Segunda Leitura

As ODSs da ONU e a poluição marítima: o que temos a ver com isto?

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

4 de outubro de 2020, 8h05

Spacca
O artigo 1, item 4, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, celebrada em Montego Bay, em 10 de dezembro de 1982,[i] registra que:

"poluição do meio marinho" significa a introdução pelo homem, direta ou indiretamente, de substâncias ou de energia no meio marinho, incluindo os estuários, sempre que a mesma provoque ou possa vir provocar efeitos nocivos, tais como danos aos recursos vivos e à vida marinha, riscos à saúde do homem, entrave às atividades marítimas, incluindo a pesca e as outras utilizações legítimas do mar, alteração da qualidade da água do mar, no que se refere à sua utilização, e deterioração dos locais de recreio.

A poluição é algo que só nos preocupa quando vemos, sofremos ou tememos. Por exemplo, o incêndio na Amazônia provoca reações na comunidade internacional porque é visto em vídeos e cria temor de consequências que atingiriam não apenas a população local, mas também residentes em países distantes.

A poluição do mar, à exceção daquela existente na costa litorânea, não é vista pela maioria da população. Geralmente ocorre a quilômetros do litoral, não causa revolta e seus efeitos são ignorados.

No entanto, nem por isso ela é menos importante. Afinal, “a imensa quantidade de substâncias lançadas nos oceanos produz o aparecimento de organismos que prejudicam o desenvolvimento da vida marinha e também comprometem o percentual de alimentos”.[ii] A explicação é singela, mas encerra graves consequências para a humanidade.

O ambiente marinho foi dividido pelo homem, para fins de uso e guarda. No Brasil a Lei 8.617/93 divide o território marítimo quatro zonas: 1) mar territorial, que é uma faixa de 12 milhas marítimas de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular; 2) zona contígua, uma faixa que se estende das 12 às 24 milhas marítimas; 3) zona econômica exclusiva, que consiste em uma faixa que se estende das 12 às 200 milhas marítimas; 4) plataforma continental, que compreende o leito e o subsolo das áreas submarinas que se estendem além do seu mar territorial.

Além destas zonas demarcadas, temos o alto mar, onde nenhum Estado pode invocar soberania, sendo, a todos, inclusive aos que não tem costa marítima, assegurada a liberdade de pesca e de navegação, entre outras (Convenção, artigo 86).

Vejamos agora as principais causas da poluição marinha. Ao pensar no tema vem-nos à mente aquela causada por vazamento de navios e embarcações de menor porte. No entanto, segundo Dario A. P. Freitas “cerca de 82% da poluição marítima decorre de atividades terrestres. Entre estas pode-se mencionar as emissões de esgoto, descargas industriais, agrotóxicos levados pelas águas das chuvas, acúmulo de lixo, poluição carregada pelos rios e pelo ar, provenientes dos veículos e indústrias, etc.[iii]

A estas causas acrescenta-se uma mais recente: a poluição por plásticos lançados às águas do mar. O plástico “provoca ferimentos nos animais marinhos que se entrelaçam nas peças maiores e confundem-no, aos pedaços mais pequenos, com comida. A ingestão de partículas de plástico pode impedi-los de digerir os alimentos normais e originar poluentes químicos tóxicos nos seus organismos”.[iv]

Os problemas causados pelos plásticos nas águas marítimas, que incluem a formação de uma ilha entre o Haway e a Califórnia que, segundo a Scientific Reports, tem uma área de cerca de mais de duas vezes o território da França[v], foi objeto de deliberação da União Europeia em 27 de março de 2019, com vigência a partir de 2021, que proíbe o uso de plásticos descartáveis se houver alternativas feitas de outros materiais no mercado e, caso não hajam,reduzir seu consumo em nível nacional, aumentar as exigências para a produção e rotulagem, criando, ainda novas obrigações para os produtores em relação à gestão e resíduos.[vi]

Dentro deste preocupante quadro surgiram em 2015 os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que devem ser cumpridos até 2030 e que “são um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade”.[vii]

Ressalte-se que o conceituado Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), lançou a Série Cadernos ODS, com minuciosa análise dos desafios e possibilidades de cumprimento de tais objetivos pelo Brasil.[viii] Eles constituem a base teórica das considerações aqui feitas

A poluição dos oceanos está prevista na ODS 14 que invoca a:

Conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável”.

A partir desta premissa básica, a ODS14 divide-se em 7 objetivos e mais 3 itens. Vejamos as que se mostram próximas da realidade brasileira.

O Objetivo 14.1 propõe que até 2025, se previna e reduza significativamente a poluição marinha de todos os tipos.O saneamento foi objeto da recente Lei 14.026/2020, que busca maior eficiência a esse relevante serviço. O turismo tem regras precisas e controle dos órgãos ambientais. Porém há duas variáveis consideradas no indicador da meta 14.1 a necessitar de providências: monitoramento da nossa longa costa marítima, com dados sobre o nível de eutrofização (processo de poluição que torna a água turva ou esverdeada) e densidade de detritos plásticos flutuantes. Aqui devem ser direcionados os esforços.

O Objetivo 14.2 fixa 2020 como prazo para que o Brasil possa gerir de forma sustentável e proteger os ecossistemas marinhos e costeiros. Segundo conclusão dos estudos do Ipea, é necessário implantar um sistema de monitoramento que passe a levantar os dados necessários para a mensuração do indicador original. É o que se tem a fazer.

O Objetivo 14.3 propõe minimizar e enfrentar os impactos da acidificação dos oceanos, que pode ser causada por formas diversas, como a utilização de motores que utilizam combustíveis fósseis, o desmatamento e a industrialização excessiva. Estas condutas provocam a absorção de dióxido de carbono (CO2) da atmosfera. Ocorre que isto é um fato não monitorado ao longo da extensa costa brasileira, o que torna difícil diminuir a acidez do oceano. Uma vez mais, reclama-se acompanhamento.

O Objetivo 14.4 é urgente. Propõe que até 2020, seja regularizada a pesca, acabando-se com a sobrepesca, com a pesca ilegal, não reportada (não informada ou informada erroneamente à autoridade) e não regulamentada. Por sua vez o Objetivo 14.6 ambiciona até 2020, proibir certas formas de subsídios à pesca, que contribuem para a sobrecapacidade e a sobrepesca, e eliminar os subsídios que contribuam para a pesca irregular. Finalmente o Objetivo 14 B visa proporcionar o acesso dos pescadores artesanais aos recursos marinhos e mercados.

A pesca é uma atividade econômica de grande importância, empregando milhares de pessoas que em grande parte trabalham por conta própria e na informalidade. Apesar de sua importância social e econômica, as informações disponíveis sobre a pesca marinha sugerem que esta passa por um processo de exaustão. O último boletim nacional de estatística pesqueira foi publicado em 2011.[ix]

Registre-se que a fiscalização, da zona costeira à plataforma continental, é deficiente. O Ibama não tem estrutura adequada. A Marinha de Guerra, que tem poderes de fiscalização (artigo 70, parágrafo 1º, da Lei 9.605/1998), não tem por vocação a proteção do meio ambiente. Já passou da hora de termos uma guarda costeira, com poderes de fiscalização ambiental, além de atividades contra o contrabando e o tráfico de drogas.

Neste particular é preciso que os financiamentos dos bancos e órgãos de investimentos fiquem restritos às companhias pesqueiras que atuem na legalidade e que revelem preocupações sociais e ambientais.

As demais metas da ODS 14 não guardam relação mais próxima com a nossa realidade, o que torne desnecessário comentá-las.

Exposta, assim, a situação da poluição marinha, os objetivos perseguidos pelas ODSs da ONU, vejamos o que nós temos a ver e o que podemos fazer para melhorar a situação existente. Óbvio que aqueles que detém posição de mando têm maiores possibilidades de agir, mas o dever é de todos, conforme artigo 225 da Constituição. Eis algumas formas de ação:

1) Divulgação e consciência das ODSs, pois elas pertencem e são do interesse de todos e não apenas da ONU;

2) Mudança de hábitos, reduzindo o consumo ao realmente necessário, rejeitando plásticos envolvendo produtos (p. ex., comprados em farmácias) e enviando mensagens às indústrias que se valem de invólucros enormes e desnecessários;

3) Educação Ambiental: lutar pela revogação do artigo 10, parágrafo 1º, da Lei 9.795/99, a fim de que meio ambiente seja uma matéria e não algo a ser dado por todos professores.

4) Criação da Guarda Costeira Nacional.

5) Restringir financiamentos e suspender subsídios àqueles que não adotam a sustentabilidade ambiental e social.

Façamos, cada um, o que está ao nosso alcance. Escolhamos parlamentares comprometidos e cobremos ações. Este é o nosso compromisso ético com as futuras gerações.

[i] A Convenção de Montego Bay foi internalizada na ordem jurídica brasileira através do Decreto 99.165/1990. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1990/decreto-99165-12-marco-1990-328535-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 02/10/2020.

[ii] Brasil Escola. Poluição marinha. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/poluicao-marinha.htm. Acesso em 30/9/2020.

[iii] FREITAS, Dario Almeida Passos de. Poluição Marítima. Legislação, doutrina e jurisprudência. Curitiba: Juruá,2009, p. 17.

[iv] Plástico nos oceanos: os factos, os efeitos e as novas regras da EU. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/news/pt/headlines/society/20181005STO15110/plastico-nos-oceanos-os-factos-os-efeitos-e-as-novas-regras-da-ue. Acesso em 2/10/2020.

[v] Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Meio-Ambiente/noticia/2018/03/ilha-de-lixo-no-oceano-pacifico-e-16-vezes-maior-do-que-se-imaginava.html

[vi] União Europeia aprova legislação para banir produtos plásticos descartáveis. Disponível em: https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/03/27/uniao-europeia-aprova-legislacao-para-banir-produtos-plasticos-descartaveis.ghtml. Acesso em 2/10/2020.

[vii] Organização das Nações Unidas. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. Acesso em 2/10/2020.

[viii] Ipea analisa situação do Brasil frente aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: ttps://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34865&Itemid=9.Acesso em 2/10/2020.

[ix] Disponível em: https://www.icmbio.gov.br/cepsul/images/stories/biblioteca/download/estatistica/est_2011_bol__bra.pdf. Acesso em 3/10/2020.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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