Opinião

Algumas questões sobre a (in)eficácia técnica da LC 175/2020 na cobrança do ISS

Autor

  • Francielli Honorato Alves

    é mestre em Direito pela USP especialista em Direito Tributário pelo Ibet advogada sócia-fundadora do escritório Honorato Alves Advocacia e Consultoria Jurídica e professora do Curso de Especialização em Direito Tributário do Ibet.

4 de outubro de 2020, 11h14

A Lei Complementar nº 175, publicada no último dia 24 de setembro, ao tratar sobre a cobrança do Imposto sobre Serviços (ISS) em relação aos serviços de plano de saúde, leasing e administração de cartões de crédito e de débito, parece ter sido editada com o objetivo de cumprir ao menos duas das funções atribuídas às leis complementares de caráter nacional pelo artigo 146 da Constituição Federal: o de dispor sobre eventuais conflitos de competência (inciso I) e o de estabelecer normas gerais em matéria tributária, especialmente sobre obrigações tributárias (inciso III, alínea "b"). Contudo, apesar de o artigo 17 da LC nº 175/2020 prever a sua vigência imediata, as normas jurídicas gerais e abstratas que podem ser construídas a partir dos enunciados dessa lei complementar ainda não podem ser aplicadas por problemas de falta de eficácia técnica.

Essa afirmação tem como premissa o conceito de "eficácia técnica" explicado pelo professor Paulo de Barros Carvalho:

"Pode acontecer que u'a norma válida assuma o inteiro teor de sua vigência, mas por falta de outras regras regulamentadoras, de igual ou inferior hierarquia, ou, pelo contrário, na hipótese de existir no ordenamento outra norma inibidora de sua incidência, não possa juridicizar o fato, inibindo-se a propagação de seus efeitos. (…) As normas jurídicas são vigentes, os eventos do mundo social nelas descritos se realizam, contudo as regras não podem juridicizá-los e os efeitos prescritos também não se irradiam. Falta a essas normas 'eficácia técnica'" [1].

Sendo assim, é importante verificar se a aplicação das prescrições contidas nos enunciados da LC nº 175/2020 dependem da eficácia de outras normas jurídicas atualmente vigentes. E os primeiros enunciados que precisam ser analisados nesse sentido são os do artigo 14 dessa lei, que introduziu os parágrafos 5º a 11 no artigo 3º da Lei Complementar nº 116/2003 com o objetivo de definir quem são os tomadores dos serviços previstos nos itens 4.22, 4.23 e 15.01 da lista anexa a essa lei complementar e esclarecer qual será o município competente para instituir e cobrar o ISS sobre a prestação desses serviços, procurando evitar que mais de um ente federado entenda que seja competente para cobrar esse imposto sobre uma mesma prestação de serviço.

No que diz respeito às atividades de plano de saúde previstas nos itens 4.22 e 4.23 da lista anexa à LC nº 116/2003, os enunciados dos §§6º e 7º que foram introduzidos no seu artigo 3º esclarecem quem é o tomador previsto no inciso XXIII do mesmo artigo 3º, cujo domicílio será considerado para definição do município competente para instituir e cobrar o ISS incidente sobre a prestação desses serviços. Contudo, os efeitos desse inciso XXIII estão suspensos em razão de medida cautelar concedida em 23/3/2018 pelo ministro Alexandre de Moraes na ADI nº 5835, que tem como objeto o questionamento da constitucionalidade dos enunciados prescritos pela Lei Complementar nº 157/2016 para alterar o local de incidência do ISS dessas e das outras atividades que serão mencionadas aqui do local do estabelecimento prestador para o local do domicílio do tomador. Ou seja, apesar de válido e vigente, o enunciado do mencionado inciso XXIII do artigo 3º não pode ser aplicado enquanto estiver em vigor essa medida cautelar, o que implica na continuidade da aplicação da regra geral prevista no caput do artigo 3º da LC nº 116/2003 para definir o município competente para a instituição e a cobrança do ISS sobre os serviços de plano de saúde: o local do estabelecimento prestador, nos moldes do artigo 4º da mesma LC nº 116/2003.

O mesmo raciocínio deve ser aplicado em relação às atividades de administração de cartão de crédito ou débito e as demais que estão previstas no item 15.01. Apesar de os enunciados dos §§8º, 9º, 10 e 11 definirem quem são os tomadores de cada um desses serviços, a aplicação desses três parágrafos que foram incluídos no artigo 3º da LC nº 116/2003 depende do enunciado do inciso XXIV desse 3º, que define o local do domicilio do tomador desses serviços como o ente federado competente para a instituição e a cobrança de ISS sobre eles. E os efeitos desse enunciado do inciso XXIV também estão suspensos em razão da mesma medida cautelar proferida na ADI nº 5835. Ou seja, enquanto estiver em vigor essa decisão judicial, os serviços previstos no mencionado item 15.01 continuam sendo tributados no local do estabelecimento prestador, conforme a regra geral prevista no caput do artigo 3º.

Caso essa medida cautelar seja revogada ou o Supremo Tribunal Federal julgue de forma improcedente o mérito da ADI nº 5835, declarando a constitucionalidade dos incisos XXIII e XXIV que foram incluídos pela LC nº 157/2016 no artigo 3º da LC nº 116/2003, seria possível afirmar que os enunciados dos parágrafos 5º a 11 que foram incluídos no mesmo artigo 3º da LC nº 116/2003 pela recente LC nº 175/2020 estariam, a princípio, aptos a serem aplicados na cobrança do ISS sobre essas atividades. Entretanto, essa aplicação esbarra em um outro problema de eficácia técnica: a reprodução dessas regras de definição do local de incidência do ISS nas leis municipais.

Como se sabe, a lei complementar de caráter nacional não é instrumento normativo competente para instituir a cobrança de um tributo nos territórios dos entes federados que devem observar as normas gerais prescritas por essa lei. É necessário que cada um desses entes federados produzam leis em sentido estrito para efetivamente instituir a cobrança desses tributos sobre os fatos jurídicos que ocorrerem nos seus territórios. No caso do ISS, não basta que a LC nº 116/2003, com as alterações feitas pela LC nº 157/2016 e, agora, com os novos enunciados introduzidos pela LC nº 175/2020, prescreva os elementos que devem ser considerados na definição do município ou do Distrito Federal competente para a cobrança do ISS sobre cada prestação de serviço tributável por meio desse imposto; por se tratar de uma questão de definição do critério espacial da regra-matriz de incidência do ISS, é necessário que cada município e o Distrito Federal prevejam, em suas leis próprias, esses mesmos critérios para a definição do local em que se considera devido o imposto.

Sendo assim, caso o STF revogue a medida cautelar que está em vigor na ADI nº 5835 ou declare a constitucionalidade dos incisos XXIII e XXIV incluídos pela LC nº 157/2016 no artigo 3º da LC nº 116/2003, ainda será necessário que os municípios que ainda não atualizaram suas leis próprias para prever o local do domicílio do tomador como local de incidência do ISS cobrado sobre os serviços previstos nos itens 4.22, 4.23 e 15.01 façam essa atualização para efetivamente instituírem a cobrança do ISS sobre essas atividades no seu território, na nova forma prevista na legislação nacional. Enquanto esses municípios não atualizarem suas leis próprias nesse sentido, os enunciados dos §5º a 11 que foram incluídos no mencionado artigo 3º pela LC nº 175/2020 não poderão ser aplicados sobre os tomadores desses serviços que estiverem domiciliados em seus territórios em razão desse segundo problema de eficácia técnica, pois as leis vigentes nesses municípios continuam prevendo que esses serviços devem ser tributados no local do estabelecimento prestador.

Ainda que a LC nº 175/2020 não tenha veiculado nenhum enunciado específico sobre o tomador dos serviços de plano de saúde veterinário, previsto no item 5.09 da lista anexa à LC nº 116/2003, é importante mencionar que o mesmo raciocínio construído acima se aplica na cobrança de ISS sobre essa atividade, pois a definição de que ela deve ser tributada pelo município do domicílio do tomador desse serviço está prevista no inciso XXIII do artigo 3º da LC nº 116/2003. Ou seja, enquanto vigorar a medida cautelar na ADI nº 5835, a eficácia desse inciso está suspensa e esse serviço continuará sendo tributado no local do estabelecimento prestador.

Considerando as premissas e as conclusões postas até aqui, o único dos parágrafos incluídos pela LC nº 175/2020 no artigo 3º da LC nº 116/2003 que não esbarraria no primeiro problema de eficácia técnica mencionado anteriormente seria o §12, que define o tomador do serviço de arrendamento mercantil, previsto no item 15.09 da lista anexa à LC nº 116/2003. Isso porque a LC nº 175/2020 deu nova redação ao inciso XXV daquele artigo 3º, prevendo o domicílio do tomador desse serviço como o local onde se considera o ISS incidente sobre ele. Ainda que essa regra já estivesse prevista na redação original desse inciso XXV e que essa antiga redação estivesse com os efeitos suspensos em razão daquela medida cautelar proferida na ADI nº 5835, a LC nº 175/2020 revogou essa antiga redação, substituindo-a por novo enunciado prescritivo. Em razão disso, é possível afirmar que a mencionada medida cautelar não se aplica automaticamente sobre esse novo enunciado do inciso XXV e, além disso, que, caso seja declarada a inconstitucionalidade da redação dada pela LC nº 157/2016 ao enunciado desse inciso XXV, essa inconstitucionalidade se refere à antiga redação, o que manteria plenamente válido e vigente esse novo enunciado trazido pela LC nº 175/2020.

Entretanto, essa medida cautelar proferida na ADI nº 5835 também suspendeu "a eficácia de toda legislação local editada para sua direta complementação". Isso significa que as leis municipais que foram atualizadas entre a publicação da LC nº 157/2016 e a da LC nº 175/2020 para reproduzir o enunciado do inciso XXV do artigo 3º da LC nº 116/2003 também estão com sua eficácia suspensa enquanto vigorar essa medida cautelar. Sendo assim, mesmo que a eficácia da nova redação desse inciso XXV não esteja sujeita ao julgamento da ADI nº 5835, o ISS incidente sobre os serviços previstos no item 15.09 não poderá ser cobrado pelo município do domicílio do tomador desses serviços que já tenha atualizado sua legislação própria. Significa dizer que apenas aquele município que ainda não atualizou a sua respectiva legislação e que o faça agora, considerando a nova redação dada ao inciso XXV do artigo 3º da LC nº 116/2003 pela LC nº 175/2020, poderá cobrar o ISS sobre a atividade de arrendamento mercantil considerando os tomadores desses serviços domiciliados em seu território sem precisar esperar novo posicionamento do STF na ADI nº 5835.

Contudo, é muito importante lembrar que em todos os casos em que os municípios e o Distrito Federal ainda precisem atualizar suas leis próprias para prever a cobrança do ISS no domicílio do tomador dos serviços previstos nos itens 4.22, 4.23, 5.09, 15.01 e 15.09 da lista anexa à LC nº 116/2003, a aplicação dessas leis municipais atualizadas estará sujeita aos princípios constitucionais da anterioridade e da anterioridade nonagesimal, prescritos, respectivamente, nas alíneas "b" e "c" do inciso III do artigo 150 da Constituição Federal. Assim se afirmar pois, antes dessa alteração, não havia previsão, nas leis desses municípios, de que o ISS daquele município incidiria sobre os serviços prestados àqueles tomadores que estão domiciliados em seu território. Ou seja, essa atualização da lei municipal implica na instituição do ISS sobre os serviços previstos naqueles itens quando eles forem prestados a tomadores domiciliados em seu território. E sempre que houver instituição de tributo novo, aqueles princípios constitucionais tributários atuam e devem ser observados como verdadeiros limites ao exercício do poder de tributar.

Superados os dois problemas de eficácia técnica analisados até este momento, ou seja, considerando que a medida cautelar que hoje vigora na ADI nº 5835 seja revogada ou que o STF declare a constitucionalidade da LC nº 157/2016 e que os municípios e o Distrito Federal já tenham atualizado suas leis próprias para prever a cobrança do ISS no local do domicílio do tomador dos serviços previstos nos itens 4.22, 4.23, 5.09, 15.01 e 15.09 da lista anexa à LC nº 116/2003, há ainda outros problemas de eficácia técnica que impedem a aplicação imediata das regras previstas na LC nº 175/2020 a respeito do padrão nacional de obrigação acessória do ISS incidente sobre essas atividades e da partilha do produto da arrecadação desse imposto entre o município do local do estabelecimento prestador e o município do domicílio do tomador desses serviços.

O primeiro desses problemas de eficácia técnica está na necessidade de que o Comitê Gestor das Obrigações Acessórias do ISSQN (CGOA), instituído por meio do artigo 9º da LC nº 175/2020, seja efetivamente instaurado conforme as regras previstas no artigo 11 da mesma lei para que possa desenvolver e definir o leiaute e o padrão a ser seguido pelos contribuintes do ISS incidente sobre os serviços atingidos por essa lei complementar para desenvolver o sistema eletrônico de padrão unificado que será utilizado para apuração e declaração do ISS devido sobre essas atividades, conforme previsto no artigo 2º, caput, e §1º da LC nº 175/2020. Assim que esse leiaute e esse padrão forem disponibilizados, ainda será necessário que os contribuintes desenvolvam esse sistema eletrônico e disponibilizem o acesso gratuito a esse sistema aos municípios e ao Distrito Federal (conforme artigo 2º, §§1º e 2º dessa lei).

Resolvidas essas questões, ainda será necessário que cada município e o Distrito Federal informem, nesse sistema, as alíquotas que estão previstas em suas leis próprias para serem aplicadas no cálculo do valor do ISS devido pelos prestadores dos serviços previstos nos itens 4.22, 4.23, 5.09, 15.01 e 15.09, disponibilizem os arquivos com o conteúdo dessas leis também no sistema e informem os dados do domicílio bancário a ser utilizado pelos contribuintes para o recolhimento do ISS devido a cada município (conforme artigo 4º, incisos I a III e §1º da lei). Por fim, ainda é necessário que cada município faça o convênio, o ajuste ou o protocolo previsto no §1º do artigo 15 ou preveja em lei a obrigação de retenção e de transferência pelas instituições financeiras arrecadadoras prevista no §2º do mesmo artigo 15 da LC nº 175/2020 para viabilizar a partilha de arrecadação do ISS devido entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022 entre o município do local do estabelecimento prestador e o município do domicílio do tomador dos serviços atingidos por essa lei, conforme as regras previstas no caput e nos incisos I e II do mesmo artigo 15.

Portanto, apesar de a Lei Complementar nº 175/2020 ter validade presumida e prescrever sua vigência imediata, enquanto as normas jurídicas construídas a partir dos seus enunciados tiverem os problemas de eficácia técnica analisados neste trabalho, essa lei complementar não será capaz de produzir os efeitos jurídicos esperados na solução dos conflitos de competência entre municípios e o Distrito Federal na instituição e na cobrança do ISS sobre os serviços previstos de planos de saúde, administração de cartões de crédito ou débito e leasing.

 


[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 5 ed., rev. e ampl. São Paulo: Noeses, 2013, p. 460-461.

Autores

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    é advogada, professora do Curso de Especialização em Direito Tributário do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito Tributário pelo Ibet.

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