Processo Familiar

A família como bem jurídico, em sua "casa de morada"

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

4 de outubro de 2020, 10h14

A família é instituição básica e essencial que significando unidade social estruturante, há de ser protegida como um bem jurídico indivisível de seus integrantes. Importa, daí, reconhecer que a família em si mesma representa para os seus membros, o maior patrimônio dos que a constituem, merecendo, de consequência, a devida proteção integral.

Consabido que “a família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado” (artigo 17 CCR) e que o uso da letra da Constituição reclama a garantia da dignidade da pessoa humana a partir da família, cumpre observar que essa diretiva tem trabalhado com dados sensíveis em percepção construtiva de melhores aplicações, na doutrina e na jurisprudência.

Inegável que tenhamos, sempre, a dicção constitucional como fonte dialógica diante das novas realidades jurídicas das famílias, para a sua especial e devida proteção, conforme dispõe o artigo 226, caput, da Constituição. Mais ainda: quando programado que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram…” (artigo 226, parágrafo 8º, Constituição), tudo implica que reconheçamos, a cada assistência garantida, uma proteção representativa, a seu tempo e modo, de toda a unidade familiar.

A proteção aos diversos modelos de família significa que todas as terminologias “entidade familiar” não a diferenciam da “família matrimonial” em seu sentido de formação, importando inexistência de hierarquia ou de diferença de qualidades jurídicas entre as “formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico”(1). Neste sentido, a não hierarquização entre entidades familiares, consagrou-se com a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil que desequiparou, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros(2).

A proteção legal por uma igualdade de direitos e a adequada equivalência de responsabilidades dos cônjuges quanto ao casamento, durante o casamento e em caso de dissolução do mesmo, como preconiza o artigo 17.4, da Convenção de Costa Rica e o artigo 226, parágrafo 5º, da Constituição Federal, tem orientado a família como um bem jurídico monolítico e permanente. A tanto que “em caso de dissolução, serão adotadas disposições que assegurem a proteção necessária aos filhos, com base unicamente no interesse e conveniência dos mesmos”.

Dentre as muitas categorias jurídicas que envolvem a família, em seus preceitos jurídicos constitucionais, uma das mais importantes e presenciais no cotidiano das famílias diz respeito, por óbvio, à moradia.

No Econômico, (Oικονομικός) do grego Xenofonte (430 a.C.-355 a.C.), uma das mais importantes obras da Antiguidade, traduzida por Cícero, com a narrativa da vida doméstica e dos deveres da mulher dentro do lar, apresentam-se as primeiras fontes do direito de família (δικαίωμα να faília).

Ali a casa é o abrigo, é a habitação natural, a moradia compreendida pelo seu significado de segurança e de proteção, nos domínios da vida privada e em alcance ideal do bem estar da família.

Pois bem. Nessa esfera de conformidade, a casa é, sobremodo, o locus preciso onde a família desempenha as suas funções. Diante de tal liame existencial, fala-se com dicção telúrica e afetuosa da casa do avô ou da casa dos pais, servindo o “habitat” como um micro universo mais denso de indispensável solidez.

Assim também é a casa do casal, como sede da família nuclear, sedimentando a comunhão de vida que consolida o lar como a sua expressão determinante, no recinto interior das relações familiares: a mesa posta (subsistência) o sono noturno (repouso), a autoridade parental (poder familiar) e a assistência recíproca (segurança) consagram o ambiente de família, pelo convívio e solidariedade. É a “casa de morada” onde a família é sediada enquanto tal.

A casa de morada ganha importantes significantes jurídicos (i) como o lar conjugal na integridade de sua essência; (ii) como bem de família, em prol da constituição de um patrimônio invencível; e (iii) como o de moradia a implicar o direito real de habitação.

Vejamos, então:

1. A casa de morada
A proteção ao melhor significado da “casa de morada” tem ensejado uma adequada aplicação da proteção de impenhorabilidade do bem de família, como questão de relevo em termos de direitos fundamentais.

A casa familiar serve como bem de família, nos termos do artigo 1º da Lei 8.009/1990, para fins de impenhorabilidade, no caso de dívidas existentes. Impenhorabilidade oponível em qualquer processo de execução, salvo reduzidas hipóteses (artigo 3º), a exemplo dos débitos alimentares.

A tanto, antes de mais, retenham-se duas premissas básicas:

(i) que “a Lei 8.009/90 não retira o benefício do bem de família daqueles que possuem mais de um imóvel"(3);

(ii) que “é possível considerar impenhorável o imóvel que não é o único de propriedade da família, mas que serve de efetiva residência(4).

Assim, a melhor leitura da Lei 8.009/1990, feita pelo Superior Tribunal de Justiça, vem permitindo maior dignificação da família como fonte da dignidade das pessoas que a compõem, pela expressão valorativa do significado substancial da “casa de morada”.

De efeito, tem sido entendido que:

(i) o imóvel utilizado como residência é aquele onde “se estabelece uma família, centralizando suas atividades com ânimo de permanecer em caráter definitivo”. Ou seja, caracteriza-se por residencial e impenhorável o imóvel onde a família estabelece a sua comunidade de vida.

(ii) o imóvel residencial é impenhorável mesmo se a família tiver outros bens de menor valor.

(iii) não se deve levar em conta apenas o valor dos bens para decidir sobre a penhora, sem observar se efetivamente todos os bens são utilizados como residência, “mormente porque localizados em cidades diversas”(5).

Nesse passo, impende considerar nos fins de proteção da moradia e de sua impenhorabilidade, a relevância jurídica do imóvel que serve de “efetiva residência”, pouco importando a sua expressão financeira de menor ou de maior valor. O requisito da indispensabilidade da fixação de residência serve, de efeito, como ditame à correta aplicação do artigo 5º da Lei 8.009/1990.

No mais, a jurisprudência tem entendido, com expressivo avanço, que o bem de família permanece íntegro, mesmo que desfeita a união por separação ou morte de um dos cônjuges/companheiros, perseverando a impenhorabilidade sobre o imóvel residencial e, ainda, sobre aquele outro imóvel que venha servir de moradia ao parceiro separado.

De efeito, a viúva, ainda que more só, mormente na antiga casa do casal, acha-se protegida pela impenhorabilidade do seu imóvel residencial. (STJ – REsp 434.856-PR).

Essa extensão alcança, aliás, todo aquele que faça do imóvel sua residência, mesmo que seja solteiro (famílias singles). De fato, a interpretação do artigo 1º da Lei 8.009/90 tem revelado maior alcance, em seu escopo definitivo de proteção do direito à moradia. É impenhorável, por efeito do referido dispositivo, o imóvel em que resida, sozinho, o devedor celibatário (STJ – REsp 450.989-RJ).

Nesta ordem de decisões, resulta incontroverso que “o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas” (Súmula 364/STJ).

Interessante questão foi julgada, em 16 de junho de 2020, pela 3ª Turma do STJ, quando afastou a alienação fiduciária da parte do imóvel residencial pertencente à ex-companheira do devedor, à falta da inexistência de sua autorização para a prestação da garantia. No caso em exame, a empresa embora ciente da união estável, não se acautelou “e não exigiu a autorização de ambos os conviventes antes da celebração do negócio".

A decisão foi no sentido de “consolidar integralmente a propriedade do imóvel em favor da credora, mas resguardar a meação da ex-convivente que não anuiu com o negócio jurídico, a quem caberá a metade do produto da alienação do bem". Na hipótese, a “casa de morada”, que fora destinada integralmente à ex-companheira do devedor, na partilha por dissolução da união estável, veio ser consolidada em favor da credora.(6)

Lado outro, em 26 de maio de 2020, a 4ª Turma do STJ, sob a relatoria do ministro Marcos Buzzi, em examinando questão referente a julgado do tribunal “a quo” que permitira a penhora de parte do imóvel, por dívida decorrente da meação de bens partilhados no divórcio do casal e que entendeu aplicável ao caso, a exceção prevista no artigo 3º, II, da Lei 8.009/90, decidiu na forma seguinte:

(i) “O escopo da Lei 8.009/90 não é proteger o devedor contra suas dívidas, mas visa à proteção da entidade familiar no seu conceito mais amplo, motivo pelo qual as hipóteses de exceção à impenhorabilidade do bem de família, em virtude do seu caráter excepcional, devem ser interpretados restritivamente”;

(ii) “inviável, também, a penhora de fração do imóvel indivisível sob pena de desvirtuamento da proteção erigida pela Lei 8.009/90”.

A execução objetivava a quitação de dívida civil consistente no pagamento pela devedora, do montante atinente a 50% das parcelas do financiamento habitacional sobre as quais foi reconhecida a participação⁄contribuição do exequente. (07)

2. A locação intuito familiae
A locação de imóvel para uso residencial é celebrada intuito familiae, o que implica a citação da mulher do locatário para, em ação de despejo, querendo, também purgar a mora.

Embora sem previsão expressa na lei inquilinária, há de se verificar que a figura do locatário moroso, nem sempre estará mais residindo no imóvel, por separação de fato, e em casos que tais, caberá ao ex-cônjuge ou ex-convivente, ser chamado ao processo, para garantir a continuidade da locação, destinada à “casa da família”, com seus integrantes, podendo alguns deles serem filhos menores e do casal. Vezes acontece que o locatário inadimplente é citado no endereço profissional e queda-se inerte em desfavor da própria família.

3. O direito real de habitação
A seu turno, o instituto jurídico do direito real de habitação sobre a “casa de morada”, assegura moradia vitalícia ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, sobre o imóvel em que residia o casal, sendo daí a casa do casal perenizada enquanto um dos dois sobreviva.

A norma do artigo 1.831 do Código Civil garante o direito de moradia, independente do regime patrimonial de bens, “ainda que outros herdeiros passem a ter propriedade sobre o imóvel de residência do casal, em razão da transmissão hereditária” (STJ – REsp 1.273.222). De ver que o direito do cônjuge supérstite não se extinguirá, somente quando da contração de novas núpcias, certo ainda pela união estável, que mesmo que não altere o estado civil de viuvez, equivale ao casamento (STJ – REsp 1.617.6360).(8)

De igual latitude, o parágrafo único do artigo 7º da Lei 9.278/1996, de 10 de maio, regulando o parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição Federal, assegurou o direito real de habitação, ao companheiro sobrevivente, quando desfeita a união estável pelo evento morte.

O ministro Sidnei Benetti sufragou a tese de que o direito da casa do casal deve ser conferido ao cônjuge/companheiro sobrevivente, não apenas quando hajam descendentes comuns, como também quando concorrerem filhos exclusivos do de cujus (STJ – REsp 1.134.387). Esse direito real de habitação sobre imóvel estende-se, inclusive, à segunda família de um falecido que tenha filhos de uma primeira união.

4. O patrimônio familiar
A morada como patrimônio familiar tem exigido uma permanente construção jurisdicional. Assim é que outros julgados, assumem diretivas em prestigio ao instituto jurídico protetivo da família, a exemplo:

“É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família” (Súmula 486/STJ).

A casa do casal tem seu escopo jurídico mais defensivo, quando também é assegurado ao cônjuge ou companheiro que nela permaneça, em hipótese de deserção do lar pelo outro, o direito patrimonial sobre a totalidade do bem.

De efeito, o artigo 1240-A do Código Civil de 2002, introduzido pela Lei 12.424/2011, trata da usucapião por abandono do lar, denominada pela doutrina como usucapião familiar. É estabelecido o prazo de dois anos para aquisição individual por usucapião da propriedade imóvel (casa do casal) antes dividida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandona o lar. De notar que a aquisição dominial implicando a perda da meação decorrerá do abandono imotivado por dois anos contínuos.

Anota-se, noutra vertente, que aquele que abandona o lar, deixando, em consequência, de prover a subsistência da família poderá perder o direito à meação, por compensação dos débitos alimentares continuados. Uma equação lógica de que não poderá reclamar direitos materiais, ante o abandono material a que estiveram submetidos mulher e filhos.

Em julgado paradigma, a 8ª Câmara Cível do TJ-RS negou a determinação de partilha do imóvel do casal, reconhecendo que o abandono de casa, por tempo prolongado, pelo marido, que desviou, inclusive, capitais da família, retira-lhe o direito de dispor da meação. O tribunal confrontou o valor do bem com o cálculo do sustento que foi negado à mulher e aos filhos e reconheceu que estes seriam os credores. O imóvel foi adjudicado à mulher.

Reflita-se, então, que a casa do casal, desde a ideia grega de abrigo, tem o significado maior da família como um bem jurídico a reclamar sua proteção integral.

Em suma, leis realistas, uma doutrina de ressonância e, notadamente, julgados propulsores devem cuidar melhor da família. A família merece cuidados.

Referências:

(1) STF. ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05.05.2011; DJE 14.10.2011

(2) STF. RE 878.694, rel. Min. Roberto Barroso, j. 10.5. 2017, DJE 06.02.2018

(3) REsp. nº 787.165/RS, Rel. Ministro Hélio Quaglia Barbosa, 4ª Turma, julgado em 12/6/2007, DJ 6/8/2007

(4) REsp. 435.357/SP, Rel. Ministra Nancy Andrigui, 3ª Turma, julgado em 29/11/2002, DJ 03/02/2003;

(5) REsp. nº 1.608.415, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 02.08.2016

Web.:

https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201601173320&dt_publicacao=09/08/2016

(6) REsp. nº 1.608.415, Rel. Min. Nancy Andrigui, julgado em 16.06.2020. Web: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1942836&num_registro=201700661113&data=20200630&formato=PDF

(7) REsp. nº 1.862.925. Web: https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-eletronica-2020_258_capQuartaTurma.pdf

(8) Web: https://www.conjur.com.br/2019-out-24/uniao-estavel-morte-conjuge-cessa-direito-habitacao

(9) TJRS-8ª. CC., Apel. Cível nº 70.008.985.236, Rel. Des. Rui Portanova

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    é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

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