Justiça Tributária

A Constituição faz 32 anos — o Titanic e as equipes de comando

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

5 de outubro de 2020, 8h03

Spacca
A Constituição de 1988 faz, hoje, 32 anos. Fruto de uma Assembleia Constituinte, foi um instrumento de combate ao arbítrio e ao autoritarismo da fase anterior da trajetória de nosso país. A pergunta, meramente retórica, é: ela está cumprindo seu papel?

Parto do pressuposto que o Direito é algo vivo, que está no meio de nós, regulando as relações humanas, não só individuais, ao traçar limites para cada pessoa, mas também as relações em sociedade. Isso já afasta a concepção de que uma Constituição seja apenas um instrumento de contenção do arbítrio do Estado – é mais do que isso. Afasta também a ideia de que o Direito é o que dizem os sábios em livros depositados prateleiras empoeiradas – embora isso seja parte dele. E nem é o que a jurisprudência afirma – a despeito de sua importância dentro do sistema. Uma Constituição é muito mais do que a reunião de tudo isso, pois se caracteriza como um instrumento de organização das relações humanas em sociedade, englobando todas essas dimensões e muitas outras.

O desenho constitucional de 1988 aponta para a construção de um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias – conforme consta em seu preâmbulo.

Como foi um documento construído tomando por base o período autoritário anterior, constata-se que, além de tratar de aspectos estruturais e fundamentais para a convivência dos brasileiros, também desceu a detalhes e minúcias que deveriam fazer parte de outro conjunto normativo (leis complementares e ordinárias), o que se vê de forma bastante clara nos aspectos financeiros e tributários da Carta. Um singelo exemplo: é matéria constitucional declarar que as taxas não podem ter a mesma base de cálculo dos impostos (artigo 145, parágrafo 2º)? Óbvio que isso foi fruto de um momento de ampla liberdade e de baixa noção de constitucionalismo – além de uma eterna suspeita de que o Poder Público poderia avançar os limites traçados, como visto anteriormente durante os Planos Cruzado e Bresser.

Detratores da Carta de 88 apontam para as quase 120 emendas constitucionais já realizadas em seu texto, porém todas mantiveram íntegros os princípios vetores da construção de um Estado Democrático, garantidor de direitos individuais e sociais. As alterações foram relevantes, porém não abalaram a estrutura, apenas partes periféricas do texto.

Deve-se considerar que (1) uma coisa é a estrutura desenhada para o Estado, (2) outra coisa são os direitos assegurados aos indivíduos e à sociedade, (3), uma terceira são os fundamentos e os objetivos a determinarem a condução das ações governamentais e, (4) algo totalmente diverso são os distintos governos, em diferentes níveis federativos, que se sucederam ao longo destes 32 anos.

Não se há de confundir Estado com governo – o Estado está no âmbito da estrutura, como se fosse o resultado de um projeto coletivo. Um navio, por exemplo, é uma estrutura projetada e construída por múltiplas mãos – no exemplo equivaleria ao Estado. Já o governo é a equipe de comando do navio, que pode ser melhor ou pior qualificada, mas que é incumbida de fazer a embarcação seguir viagem até os portos de destino que foram traçados. Essa imagem me lembra uma frase escrita no estaleiro irlandês em que foi construído o navio Titanic: construído na Irlanda, mas pilotado por ingleses – como todos sabem, o navio afundou nas águas geladas do Atlântico Norte. Em suma: não se há de confundir a estrutura do navio/Estado com a equipe de comando/governo.

Claro que o papel atribuído ao STF é importantíssimo nesse contexto. Dias atrás, em um evento sobre Direito Tributário Internacional coordenado pelo professor Schoueri, iniciativa do IBDT e da Faculdade de Direito da USP, o ministro Alexandre de Moraes destacou o enorme poder que tem o STF, ímpar no mundo, pois reúne (1) as competências de controle difuso de constitucionalidade da Suprema Corte norte-americana, com vitaliciedade (mitigada), (2) as competências de controle direto de constitucionalidade das Cortes Constitucionais europeias, nas quais os membros possuem mandato, (3) e também, sob certos aspectos, aliado ao controle prévio, próprio do sistema francês. Tudo isso em (4) uma Constituição longuíssima, na qual muitos direitos foram constitucionalizados sem que tivessem tal perfil. Isso aponta para diversos problemas a serem enfrentados, que não cabem no escopo deste texto.

Penso que o grande desafio desses 32 anos vem sendo o de congregar os direitos individuais aos direitos sociais, e isso se delineia na necessária sustentabilidade financeira, imprescindível em termos intergeracionais, e que bate à nossa porta todos os dias. Um caso atual: manter o auxílio emergencial é algo necessário para os que enfrentam necessidades de sobrevivência quotidiana em plena pandemia, porém o custo de R$ 50 bilhões mensais pode comprometer as futuras gerações, em face do desequilíbrio financeiro que isso ocasionará. Nesse exemplo diversos dilemas afloram, tais como, por um lado, o nítido interesse reeleitoral, contraposto aos interesses na manutenção de algum instrumento de responsabilidade fiscal, como o teto de gastos, o que aponta para alternativas, como a ampliação da carga tributária (igualmente nítida nas propostas de reforma tributária em debate). Poderia descrever isso em termos acadêmicos, mas dirijo o leitor a alguns textos pertinentes (aqui e aqui).

É necessário que as equipes de comando tornem as pessoas mais iguais em direitos, conforme exposto em nossa rota de navegação constitucional. Esta pandemia escancarou a desigualdade na população brasileira e a aprofundou. Basta comparar aqueles que tem condições financeiras para rotineiramente fazer a testagem para Covid-19, e têm uma âncora nos grandes hospitais privados, com quem não tem condições financeiras, pois, além de não ser amplamente testado, foi atendido pelo SUS, o que só destacou sua importância para todos – até aqui se demonstra certa igualdade. A desigualdade, contudo, se identifica na taxa de mortalidade, que é duas vezes superior no SUS. Isso aponta ser necessário maior investimento no sistema de saúde pública.

Enfim, não confundamos o navio com as sucessivas equipes de comando do navio. A estrutura da nossa Constituição é boa e deve ser preservada, embora possa ser aperfeiçoada aqui e ali, na sua parte periférica, não essencialmente constitucional, como vimos fazendo ao longo desses 32 anos. Se temos elegido equipes de comando ruins, há tempo de mudar, antes de uma eventual colisão com os muitos icebergs que existem nos mares a serem navegados. A arma é o voto.

Autores

  • Brave

    é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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