que, considerando-se o nível próprio de afetação a direitos fundamentais dessa técnica especial de investigação, o dispositivo em questão deveria ser revisto, no sentido de limitar a medida aos crimes praticados por organizações criminosas.[10]   

Outro fator importante diz respeito à limitação temporal. A interceptação em questão não poderá exceder o prazo de 15 dias, sendo, no entanto, permitida a renovação da medida por nova decisão judicial e por igual período, desde que "comprovada a indispensabilidade do meio de prova e quando presente atividade criminal permanente, habitual ou continuada" (artigo 8º-A, § 3º, da Lei n. 9.296/1996).

Frise-se, portanto, que a renovação da interceptação não é automática muito embora sem limite máximo definido em lei, o que bastante criticado por parte da doutrina.[11] Logo, em um caso concreto, em face da ausência de impedimento legal, podem ocorrer diversas renovações por períodos de quinze dias cada. O que se exige, no entanto, para a repetição da interceptação, a ser decretada judicialmente, são dois requisitos: a) persistência da imprescindibilidade informativa; b) permanência, habitualidade ou continuidade da prática delitiva. A ausência de quaisquer deles afasta por completo a legalidade quanto a um novo período de interceptação.     

Por fim, tal qual ocorre na interceptação telefônica, tem-se que, mediante aplicação de regra supletiva (artigo 8º-A, § 5º, da Lei n. 9.296/1996), a "gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada", sendo o respectivo incidente de inutilização assistido pelo Ministério Público e facultada a presença do imputado ou de seu representante legal (artigo 9º-A da Lei n. 9.296/1996).

[1] MACHADO, Leonardo Marcondes. Manual de Inquérito Policial. 01 ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2020, p. 191.

[2] VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Meios Ocultos de Investigação. Contributo Mínimo para uma Reflexão Maior, 2015. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, ano 23, n. 74, p. 2-3, set./2015, p. 2.

[3] Embora tratando dos meios de prova, e não propriamente dos meios de busca por fontes de prova, o professor Guilherme Madeira analisa esse tema a partir de variadas concepções doutrinárias (DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 05 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 601-613). Ao final, destaca que “há meios de prova nominados, mas cujo procedimento probatório não se encontra delineado de maneira clara, de forma que são considerados atípicos” (DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal…, p. 613).

[4] DEZEM, Guilherme Madeira. Da Prova Penal: tipo processual, provas típica e atípicas. Campinas: Millennium, 2008, p. 275 e ss.

[5] MACHADO, Leonardo Marcondes; PAULA, Leonardo Costa de. O Devido Processo Legal e a Ilegalidade da Interceptação entre Pessoas Presentes (“Captação Ambiental”) entre 2001 e 2020. In: MESSA, Ana Flávia; CARNEIRO, José Reinaldo Guimarães (Org.). Crime Organizado. 02 ed. São Paulo: Almedina, 2020, p. 265-283. Na mesma linha: ABREU, Jacqueline de Souza; SMANIO, Gianluca Martins. Compatibilizando o uso de Tecnologia em Investigações com Direitos Fundamentais: o caso das interceptações ambientais. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 5, n. 3, p. 1449-1482, set./dez. 2019, p. 1465; ARANTES FILHO, Marcio Geraldo Britto. A Interceptação de Comunicação entre Pessoas Presentes. 01 ed. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 323-326; MALAN, Diogo. Da Captação Ambiental de Sinais Eletromagnéticos, Óticos, ou Acústicos e os Limites Relativos à Privacidade. AMBOS, Kai; ROMERO, Eneas (coord.). Crime Organizado: Análise da Lei 12. 850/2013. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 51-81. Em sentido contrário, pela constitucionalidade da medida, o próprio Supremo Tribunal Federal (STF – Tribunal Pleno – Inq 2424/RJ – Rel. Min. Cezar Peluso – j. em 26.11.2008 – DJe 055 de 25.03.2010).

[6] ARANTES FILHO, Marcio Geraldo Britto. A Interceptação de Comunicação entre Pessoas Presentes…, p. 157.

[7] DEZEM, Guilherme Madeira; SOUZA, Luciano Anderson de. Comentários ao Pacote Anticrime: Lei 13.964/2019. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 194.

[8] A jurisprudência dos tribunais superiores tem admitido a gravação de conversa, presencial ou telefônica, por um dos interlocutores, sem o conhecimento do outro, desde que não haja causa legal específica de sigilo nem reserva de conversação. Nessa linha: STF – Segunda Turma – HC 91.613/MG – Rel. Min. Gilmar Mendes – j. em 15.05.2012 – DJe 182 de 14.09.2012; STF – Tribunal Pleno – RE 583.937 QO-RG/RJ – Rel. Min. Cezar Peluso – j. em 19.11.2009 – DJe 237 de 17.12.2009; STF – Segunda Turma – RE n. 402.717/PR – Rel. Min. Cezar Peluso – j. em 02.05.2008 – Dje 030 de 12.02.2009; STJ – Primeira Turma – AgRg no AREsp n. 135.384/RS – Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho – j. em 03.04.2014 – DJe de 15.04.2014.

[9] CASARA, Rubens; TAVARES, Juarez. Prova e Verdade. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 69.

[10] ABREU, Jacqueline de Souza; SMANIO, Gianluca Martins. Compatibilizando o uso de Tecnologia em Investigações com Direitos Fundamentais: o caso das interceptações ambientais…, p. 1470.

[11] CASARA, Rubens; TAVARES, Juarez. Prova e Verdade…, p. 70.

Autores

  • é delegado de polícia em Santa Catarina, doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC. Professor em cursos de graduação e pós-graduação.

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