Opinião

Lei de Lavagem de Capitais: revisão, desafios e efetividade

Autor

  • Reynaldo Soares da Fonseca

    é ministro do Superior Tribunal de Justiça e professor da Universidade Federal do Maranhão em colaboração técnica na Universidade de Brasília. Pós-doutor em Direitos Humanos doutor e mestre em Direito e presidente da Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de reforma da Lei 9.613/1998.

5 de outubro de 2020, 21h22

No clássico romance de Júlio Verne, "A volta ao mundo em 80 dias", o protagonista Phileas Fogg se depara espantado com o cumprimento de sua missão: "A terra diminuiu! Pois a percorremos agora dez vezes mais depressa do que há cem anos". [2]

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A despeito do caráter fictício do referido livro, atualmente, a vida real não parece tão distinta. Vivenciamos, hoje, um modelo de mundo globalizado em que, cada vez mais, é possível perceber a crescente movimentação de pessoas, bens, serviços, informações e capitais ao longo de fronteiras nacionais, diminuindo distâncias e integrando nações.

O termo “Globalização” não representa um conceito fechado ou pré-definido, pois pode ser visto por diferentes perspectivas a depender do tempo em que é avaliado, da cultura em que o autor está inserido, de seu matiz ideológico e assim em diante. No entanto, em linhas gerais, a globalização pode ser definida como “as causas, os cursos e as consequências da integração transnacional e transcultural de atividades humanas e não humanas”.[3]

Por um lado, esse processo multidimensional, resultante de interações entre indivíduos e coletividades em nível micro e macro[4], tem propagado efeitos positivos como: (i) a intensificação das trocas comerciais e econômicas entre as nações; (ii) a expansão das possibilidades de comunicação em tempo real; e (iii) a diminuição das distâncias entre nações, a partir da revolução dos meios de transporte.

Por outro, a globalização também tem demonstrado suas facetas negativas, tais como: (i) a proliferação rápida de epidemias, (ii) o aumento de desigualdades socioeconômicas entre países, (iii) o aumento dos fluxos migratórios e o eventual xenofobismo gerado etc.

Entre esses efeitos deletérios, todavia, merece destaque a utilização dos meios globalizados de transporte, de comunicação e de transferência de capital por via de sofisticadas operações ilícitas, coordenadas por organizações criminosas transnaci onais.[5] Alguns exemplos são: (i) o terrorismo internacional, (ii) a elisão de tributos, (iii) a lavagem de dinheiro, (iv) o tráfico internacional de drogas, (v) o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres, e até mesmo (vi) os cibercrimes.

Diante desse contexto, com o claro intuito de garantir a efetividade da justiça penal e, sobretudo, a tutela do sistema econômico das nações soberanas, é preciso estabelecer um marco legislativo coordenado e cooperativo, em linha com as melhores práticas internacionais, a fim de alcançar resultados efetivos na prevenção e na repressão desses complexos crimes de natureza transnacional.

Nas últimas décadas, a lavagem de dinheiro (processo de ocultar a origem, o dono ou o destino de ativos financeiros ou bens patrimoniais obtidos ilegalmente ao escondê-los dentro de atividades econômicas legítimas para fazê-los parecer legal) e os delitos correlatos — entre os quais, narcotráfico, corrupção e terrorismo — tornaram-se crimes cujo impacto não pode mais ser medido em escala local:

“Se antes essa prática estava restrita a determinadas regiões, seus efeitos perniciosos hoje se espalham para além das fronteiras nacionais, desestabilizando sistemas financeiros e comprometendo atividades econômicas. Por causa da natureza clandestina da lavagem de dinheiro, fica difícil estimar o volume total de fundos lavados que circulam internacionalmente. As técnicas de análise disponíveis envolvem a mensuração do volume de comércio em atividades ilegais tais como tráfico de drogas, de armas ou fraude”.[6]

Segundo a estimativa do Banco Central anunciada, em 2016, pelo então diretor de relacionamento institucional e cidadania do Banco Central, Isaac Sidney Ferreira, a lavagem de dinheiro movimentou algo em torno de R$ 6 bilhões por ano no Brasil; no mundo a cifra subia para algo como US$ 1 trilhão por ano.

As Nações Unidas reconhecem que, pela natureza, o dado é impreciso. Todavia, estima que o referido crime movimenta valores expressivos, nos percentuais de 2 a 5% do PIB mundial. [7]  Em valores aproximados de hoje:

Mundo: 2,8 e 7,1 trilhões de dólares.
Brasil entre 37,4 e 93,5 bilhões de dólares (209 a 503 bilhões de reais).

Atento a esse cenário e dando continuidade aos compromissos assumidos desde a assinatura da Convenção de Viena, o Brasil aprovou a Lei nº 9.613/98. Esse marco legislativo representou um enorme avanço no tratamento da questão, pois tipificou como delito a conduta de lavagem de dinheiro, optando ainda por um rol taxativo de crimes antecedentes. Além disso, instituiu medidas as quais conferiram maior responsabilidade a intermediários econômicos e financeiros, tendo criado o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), no âmbito do Ministério da Fazenda, como peça chave na estrutura institucional brasileira.

Em 2012, o diploma legislativo sofreu pequenas e relevantes alterações, por meio da Lei 12.683/12, inclusive com a supressão do referido rol taxativo. Desde então, por exemplo, passamos a admitir que qualquer delito antecedente que gere bens, direitos ou valores possa ser caracterizado como delito de branqueamento de capitais.

Não obstante, após 22 anos de avanços e sem possibilidade de qualquer retrocesso, como bem ponderou o Professor André Luís Callegari, em recente artigo, a lei necessita ainda de várias correções:

a) para que se pontuem melhor as questões do enquadramento legal das condutas praticadas na ocultação de dissimulação de bens de origem criminosa. Esse aspecto técnico tem se refletido na dificuldade muitas vezes de saber se estamos propriamente dentro da esfera de um delito de branqueamento de dinheiro ou outro assemelhado já previsto no Código Penal;

b) em relação à parte processual, muito se avançou também com a possibilidade de retirada dos valores ou dos bens dos sujeitos condenados pelo delito de lavagem de dinheiro. Mas há outros mecanismos modernos que permitem abreviar o procedimento e assegurar ao Estado a recuperação de ativos ilícitos;

c) os órgãos de controle do delito de lavagem e os sujeitos obrigados a prestar informações também devem ser alvo de revisão, pois dentro desse efetivo equilíbrio entre o dever de informar e o dever de fiscalizar se pode obter uma eficácia ainda maior no combate à lavagem de capitais.[8]

Nessa linha de raciocínio, atenta à dinâmica e à velocidade desse tipo de criminalidade, a Câmara de Deputados instalou, no último dia 24 de setembro, uma Comissão de Juristas para elaborar o anteprojeto de reforma na Lei de Lavagem de Capitais em vigor. Cumpre ressaltar que a Comissão é formada por uma composição plural: magistrados, membros do Ministério Público, advogados e acadêmicos.

O seu objetivo é, portanto, claro: tornar mais efetivos, técnicos e atualizados os comandos normativos relacionados ao crime de lavagem de dinheiro, contando sempre com a participação de entidades engajadas no tema, ouvidas em audiências públicas, e com o máximo respeito às garantias constitucionais aplicáveis.

Na relatoria geral, com sua experiência de relator em três comissões de juristas (revisão das Lei de Improbidade Administrativa, Drogas e Lavagem de Capitais) — Ney Bello (Desembargador Federal do TRF/1ª Região).

Com efeito, a metodologia a ser utilizada será a seguinte:

a) três reuniões internas temáticas para que todos os membros possam expor suas ideias acerca do que deve permanecer e do que deve ser modificado, sendo possível a apresentação de memoriais ou peças escritas a fim de facilitar o trabalho;

b) Antecipação das audiências públicas para que as Instituições e Associações envolvidas apresentem seus pontos e ponderações;

c) Audiência com experts estrangeiros para a demonstração de outros modelos normativos.

d) Quatro subrelatorias, com possibilidade de apresentação de substitutivos pelos membros da comissão.

e) Após os referidos procedimentos, votação de ponto por ponto no colegiado composto por 44 membros.

Por sua vez, a metodologia seguirá o seguinte cronograma:

1 – Todos os integrantes da Comissão podem fazer exposições — de 5 a 10 minutos – acerca dos temas que entendam pertinentes e/ou que devam ser objeto de modificações estruturais, alterações parciais ou até mesmo manutenções. As discussões e exposições no interior da Comissão serão realizadas nas seguintes datas:

16.10 –  Tipicidade

23.10-  Processo

30.10-  Pessoas Obrigadas e Coaf.

2 – Os interessados poderão participar das audiências públicas assim designadas:

06/11 — 9h — Instituições: Coaf, Bacen, CVM, Gafi, Encla, MJ, Receita Federal — rol exemplificativo.

13/11 — 9h — Entidades: OAB, Ajufe, Conamp, AMB, ANPR — rol exemplificativo.

Serão colhidas, igualmente, as ponderações do Conselho Nacional de Justiça, do Conselho da Justiça Federal, do Conselho Nacional do Ministério Público e do Colégio de Presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados.

3 – A Comissão convidará experts estrangeiros sobre o tema para as audiências específicas, com o intuito de colher as experiências de outros países no combate à lavagem de dinheiro.

16.11 – Audiência com Convidados Internacionais.

4 – Os subrelatores e os demais proponentes de modificações (as quais poderão ser feitas por todos os integrantes da Comissão) apresentarão seus trabalhos na data do tema a ser discutido, segundo o calendário seguinte:

18/11 – Disponibilização do texto da subrelatoria 1
25/11 – Disponibilização do texto da subrelatoria 2
02/12 – Disponibilização dos textos das subrelatorias 3 e 4
27/11 – 1ª Relatoria – Rodrigo De Grandis (Ministério Público) e Pierpaolo Bottini (Professor – USP e Advogado).

⁃ Artigo 1° e artigo 7°
04/12 – 2ª Relatoria — Andrey Borges (Ministério Público) e Gustavo Badaró (Professor da USP e Advogado).

⁃ Artigo 2° até o artigo 6° e artigo 8°
11/12 –  3ª Relatoria — Joel Paciornick  (Ministro do STJ) e Salise Sanchotene (desembargadora do TRF-4ª Região)

⁃ Artigo 9º ao artigo 13
11.12 –  4ª Relatoria — Antônio Saldanha Palheiro (Ministro do STJ) e Adriana Cruz (Juíza Federal).

⁃ Artigo 14 ao artigo 18
5/12 – A votação para a construção do texto final da proposta, dividida nas seguintes datas:
17 e 18/12 – Votações sobre o texto final da proposta.

Entregue a proposta final, em seguida, o Parlamento dará sua palavra.

[3] AL-RHODAN, Nayef R. F. Definitions of Globalization: a Comprehensive Overview and a Proposed Definition. Program on the Geopolitical Implifcations of Globalization and Transantional Security. Genebra, 2006.

[4] ROSENAU, James N. Distant Proximities: Dynamics Beyond Globalization. Princeton: Princeton University Press, 2003.

[5] DE LA CUESTA, José Luis. Criminal Justice System in a Global World. Annales XLV, n. 62, p. 3-28, 2013, p. 3-4.

[6] https://www.gov.br/fazenda/pt-br/centrais-de-conteudos/publicacoes/cartilhas/arquivos/cartilha-lavagem-de-dinheiro-um-problema-mundial.pdf

[7] https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/Studies/Illicit_financial_flows_2011_web.pdf

[8] Callegari, André Luís. Por que é importante mudar a Lei de Lavagem de dinheiro. https://www.conjur.com.br/2020-out-02/andre-callegari-mudar-lei-lavagem-dinheiro. 

Autores

  • é ministro do Superior Tribunal de Justiça e professor da Universidade Federal do Maranhão, em colaboração técnica na Universidade de Brasília. Pós-doutor em Direitos Humanos, doutor e mestre em Direito e presidente da Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de reforma da Lei 9.613/1998.

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