Opinião

Reforma administrativa: uma análise do regime dos empregados públicos

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5 de outubro de 2020, 6h05

A PEC 32/2020 pretende facilitar a demissão de empregados públicos, mas se baseia em falsos problemas, que inviabilizam suas intenções.

A PEC 32/2020, conhecida como "reforma administrativa", foi apresentada em 3 de setembro pelo presidente da República ao presidente da Câmara dos Deputados e pretende realizar diversas alterações, entre as quais acrescentar o §7 ao artigo 173 da Constituição.

Caso aprovada, será nula a previsão, em acordos ou convenções coletivas de trabalho ou em normas internas das estatais, a "estabilidade no emprego" ou "proteção contra despedida" que "não seja aplicável aos trabalhadores da iniciativa privada".

O contexto político do país não deixa dúvida sobre o seu objetivo: facilitar a demissão dos empregados públicos.

No entanto, a redação adota conceitos e premissas que trazem alguns questionamentos: a) qual o conceito de estabilidade adotado pela emenda?; b) essa estabilidade é a mesma prevista no artigo 41 §1, dirigida aos servidores estatutários?; c) ou equivaleria à justa causa prevista na lei trabalhista?; d) sendo certo que a emenda é norma que inova no ordenamento, então, até o momento, há estabilidade aos empregados públicos?; e e) Há vedação à estabilidade para os trabalhadores da iniciativa privada?

A emenda constitucional, embora traga nova disciplina ao regime dos empregados públicos, não é norma originária e é inserida em um contexto normativo já existente, de modo que a inovação legislativa é incorporada sob os ditames da unidade da interpretação constitucional e não como um sistema normativo apartado.

Ainda que não exista um entendimento uniforme sobre a maior ou menor facilidade de extinção do vínculo trabalhista da empresa estatal com seu empregado, há considerável consenso que o regime celetista seria incompatível com a disciplina da estabilidade dos servidores de vínculo estatutário.

Adotadas as premissas de que a "estabilidade" mencionada no texto da PEC não é aquela aplicável aos servidores estatutários, nem se confunde com as hipóteses de justa causa, o que afinal estaria sendo tratado no §7, que se pretende acrescentar ao texto constitucional?

O exame das normas constitucionais e dos precedentes do STF demonstra que o texto da PEC não permite concluir pela coincidência entre a intenção de seus autores e os efeitos que dele se pode extrair.

Parece claro que a única vedação concreta do §7 do artigo 173 é a previsão desse tema em acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Nem mesmo a vedação de "estabilidade" no emprego por norma interna poderia ser vedada, afinal, o que a redação da PEC proibiria seria a "estabilidade" que não fosse aplicável aos trabalhadores da iniciativa privada. E tal aplicabilidade deve ser entendida em abstrato e não em concreto. Ou seja, não há norma que proíba à "iniciativa privada" prever estabilidade aos seus empregados, ainda que na prática isso não se verifique.

Assim, a primeira incongruência do dispositivo em questão é justamente esta: nada impede que as empresas privadas prevejam em negociação coletiva ou norma interna a proteção contra despedida imotivada, mas as estatais não poderiam, o que geraria um conflito com a própria norma constitucional que equipara as estatais à iniciativa privada, quanto às obrigações trabalhistas, o que geraria uma restrição em desfavor das estatais.

A segunda incongruência com a ordem constitucional em vigor diz respeito ao arcabouço normativo que rege a Administração (direta e indireta). O Estado democrático de Direito e os princípios da moralidade, da isonomia e da juridicidade impõem que qualquer ato da Administração que importe em restrição a direito seja motivado. Tal mandamento, inclusive, é expressamente prevista no artigo 50 da Lei 9.784/1999

A jurisprudência do STF, ainda que não tenha estabelecido entendimento definitivo quanto ao tema, parece indicar pela necessidade de motivação. No RE 589998, o tribunal entendeu pela existência de tal dever para a dispensa de empregado público, em razão dos princípios da impessoalidade e isonomia, que regem o concurso público, assegurando-se assim que tais princípios, observados no momento da admissão, sejam também respeitados por ocasião da dispensa.

Posteriormente, o STF conferiu efeitos modificativos aos embargos de declaração ao referido RE, para circunscrever os efeitos do julgado à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT).

Embora os efeitos da decisão tenham se limitado à ECT, o regime do emprego público e a observância de todos os entes da Administração indireta aos princípios da impessoalidade, da isonomia e da disciplina do concurso público (argumentos não alterados pelos embargos de declaração) não formam um regime exclusivo de uma empresa estatal, mas se aplicam a todas elas.

Ainda que o STF tenha decidido pela recepção do Decreto-Lei 509/69, que trata sobre impenhorabilidade de bens da ETC e pagamento pelo regime de precatórios, seria absurdo extrair de sua decisão que, para as demais empresas estatais, estariam derrogadas todas as normas constitucionais a ela aplicáveis, que as distinguem das empresas privadas.

Não se cogita, por exemplo, que as estatais contratem seus bens e serviços, como regra, sem prévia licitação. Não se admite que seus empregados estejam liberados dos órgãos de controle estatal, nem muito menos que não observem as normas de improbidade administrativa, ou que não sejam sujeitos ativos de crimes contra a Administração.

Em suma, não se pode negar que, a despeito do regime celetista aos quais os empregados públicos estão sujeitos, a complexidade de normas constitucionais e infraconstitucionais fazem com que a redação proposta pela PEC 32 gere maiores controvérsias do que soluções.

Assim, a despeito da emenda constitucional poder alterar as disposições constitucionais, ela é produto do poder constituinte derivado e, como tal, é inserida em um contexto normativo já existente. Caso o constituinte reformador não altere tais incongruências, gerará maiores questionamentos a um tema ainda não pacificado.

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