Opinião

A Covid-19 e os contratos: o caso da Itália

Autor

  • Andrea Marighetto

    é advogado doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito summa cum laude pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

5 de outubro de 2020, 12h06

Para combater a grave situação da pandemia da Covid-19, em 23 de fevereiro de 2020 a Itália adotou vários provimentos normativos para tutelar a população contra a rápida difusão da doença. De um lado, foram adotados importantes instrumentos normativos, como o Decreto Lege (DL) 17 março de 2020 nº 18 e o Decreto Lege (DL) 8 abril de 2020 nº 23; de outro, o governo emitiu vários decretos regulamentares temporâneos Decretos do Presidente do Conselho dos Ministros (DPCM) através dos quais introduziu medidas urgentes [1] e radicais —, que criaram varias interpretações sobre a eficácia e a validade dos contratos nacionais e internacionais vigentes neste período (governados pela lei italiana).

Spacca
Em particular, o artigo 91 do DL 17 março de 2020 nº 18 dispôs qual critério interpretativo "padrão" a ser seguido para regulamentação dos contratos a seguinte regra: "O respeito das medidas de contenção (…) é sempre avaliada aos fins da exclusão, de acordo aos artigos 1218 e 1223 do Código Civil, da responsabilidade do devedor, também tendo em consideração à aplicação de eventuais decadências ou penais conexas a atrasados ou omitidos adimplementos". Em outras palavras, o devedor, apesar das limitações e prescrições para conter a epidemia, permanece responsável pelo inadimplemento, sempre que, embora tenha usado a ordinária diligência, perícia e prudência do bom pai de família, não conseguiu adimplir as prestações.

Sobre as medidas concretas, os sobrecitados DPDM estabeleceram várias limitações e prescrições, como: 1) limitar a circulação das pessoas (até estabelecendo limitações em todo o território nacional à saída da própria habitação); 2) fechar estradas, parques e outras áreas públicas, assim como cinema, teatros, centros educacionais, escolásticos, universitários e culturais em geral, religiosos e esportivos; 3) limitar a possibilidade de se mover de um território municipal, provincial e regional para outro; 4) aplicar autoisolamento preventivo ou quarentena preventiva; 5) limitar a presença física dos funcionários nas Administrações Publicas e facilitar o trabalho "ágil" ou remoto; 6) limitar ou suspender as atividades comerciais, de empresas e profissionais (com exceção daquelas consideradas essenciais para alimentação e assistência sanitária e médica) etc.

Entre os demais, parece-nos importante destacar o DPDM do dia 22 de março, por meio do qual o governo — por causa do altíssimo número de casos e falecimentos chegou a limitar/suspender temporariamente o exercício da produção daquelas atividades consideradas "não essenciais": em outras palavras, unicamente as empresas alimentícias, hospitalares e farmacêuticas puderam continuar abertas durante todo o período da pandemia e exercer as próprias atividades! As outras tiveram de suspender, (felizmente) por período limitado, as próprias atividades.

Essa intervenção pública evidentemente gerou e está ainda gerando não poucos problemas interpretativos sobre a efetividade dos contratos e da patologia que deriva do eventual descumprimento dos mesmos. De fato, apenas nestes últimos meses tiveram início as primeiras pronúncias da Suprema Corte de Cassação (Suprema Corte di Cassazione), como a nosso modo de ver a mais relevante sobre o ponto, a nº 56 de 2020.

Em síntese, a questão principal se resolve em: a adoção de um ato legislativo e (ou) normativo pelas autoridades públicas, de fato, configura uma forma de força maior e/ou impossibilidade superveniente? E mais, concretiza uma forma de legitimo descumprimento das obrigações contratuais?

O Código Civil Italiano de 1942 não define explicitamente o conceito de forca maior e(ou) de caso fortuito e, portanto, na ausência de expressa clausula contratual que trate de situações de força maior e(ou) de caso fortuito, individua ex lege dois remédios "gerais": 1) a resolução do contrato por impossibilidade superveniente; e 2) a resolução do contrato por excessiva onerosidade da prestação.

No primeiro caso, a impossibilidade superveniente das prestações se verifica quando a execução do contrato se torna tecnicamente "impossível", por efeito do assim chamado factum principis, ou seja quando um procedimento legislativo ou administrativo adotado após da conclusão do contrato torne objetivamente impossível executar a prestação.

A impossibilidade há de ser objetiva, absoluta e referível ao contrato: não pode ser representada por uma dificuldade, mas há de ser um verdadeiro impedimento, que não pode ser eliminado ou superado, independentemente do fato das partes ou do terceiro. Pelo artigo 1463 do Código Civil, nos contratos a prestações recíprocas (sinalagmáticas), quando a prestação se torna totalmente impossível, o credor não só não pode pretender a execução da contraprestação, mas deve também restituir a prestação que recebeu, de acordo com as normas da repetição do indébito objetivo [2].

A ratio da norma é que cada prestação se justifica na prestação da contraparte (consequentemente, caso não haja mais motivo para ser exigida a prestação, também não há mais motivo para se exigir a contraprestação), assim como no impedimento a favorecer enriquecimentos unilaterais.

A impossibilidade pode também ser parcial e abranger unicamente uma parte da prestação devida (1456 CC). Nesse caso, quando a prestação de uma parte se torna unicamente parcialmente impossível, a outra parte há direito a: 1) a obter uma correspondente redução da prestação devida; assim como 2) a resolver unilateralmente o contrato.

Diferentemente dos casos de impossibilidade total (1463 CC), a impossibilidade parcial não determina a extinção da obrigação ipso iure, mas: 1) o credor poderá exigir a execução da prestação mesmo que reduzida, sempre que ainda tenha interesse à execução; e 2) caso não haka mais interesse à execução [3], poderá pedir a resolução unilateral.

Ainda, quando a impossibilidade é unicamente temporânea, o adimplemento da obrigação é provisoriamente suspenso [4]. Todavia, caso o tempo de suspensão se torne excessivamente oneroso e, consequentemente, diminuir e (ou) terminar o interesse do credor em receber a execução da prestação por parte do devedor, a obrigação há de se considerar extinta.

A jurisprudência italiana, no passado, já tinha destacado que ordens e vetos emanados pelas autoridades devem ser: 1) externos à vontade do obrigado; e 2) não razoavelmente previsíveis, utilizando a comum diligência no momento da assunção da obrigação.

Quanto ao segundo caso, a excessiva onerosidade se verifica quando a execução do contrato seja ainda possível, mesmo que a prestação se torne excessivamente onerosa para uma das partes por causa do acontecimento de eventos extraordinários e imprevisíveis [5]. A excessiva onerosidade superveniente há a ser interpretada como "consistente alteração do relacionamento jurídico originário entre as prestações". A alteração, em síntese, há de se concretizar em um desequilíbrio do sinalagma constitutivo do contrato.

O eventual caso de excessiva onerosidade permite ao devedor acionar judicialmente a resolução do contrato, sendo de qualquer forma permitida ao credor a possibilidade de evitar o processo judicial, oferecendo ao devedor a renegociação do contrato. Em caso de processo judicial, o juiz poderá considerar côngrua a eventual nova oferta do credor e, consequentemente, modificar o contrato e condenar o devedor a executar a obrigação assim como alterada.

É interessante observar como a jurisprudência consolidou o entendimento pelo qual o desequilíbrio venha a concretizar a verdadeira alteração do sinalagma do contrato, e não possa ser identificado em mera dificuldade de adimplemento, como "por indisponibilidade de caixa e(ou) dinheiro" [6].

Não pode configurar impossibilidade da prestação a falta de dinheiro, sendo este último um bem genérico e durativo, e pela lei italiana o devedor responde do adimplemento das obrigações com todos os seus bens presentes e futuros [7].

Os contratos, portanto, precisam ser respeitados na formulação original (pacta sunt servanda). Caso sejam alterados os pressupostos e as condições que sustentam a base contratual do momento da estipulação por causas externas e sobrevenientes ao contrato de forma a modificar o asseto jurídico-econômico sobre o qual se fundamenta a base negocial —, a parte prejudicada deve ter a possibilidade de renegociar o conteúdo das prestações.

A boa-fé representa uma importante ferramenta para lidar com as problemáticas ligadas à execução do contrato, incluindo a aplicação de importantes princípios no interno do ordenamento jurídico e relevando um fundamento ético e social. Em particular, o dever de se comportar de forma ética e justa é também "limite" interno a cada situação jurídica e contratual subjetiva. A boa-fé objetiva na fase executiva assume centralidade na gestão desse tipo de situação, impondo a renegociação do contrato enquanto caminho necessário de adaptação às circunstancias e exigências sobrevenientes. A boa-fé é, portanto, "remédio" capaz de "recompor" o relacionamento econômico e social base do contrato [8]!

A ausência do fluxo de caixa é perigoso, mais para ser contagioso! A terapia a ser aplicada não é e não pode ser — a do cancelamento do vínculo contratual, mas, no mais, suspensão, postergação, redução das obrigações: em outras palavras, renegociação das obrigações.

Por isso, o entendimento da Suprema Corte está sendo no sentido de privilegiar o princípio da conservação do contrato, que se concretiza na promoção de comportamentos que tutelem a boa-fé como obrigação de cooperação. A boa-fé permite, assim, compensar a obrigação de renegociação com a liberdade de autodeterminação, sendo a renegociação a concretização da "realização das vontade das partes". Dessa forma, as partes permitem que o contrato continue e seja mantido, evitando a própria destruição do contrato, e das realidades econômicas. principalmente empresariais.

A Suprema Corte, portanto, na decisão nº 56 de 2020 parece não apresentar dúvida: cada caso é um caso que precisa ser examinado no seu concreto no respeito aos princípios tradicionais de adimplemento contratual, dando sempre preferência quando a base sinalagmática tiver sido à renegociação como forma de prossecução do relacionamento.

 


[2] Veja-se, o artigo 1463 do Código Civil: “Nei contratti con prestazioni corrispettive, la parte liberata per la sopravvenuta impossibilità della prestazione dovuta non può chiedere la controprestazione, e deve restituire quella che abbia già ricevuta, secondo le norme relative alla ripetizione dell'indebito”. Paralelamente, veja-se quanto previsto pelo artigo 876 do Código Civil Brasileiro.

[3] Veja-se, o artigo 1455 do Código Civil: Il contratto non si può risolvere se l'inadempimento di una delle parti ha scarsa importanza, avuto riguardo all'interesse dell'altra”.

[4] Veja-se, o artigo 1256, §2º, do Código Civil: “Se l'impossibilità è solo temporanea, il debitore finché essa perdura, non è responsabile del ritardo nell'adempimento. Tuttavia l'obbligazione si estingue se l'impossibilità perdura fino a quando, in relazione al titolo dell'obbligazione o alla natura dell'oggetto, il debitore non può più essere ritenuto obbligato a eseguire la prestazione ovvero il creditore non ha più interesse a conseguirla”.

[5] Veja-se o artigo 1467 do Código Civil: Nei contratti a esecuzione continuata o periodica, ovvero a esecuzione differita, se la prestazione di una delle parti è divenuta eccessivamente onerosa per il verificarsi di avvenimenti straordinari e imprevedibili, la parte che deve tale prestazione può domandare la risoluzione del contratto, con gli effetti stabiliti dall'articolo 1458. La risoluzione non può essere domandata se la sopravvenuta onerosità rientra nell'alea normale del contratto. La parte contro la quale è domandata la risoluzione può evitarla offrendo di modificare equamente le condizioni del contratto”.

[6] Veja-se, Cassazione Civile, Sez. II, 20 Febbraio 2020, nº 4451.

[7] Artigo 2740 do Código Civil.

[8] ROPPO, Enzo. Il Contratto, in IUDICA-ZATTI, Trattato di diritto privato, Milano, Giuffrè, 2011.

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  • é advogado, doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito, summa cum laude, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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