Opinião

O Projeto de Lei 4.441/2020 da ação civil pública e o custos vulnerabilis

Autor

  • Jorge Bheron Rocha

    é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

5 de outubro de 2020, 15h02

O Projeto de Lei nº 4.441/2020, apresentado no último dia 2 de setembro à Câmara pelo deputado federal Paulo Teixeira, tem por escopo a disciplina do procedimento da Nova Lei de Ação Civil Pública. O projeto de lei que pretende substituir a já bastante alterada Lei 7.347/85, conhecida como a Lei da Ação Civil Pública, é repleto de pungentes propostas e inovações que merecem e precisam de um profundo e acurado debate para o aperfeiçoamento da iniciativa.

Uma das novidades é, por exemplo, a expressa declaração de aplicabilidade nos procedimentos coletivos das disposições do CPC/2015, "desde que com eles seja compatível e adequado" (artigo 1º, §3º), questão que ainda gera debate, dúvida e alguma resistência pelos juristas e pelos tribunais. Segundo a justificativa do projeto, "(o) CPC-2015 é um Código do Processo Civil brasileiro, individual ou coletivo".

Caso se resumisse a essa proposição, a iniciativa parlamentar já teria grandes méritos, mas não para por aí.

Relativamente à Defensoria Pública, o projeto busca adequar as disposições processuais coletivas às alterações trazidas pela Emenda Constitucional 80/2014 e à jurisprudência recente dos tribunais [1].

De fato, a EC80/2014 incumbiu à Defensoria Pública as seguintes missões: 1) expressão do regime democrático; 2) instrumento do regime democrático; 3) promoção dos direitos humanos; 4) orientação jurídica dos necessitados; e 5) defesa dos necessitados [2]; determinando que essas missões sejam realizadas, em todos os graus, judicial e extrajudicial, de forma integral e gratuita, em prol de direitos individuais e coletivos.

Percebe-se que a Constituição Federal não circunscreveu a atuação da Defensoria Pública à representação processual da parte, ou seja, ao exercício do patrocínio judicial [3]. Na verdade, e em especial ao se referir à "forma integral" de atuação, a Constituição Federal não limitou a condução processual de interesses e direitos uma única forma, ao revés, deixou a questão em aberto, o que possibilita as múltiplas e dinâmicas posições processuais em que a instituição pode assumir no processo [4]:

"Para a consecução de suas missões, os defensores públicos, detentores de capacidade postulatória (artigo 4º, §6º, Lei Complementar 80/94), podem atuar: (a) como representante judicial, nos casos em que a parte comparece a Juízo em nome próprio para defender seus próprios interesses, inclusive curadoria especial; (b) em nome próprio para defender direito próprio, assim na hipótese (b.1) em que defende interesses institucionais primários, ou seja, visa a realização finalística de sua missão institucional de acesso à ordem jurídica e social justa às pessoas e coletividades vulneráveis, como parte ou interveniente, inclusive na modalidade de intervenção institucional denominada custos vulnerabilis, em processo penal ou civil, com atuação paralela, complementar ou suplementar às partes já representadas (TJCE — HC 0620464-61.2017.8.06.0000), à semelhança da intervenção do Ministério Público como custos juris, que, embora ambos se relacionem com a fiscalização e o controle institucional do Estado e da sociedade, suas missões não se confundem; e na hipótese (b.2) em que defende interesses institucionais secundários, i.e., interesses instrumentais e organizacionais da própria instituição que visam indiretamente a realização de sua missão, como nos casos de executar e receber as verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação (artigo 4º, XXI, Lei Complementar 80/94) ou de impetrar Habeas Corpus, mandado de injunção, habeas data e mandado de segurança (STF – MS 33193 MC / DF) ou qualquer outra ação (STF – STA 800/RS) em defesa das funções institucionais e prerrogativas de seus órgãos de execução (artigo 4º, IX, Lei Complementar 80/94); (c) em nome próprio para defender direito alheio, quando autorizada pelo ordenamento jurídico (artigo 18, NCPC): (c.1) autorização expressa na lei, como no caso de ação civil pública (artigo 5º, II, lei nº 7.347/1985) ou na jurisdição voluntária (artigo 720, CPC); (c.2) autorização por interpretação sistêmica, decorre, dentre outros do 4º da Londep, que autoriza a atuação em todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada e efetiva tutela dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis; (c.3) autorização por analogia; diante de uma lacuna, aplicar o regramento de outra norma (HC 143.641); e (c.4) autorização por negócio jurídico processual (artigo 190, CPC), com atribuição de legitimidade extraordinária negociada" [5].

O projeto de lei reconhece a missão constitucional da Defensoria Pública para a defesa dos indivíduos e grupos vulnerabilizados, quando prevê sua legitimidade extraordinária (artigo 6º, II), ou seja, a substituição processual daqueles, inclusive com a perspectiva de litisconsórcio entre os ramos da instituição (artigo 6º, §6º, III). Entretanto, o projeto avança de maneira substancial e segura quando, em seu artigo 18, admite a intervenção autônoma institucional da Defensoria Pública como custos vulnerabilis.

"Artigo 18 — Admitem-se as intervenções de terceiro previstas no Código de Processo Civil, inclusive a intervenção do amicus curiae.
§1o.O membro do grupo não pode intervir como assistente.
§2o. O colegitimado pode intervir como assistente litisconsorcial.
§3o. A agência, o órgão ou o ente regulador será necessariamente citado para, querendo, intervir no processo, quando a decisão interferir em área por ele regulada.
§4o. Quando não for parte, o Ministério Público atuará obrigatoriamente como fiscal da ordem jurídica.
§5o. Quando não for parte, a Defensoria Pública será intimada a intervir no processo em que se discuta direito de grupo de pessoas economicamente vulneráveis".

Não obstante a redação incida no mesmo equívoco do artigo 554, §1º, do Código de Processo Civil, em que tenta limitar a atuação da Defensoria Pública à vulnerabilidade de cunho econômico, a proposta tem a virtude de reconhecer na instituição a vocação para uma atuação capaz de propiciar a adequada e efetiva tutela de pessoas e coletividades vulneráveis, tal como determina a previsão do artigo 4º, X, da Lei Complementar 80/1994 (Londep) por intermédio de uma intervenção em nome próprio para a defesa dos interesses institucionais primários [6],independentemente desses indivíduos ou grupos já se encontrarem representados judicialmente no processo por meio de associação ou como amicus curiae, por exemplo.

Constituindo-se em tradução lógica do objetivo institucional inscrito no artigo 3º-A, IV, Londep, qual seja, de garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, a intervenção autônoma institucional da Defensoria Pública se encontra prevista também em outras normas, como se verifica no artigo 554, §1º, do Código de Processo Civil, no artigo 81-A, da Lei de Execução Penal, no artigo 141, do Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 23-A, Lei 11.343/2006, etc.

A proposta de nova Lei de Ação Civil Pública busca se adequar à nova disciplina constitucional da Defensoria Pública como expressão e instrumento do regime democrático, inclusive no processo, máxime em se tratando de processo de cunho coletivo, em que a intervenção autônoma institucional se traduz em participação ativa e substancial de decisão cujos efeitos atingem direitos transindividuais e, ainda, formam precedente que acarretará grande impacto no acervo jurídico de pessoas ou grupos vulneráveis.

Ao dar um tratamento similar e paralelo ao Ministério Público, o projeto equilibra a guarda do ordenamento jurídico e a guarda das pessoas, atuando a Defensoria Pública na apresentação dos argumentos pro vulnerabilis et hominem com a mesma força, desenvoltura e institucionalidade que a intervenção ministerial pro juris et societate.

O artigo 18 do projeto de lei distingue, assim, a intervenção custos vulnerabilis da intervenção amicus curiae, quando trata desta no caput e daquela no já citado §5º. Não poderia ser de outra forma, uma vez que a Defensoria Pública não intervém no processo por liberalismo, faculdade ou escolha, sendo a realização de suas missões uma imposição constitucional, daí porque os ônus e as prerrogativas da atuação em um e em outro caso são bem diferentes:

"Por fim, há que se ressaltar que deve-se dar preferência à intervenção institucional da Defensoria Pública como custos vulnerabilis e não como amicus curiae pelas seguintes razões:
1) Simbolismo da atuação, se trata de uma intervenção enquanto guardiã dos vulneráveis e não como amiga da corte, pois, não obstante a contribuição com o debate, o robustecimento das informações e argumentos, a real influência no contraditório e ampla defesa tem a finalidade de equilibrar a balança da justiça e trazer luzes para o caminho da concretização dos direitos fundamentais dos indivíduos e coletividades acossados pelas vulnerabilidades, obtendo-se provimento e fixando-se precedentes que lhes sejam favoráveis;
2) A legitimidade de ingresso no
amicus curiae na demanda depende de comprovação da relevância da matéria, sua relação com a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia. Já para o ingresso da Defensoria Pública como custos vulnerabilis basta a demonstração do interesse institucional na demanda, ou seja, que revele relação direta ou potencial com o plexo de direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade;
3) O requerimento de ingresso do
amicus curiae, neste prisma, pode ser indeferido, mesmo diante da comprovação dos requisitos, o que não poderia se dar em relação à Defensoria Pública custos vulnerabilis, demonstrada a relação estreita com a missão institucional, pois as normas constitucionais e infraconstitucionais que determinam sua intervenção são de ordem cogente e ligadas ao próprio regime democrático;
4) Ante a pluralidade de pedidos de admissão de
amicus curiae, o magistrado pode deferir o ingresso apenas de um ou de alguns, atendo às efetivas contribuições de acordo com os critérios de admissão. Em relação ao custos vulnerabilis, o magistrado não poderia indeferir o ingresso de qualquer das Defensorias Públicas, em razão de que, não obstante regidas pelos princípios institucionais da unidade e indivisibilidade, cada exerce seu feixe de atribuições em determinado território e junto a determinados órgãos judiciais e administrativos, não sendo possível, em regra, a substituição de uma por outra;
5) Nos casos de ser indeferido o ingresso do
amicus curiae, esta decisão é irrecorrível (artigo 138, CPC), o que não se dá em relação ao indeferimento do ingresso do custos vulnerabilis, haja vista que este ostenta todos os poderes no processo, inclusive o amplo leque recursal;
6) Enquanto os poderes do
amicus curiae são definidos pelo magistrado; os poderes do custos vulnerabilis decorrem do ordenamento jurídico, podendo-se aplicar por analogia com o artigo 179, II que se refere aos poderes do Ministério Público enquanto interveniente. Importante relatar que os membros a Defensoria Pública surgiram de dentro do Ministério Público, como cargos iniciais do parquet, o que explica, em parte, sua histórica índole interventiva. Assim, a Defensoria Pública atuando como custos vulnerabilis 'poderá produzir provas, requerer as medidas processuais pertinentes e recorrer';
7) Enquanto o
amicus curiae está submetido à restrição recursal, podendo manejar apenas embargos de declaração ou recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas (artigo 138, §1º e §3º, CPC), ao custos vulnerabilis é cabível interpor todo e qualquer recurso ou incidente — caso haja interesse e legitimidade;
8) Por fim, vislumbramos ser uma excepcionalidade a migração de posição processual do
amicus curiae, enquanto que, para a Defensoria Pública, a dinamicidade das posições processuais é uma regra geral, diante do imenso leque de atribuições de que é imbuída. Por exemplo, pode figurar no processo como representante de uma parte, mas entender estar diante de questão que envolva a necessária amplitude do contraditório, paridade de tratamento e isonomia entre todos os potencialmente atingidos pela decisão e ingressar como custos vulnerabilis; ou, ainda, já figurar no processo nesta condição e, diante da renúncia do patrono da parte, assumir sua representante processual" [7].

A proposta, portanto, estabelecendo o local constitucional destinado à Defensoria Pública custos vulnerabilis — em equilíbrio ao Ministério Público custos juris — como órgãos permanentes e essenciais à função jurisdicional do estado, como partes de um sistema de Justiça, defesa social e controle estatal [8], dentro dos limites de suas funções —  responsáveis pela formação dos precedentes, como demonstra a legitimidade institucional para o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) e Incidente de Assunção de Competência (IAC), e, ainda, a legitimidade para a edição, revisão e cancelamento de súmula vinculante previsto na Lei 11.417/2006.

Há muito a ser estudado e debatido no Projeto de Lei 4.441/2020, mas é muito bem-vinda a proposta de previsão expressa da intervenção autônoma institucional da Defensoria Púbica nas ações coletivas, pois serve à amplificação do contraditório em favor dos vulneráveis face à ordem jurídica, viabilizando ampla participação democrática na formação de precedentes e qualificação do diálogo jurídico, sob o prisma da inclusão igualitária das múltiplas formas de expressões dos indivíduos e grupos diretamente afetados.


[1] STF HC 143.641; STJ PET no HC 568.693 e EDcl no REsp 1.712.163-SP

[2] ROCHA, Jorge Bheron. O título da Defensoria Pública no CPC 2015. In: Teoria Geral da Defensoria Pública. OLIVEIRA, Alfredo Manuel (Org.). Belo Horizonte: D’Plácido, 2020

[3] ROCHA, Jorge Bheron; GONÇALVES FILHO, Edilson Santana; CASAS MAIA, Maurílio. Custos vulnerabilis: a Defensoria Pública e o equilíbrio nas relações político-jurídicas dos vulneráveis. Belo Horizonte: CEI. 2020

[4] ROCHA, Jorge Bheron. O RE 593.818, o defensor público natural e a atuação custos vulnerabilis. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2018-abr-10/re-593818-defensor-publico-natural-atuacao-custos-vulnerabilis>. Acesso em 6/5/2018

[5] ROCHA, Jorge Bheron. O título da Defensoria Pública no CPC 2015. In: Teoria Geral da Defensoria Pública. OLIVEIRA, Alfredo Manuel (Org.). Belo Horizonte: D’Plácido, 2020.

[6] ROCHA, Jorge Bheron. Comentário ao Enunciado 56. In Enunciados Jornadas de Direito Processual Civil STJ/CJF — Organizados por assunto, anotados e comentados. Roberval Rocha (org.) Koehler et ali (Coord). Salvador: Juspodivm. 2019..p. 293-294.

[7] ROCHA, Jorge Bheron. Experiências de Intervenção da Defensoria Pública do Ceará como Custos Vulnerabilis Na Tutela De Direitos No Processo Penal. In: SIMÕES, Lucas Diz. MORAIS, Flávia Marcelle Torres Ferreira de. FRANCISQUINI, Diego Escobar. (org.) Defensoria Pública e a Tutela dos Coletivamente Vulnerabilizados. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.

[8] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As funções essenciais à Justiça e as Procuraturas Constitucionais. Revista de informação legislativa, v. 29, n. 116, out./dez. 1992, p. 79-102

Autores

  • Brave

    é defensor público do Estado do Ceará, professor de Direito Penal e Processo Penal e Civil, pós-graduado em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará, mestre pela Universidade de Coimbra e doutorando em Direito Constitucional.

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