Opinião

IVA/IBS: as polêmicas da alíquota única e da tributação diferenciada para os serviços

Autor

5 de outubro de 2020, 7h04

As discussões sobre a reforma tributária têm gerado inúmeros debates sobre o Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA), também conhecido no Brasil como Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Duas questões parecem merecer um aprofundamento maior para que o debate esteja mais alinhado com os dados empíricos e com o modelo de funcionamento do IVA. A primeira questão diz respeito à polêmica em torno da alíquota única ou reduzida de IVA. A segunda discussão é a possibilidade de tributação diferenciada para o setor de serviços. Este artigo procura debater essas duas questões com base no modelo de funcionamento do IVA e nas experiências internacionais.

Quantos países usam alíquota reduzida, afinal?
Uma das principais polêmicas diz respeito à alíquota única ou à possibilidade de adoção de alíquotas reduzidas. Essa discussão tem sido feita em relação a dois assuntos diferentes: 1) para justificar uma alíquota diferenciada para os serviços como um todo, sob a premissa de que o setor teria "menos créditos" que os demais; e 2) para defender uma tributação diferenciada para produtos da cesta básica ou serviços considerados essenciais, como educação e saúde. Apesar desse assunto envolver inúmeras discussões relevantes (regressividade do IVA, eficiência da arrecadação, diminuição de contencioso etc.), este artigo somente tratará da questão sobre o número de países que adotam alíquotas reduzidas.

Artigos e especialistas nacionais têm apresentado conclusões de que a maioria dos países que adotam IVA (alguns afirmam mais de 90%) não tem alíquota única ou aplicam uma ou mais alíquotas reduzidas. Não há clareza sobre como esse número foi obtido, nem tampouco detalhamento da metodologia e das fontes utilizadas, quando muito apenas referência à base de dados da OCDE (cuja lista disponível no website abrange somente 35 países) [1]. Suponhamos então que tal número foi obtido por meio de uma simples verificação e contagem das alíquotas existentes em cada país que adota o IVA, incluindo a alíquota zero.

Tal metodologia, entretanto, parece não levar em conta um conceito básico do modelo de IVA: quase todos os países do mundo utilizam alíquota zero para as exportações. O IVA tem por princípio fundamental a tributação no destino e, por isso, a exportação geralmente é desonerada por meio de aplicação de alíquota zero às operações destinadas ao exterior. Essa escolha decorre das características próprias do modelo: a aplicação de alíquota zero permite a manutenção dos créditos, enquanto o modelo de isenção geralmente não permite o creditamento das operações anteriores [2]. Disso decorre que, obviamente, a maior parte dos países que adotam o IVA terá alíquota zero juntamente com uma alíquota única incidente sobre todas as demais operações ou dentre as demais alíquotas aplicáveis. Um levantamento que considere a alíquota zero para exportação como uma alíquota reduzida vai, com toda certeza, chegar a um número entre 90% a 100% dos países adotando alíquotas diferenciadas.  

Portanto, é preciso excluir da contagem a alíquota zero aplicável para exportações para fins de determinação do número de países que adotam alíquotas reduzidas. A alíquota zero, no caso das exportações, não é utilizada como um instrumento para tratamento diferenciado a certos setores ou produtos e serviços, mas para colocar em prática um dos princípios básicos do IVA, que é a tributação no destino e, ao mesmo tempo, garantir a manutenção do crédito dos exportadores. Por isso é um erro considerar a alíquota zero aplicável na exportação como sendo o mesmo caso de alíquotas diferenciadas utilizadas para fins de política tributária. É por esse motivo, inclusive, que no debate internacional se faz referência ao conceito de "alíquotas positivas".

Em um levantamento próprio [3], utilizando como fonte e cruzando as listas dos países que adotam IVA e de suas respectivas alíquotas do famoso estudo de Ebrill e outros [4], da base de dados do IBFD [5] e do FMI [6], e atualizando as alíquotas para 2020 a partir do cruzamento de diversas bases de dados [7] e pesquisas diretamente nos sites dos governos, apurou-se um total de 176 países que adotam IVA no mundo. Desses, 90 países não têm alíquota reduzida e/ou têm somente alíquota zero abaixo da alíquota padrão. Ou seja, 51,13% dos países pesquisados não têm nenhuma alíquota reduzida além da alíquota zero. Esse número é importante principalmente para o caso dos serviços, no sentido de reafirmar que a maioria dos países do mundo não beneficia certos setores nem adota alíquota reduzida para serviços.

Obviamente que é preciso considerar que alguns países utilizam a alíquota zero não só para as exportações, mas também para desonerar produtos essenciais, por exemplo. Esse é o caso do Canadá, que aplica uma alíquota padrão única para todos os produtos e serviços e usa alíquota zero tanto para exportações quanto para um rol bem limitado de produtos: alimentos básicos, produtos agrícolas e medicamentos. Nesses casos, até se justificaria incluir a alíquota zero na contagem para afirmar que o país adota alíquota reduzida dentro de uma política tributária de desoneração de certos bens. Além disso, há de se considerar que a desoneração de produtos e serviços essenciais também pode ser feita por meio de isenções, que têm um regime bem diferente da alíquota zero para fins de IVA, o que não entraria em um simples levantamento das alíquotas. Por fim, alguns países utilizam o IVA em uma lógica de "excise tax", através da aplicação de alíquotas mais altas do que a padrão para aumentar a tributação de produtos específicos, geralmente causadores de externalidades negativas.

Todas essas situações mostram que a metodologia deveria ser bem mais aprofundada para considerar as peculiaridades do regime IVA de cada país. O que não se pode, definitivamente, é considerar a alíquota zero per se como uma alíquota diferenciada dentro do regime IVA de determinado país sem que se faça uma pesquisa mais detalhada para definir os casos específicos em que ela se aplica.

Crédito é IVA pago. Ter menos créditos não justifica uma alíquota menor de IVA
A segunda discussão diz respeito à questão do creditamento. Um dos grandes argumentos utilizados pelo setor de serviços para reivindicar uma alíquota diferenciada para o IVA é o fato de supostamente ter "menos créditos a deduzir". Esse argumento parte do pressuposto de que o principal custo do setor é a mão de obra, que, por não ser tributada pelo IVA, não gera crédito. Esse argumento não procede em razão da própria sistemática do IVA de ser um tributo neutro que não onera a cadeia, mas o consumo final. Por essa razão que essa discussão deve ser conjugada na esfera política com o debate da tributação sobre a folha, que sem dúvidas tem peso relevante sobre o setor de serviços. Neste artigo, no entanto, somente trataremos da questão do IVA.

A principal característica do IVA é a possibilidade de creditamento do imposto pago nas operações anteriores. O creditamento existe para que: 1) a cadeia produtiva seja desonerada; 2) para que o imposto seja não cumulativo; e 3) para que o IVA seja repassado ao consumidor final.

Conforme já discuti em texto aqui publicado [8], nos modelos IVA o  imposto deve ser recolhido a cada operação, mas o ônus econômico é repassado do consumidor final. Portanto, as pessoas no meio da cadeia pagam o tributo nas aquisições, mas ao mesmo tempo são reembolsadas deste pagamento — por meio do creditamento do IVA pago — em uma sistemática que faz com que o IVA não onere a cadeia produtiva.

O ponto relevante nessa discussão é que o fornecedor ou prestador somente tem crédito se efetivamente pagou o imposto na condição de adquirente de bens e serviços. Caso o fornecedor não tenha entradas tributadas, não terá crédito, o que significa que não pagou nenhum centavo de tributo. Nesse caso, o fornecedor somente repassará aos cofres públicos, como uma espécie de "agente", aquilo que recolheu do seu cliente ao fornecer seus próprios bens ou serviços, de modo que, por consequência, não desembolsa nenhum valor a título de IVA, mas somente recolhe ao Fisco o valor pago por outrem. A desoneração do IVA por meio do creditamento no meio da cadeia não depende da quantidade de insumos nem do fato de ser uma cadeia longa ou curta (daí a neutralidade do imposto). Tanto nos casos em que há muitos insumos, quanto nas situações em que há poucos ou nenhum insumo, o fornecedor/prestador não desembolsará em princípio nenhum centavo a título de IVA, tendo em vista o creditamento total do imposto pago nas aquisições do IVA a recolher ao Fisco, através do sistema da não cumulatividade. Essa conclusão parte, obviamente, da premissa de que o fornecedor e prestador podem repassar economicamente ao consumidor todo o montante do tributo. Discutiremos a questão da elasticidade-preço da demanda, que pode fazer com que parte do ônus econômico seja repartido com o fornecedor, mais abaixo.

Pela sistemática do IVA, em cada etapa o adquirente de bens e serviços é a pessoa que paga o valor do IVA ao fornecedor com o preço dos bens e serviços adquiridos. O fornecedor, por sua vez, recolhe este valor (que foi desembolsado pelo adquirente, não por ele) aos cofres públicos. O cálculo do valor a recolher ao Fisco por determinado fornecedor é feito com base nas operações de saída por ele realizadas (valor de cada operação multiplicado pela alíquota) menos os valores de IVA pagos referentes às entradas de bens e serviços. Assim, o único valor efetivamente desembolsado pela pessoa foi o valor pago nas suas aquisições, por isto que a ela é dado o direito ao crédito — para que o IVA não onere os fornecedores e prestadores no meio da cadeia. O crédito, portanto, corresponde a algo que a pessoa pagou e o sistema de creditamento faz com que esta pessoa, portanto, não tenha nenhum ônus econômico de IVA.

Obviamente que nessa descrição não estamos levando em consideração os casos em que o fornecedor, em razão da elasticidade-preço da demanda, não pode repassar a totalidade do valor do tributo a seus clientes. Nesses casos, o fornecedor terá de diminuir o preço (normalmente através de redução da sua margem) para que seja possível o fornecimento de bens e serviços. Essa análise é sem dúvida importante para fins econômicos. Entretanto, para fins jurídicos, dentro do sistema IVA será sempre o adquirente que pagará o valor do tributo ao fornecedor e este, por sua, repassará este mesmo valor ao Fisco. Ou seja, caso o ônus econômico seja repartido com o fornecedor, isso será feito por meio de redução do preço/margem, e não por divisão do valor apurado dentro da obrigação tributária. Portanto, a elasticidade-preço da demanda não muda os elementos da obrigação tributária dentro do IVA no que diz respeito a quem paga (adquirente) e quem recolhe o imposto (fornecedor-sujeito passivo).

Por todas essas razões, não fazem muito sentido as reivindicações do setor de serviços no sentido de que deveria ser tributado a uma alíquota menor "por não ter muitos créditos de IVA". Essa defesa parte do argumento de que a agregação do valor aos serviços fornecidos por esse setor se dá pela mão-de-obra, e não por meio da utilização de bens e serviços intermediários no produto/serviço final. Ocorre que o IVA não incide sobre a mão-de-obra, de modo que, por isso, todos ou a maioria dos insumos utilizados pelo setor são desonerados de IVA. Se crédito é IVA pago, igualmente não faz sentido a reivindicação feita por alguns de se criar um crédito presumido para o custo da mão-de-obra. Em outras palavras, se o setor não utiliza bens ou outros serviços para fornecer, não há entradas tributadas, o que significa que não pagou nenhum IVA nas aquisições. Se não pagou IVA, por consequência não terá créditos. Nesse caso, a única função de uma empresa deste setor será aplicar e recolher o IVA junto com o preço dos seus serviços e repassar este valor ao Fisco, não desembolsando nessa operação nenhum montante a título de tributo.

Para finalizar, novamente ressaltamos que a discussão da repartição econômica do ônus tributário em razão da elasticidade-preço da demanda sem dúvidas é relevante, principalmente em um cenário de aumento abrupto de alíquota, em que os consumidores não aceitarão um repasse total e automático do IVA no preço e, portanto, serão os fornecedores que terão de arcar com o tributo. Para isso, importante um período de transição para o setor de serviços. No mais, diferentes elasticidades-preço da demanda igualmente estão presentes entre bens e mercadorias, e isso não justifica a aplicação de alíquotas diferenciadas em razão de diferentes elasticidades. Haja vista que a absorção de parte do imposto pelo prestador se dará por meio da redução do preço, a lógica jurídica do IVA (quem paga e quem recolhe) permanece sempre a mesma, independentemente de o ônus econômico ser eventualmente repartido entre fornecedor e adquirente.

 


[1] OECD – Organization for Economic Co-operation and Development. VAT/GST: standard and any reduced rates (2019). Disponível em: http://www.oecd.org/tax/tax-policy/tax-database/.

[2] Embora há países que adotam modelo de isenção com manutenção de crédito.

[3] Agradeço ao professor Isaías Coelho pela indicação das fontes e discussões quanto à metodologia a ser aplicada.

Autores

  • é diretora de cursos na York University (Canadá), advogada, doutora e mestre pela Université Sorbonne Nouvelle-Paris 3 (França) e autora do livro "Reforma Tributária: Ideais, Interesses e Instituições", Juruá, 2014.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!