Estado eficiente

Cotas raciais são compatíveis com o liberalismo, diz advogado do Livres

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4 de outubro de 2020, 7h32

A decisão do Tribunal Superior Eleitoral de que candidatos negros terão direito à distribuição de verbas públicas para financiamento de campanha e tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão em patamares mínimos e proporcionais é muito importante para aumentar a representatividade desse grupo na política e para combater o racismo estrutural. A opinião é do advogado Irapuã Santana, que apresentou a consulta ao TSE em nome da deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) e da ONG Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro).

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Também coordenador do setorial Luís Gama, ligado ao grupo liberal Livres, o ex-assessor do ministro Luiz Fux, hoje presidente do Supremo Tribunal Federal, diz que o liberalismo é compatível com a questão das cotas. "A vertente do Livres não prega o Estado mínimo, mas o gasto racional de seu investimento." "Para a questão das cotas, é o mesmo raciocínio. Para o liberalismo, não basta a pessoa ter a liberdade de ser o que ela quiser, quando ela quiser e como ela quiser. É preciso que a pessoa tenha condições de se valer por si."

Sobre a legislação eleitoral, o TSE estabeleceu que a medida só valerá para a partir de 2022. Contudo, o STF decidiu que as novas regras já devem ser aplicadas nas eleições deste ano.

Aluno da segunda turma de cotistas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o advogado avalia que essa política pública ajudou a diminuir a desigualdade racial no meio jurídico. Mas diz que ainda há muito a ser feito e que os cursos de Direito não abordam adequadamente o assunto.

Em sua tese de doutorado na Uerj, Santana avaliou os incentivos sistêmicos ao acesso à Justiça no Brasil. Segundo ele, a raça é um obstáculo a isso, assim como a renda.

O advogado, além de assessor de Fux no STF e no TSE por quatro anos, foi orientado pelo ministro no doutorado.

Leia a entrevista:
ConJur — Existem 100 milhões de processos no Brasil, um para cada dois habitantes. O brasileiro gosta de litigar?
Irapuã Santana —
Apesar de termos muitos processos, o brasileiro não gosta de litigar. Temos que olhar para dois pontos. O primeiro ponto é enxergar quem são os maiores litigantes do país. Entre os dez maiores litigantes, seis são ligados ao Estado. Outro fator é que, na minha tese de doutorado, fiz um levantamento de pesquisa de opinião em que ficou demonstrado que pessoas que ganham até um salário mínimo suportariam um prejuízo de até R$ 1 mil antes de ingressar em juízo. E essa resistência é crescente de acordo com a faixa de renda — quanto maior o nível de suportar, maior a tolerância ao prejuízo que a pessoa tem. No questionário de 14 perguntas, duas eram justamente sobre isso. A primeira era "qual o valor do prejuízo que você suportaria antes de ingressar com uma ação?" E a segunda era "qual o nível de injustiça sofrida por você faria com que você ingressasse com uma ação no Judiciário?", para tentar quantificar a questão do dano moral. E mais da metade das pessoas falou que era ou uma injustiça muito relevante ou uma grande injustiça. Então as pessoas, na verdade, têm uma resistência a litigar.

ConJur — Quais que são as principais barreiras do acesso à Justiça no Brasil?
Irapuã Santana —
O próprio Judiciário se coloca como uma grande barreira para o jurisdicionado acessá-lo. A partir daí, temos a questão da linguagem, que é muito hermética, muito formal, muito técnica, acaba afastando as pessoas do Judiciário. Outro fator é uma ideia de que a pessoa pode sair dali presa. Então faz com que as pessoas tenham um pouco de medo do Poder Judiciário. Dentro disso, temos também a falta de confiança de que o Judiciário de fato vai resolver o problema daquela pessoa. Dentro desse questionário, eu coloquei algumas perguntas relativas a isso, para tentar entender mais ou menos como que as pessoas enxergam o Judiciário. Em um primeiro momento, eu perguntei se as pessoas entendem que o Judiciário, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça são importantes para a vida delas. Grande parte das pessoas falou que sim, que são importantes. Ao mesmo tempo, perguntei se elas se sentem protegidos por esse Poder Judiciário, se podem de fato confiar no Judiciário. E houve uma resposta oposta. Ao mesmo tempo que é muito importante, eles não se sentem protegidos por esses órgãos e entendem que não podem confiar no Judiciário. Eu inclusive pedi para as pessoas darem uma nota para o Poder Judiciário, e a média ficou em 4,36, de zero a 10. É uma nota muito baixa, que demonstra a falta de confiança na resolução dos conflitos.

ConJur — Como melhorar essa nota?
Irapuã Santana —
Há algumas formas de melhorar, que podem depender do Judiciário. Segmentar a jurisprudência é uma forma importante de conseguir pacificar essa desconfiança que a sociedade tem em relação ao Judiciário. O que acontece na prática é que, às vezes, uma pessoa entra com uma ação, o vizinho entra com o mesmo caso, um ganha, outro não. Isso acaba gerando esse tipo de desconfiança. Outro fator importante é tentar entender como o Judiciário pode produzir melhor. O Judiciário hoje em dia produz muito. Mas é preciso produzir com uma qualidade melhor, e com custo melhor também. O Judiciário custa mais ou menos 1,3, 1,4% do PIB. É um dos órgãos mais caros do mundo, se formos analisar comparativamente. No entanto, ele não tem esse nível de satisfação garantido na sociedade. A própria ideia de produtividade devia ser reformulada pelo Conselho Nacional de Justiça. Porque não basta produzir muito, é preciso produzir muito e produzir bem. E isso é para criar incentivos para que a própria Justiça possa responder às ações da mesma forma. O que acontece nos casos? Já aconteceu de o Supremo fixar uma tese de repercussão geral e seis meses depois a corte não quer aplicá-la. Isso passa uma mensagem para o restante da Justiça de que aquele precedente não vale nada. Se não vale, há insegurança jurídica. E a insegurança jurídica acaba acarretando esse tipo de resposta da própria sociedade. De outro lado, quando as pessoas não confiam no Judiciário, acabam recorrendo muito das decisões e, com isso, acabam sobrecarregando a Justiça.

Mas isso não depende só do Judiciário. Nós temos uma Constituição que promete tudo. O artigo 5º tem 78 incisos, então são 78 direitos fundamentais previstos. Assim, as pessoas podem exigir tudo do Estado através do Judiciário. Isso gera uma multiplicação de ações, de um jeito que fica muito difícil conseguir controlar. Então rever essa forma de atuação do Estado e seu tamanho também é importante.

ConJur — Qual é o papel da jurisprudência no acesso à Justiça?
Irapuã Santana —
A jurisprudência tem o papel de dar tratamento igualitário a casos semelhantes. Ela tem que dar uma resposta única para respostas que são iguais. E com isso ela acaba dando celeridade e acesso à Justiça. A jurisprudência precisa ser entendida como uma instituição. Não adianta mudar o entendimento da corte a cada nova composição do tribunal. A professora Tereza Arruda Alvim fala que uma decisão da década de 1980 é considerada muito recente na Inglaterra, por exemplo. E no Brasil há o problema de que se um ministro não concorda com o que o plenário adotou, ele decide monocraticamente não aplicar a tese. Isso é muito ruim para a instituição e para todo o sistema.

Falta um pouco de institucionalidade para as cortes superiores. É preciso entender que um determinado direito leva tempo para ser sedimentado. Apesar de divergir sobre determinado posicionamento, o juiz precisa arbitrar sobre o que foi decidido pelo plenário, pela instância superior. No caso, ele poderia até colocar que particularmente diverge disso, entretanto, a aplicação deve ser feita com base tese que foi fixada. O valor da jurisprudência é gigantesco, até para investimentos no Brasil, porque as empresas tentam calcular o risco que elas correm no mercado em que vão ingressar. É preciso haver credibilidade, e é uma coisa que não existe.

ConJur — O Código de Processo Civil de 2015 trouxe medidas para aumentar o poder da jurisprudência. Nesse sentido, o CPC facilitou o acesso à Justiça?
Irapuã Santana —
Sim. O CPC trouxe alguns mecanismos muito interessantes, como o incidente de resolução de demandas repetitivas, o recurso extraordinário repetitivo, o incidente da devolução de competência. E ele também trouxe a ideia de como cada magistrado deve se tornar um gestor da Justiça, com a ideia de produtividade no sentido econômico, da efetividade alocativa. O CPC de 2015 trouxe mecanismos muito bons para se lidar com o acesso à Justiça. A norma teve dois pilares principais: ter maior celeridade e maior segurança jurídica. Mas há exemplos de como o próprio tribunal às vezes acaba por tirar essa celeridade e não fomentar a segurança jurídica. Teve um precedente recente do STJ em que foi proferida uma decisão em recurso especial ou repetitivo e ali não se poderia discutir em sede de reclamação a aplicação dessa tese ditada dentro do STJ. Isso acaba por diminuir o acesso à Justiça. E, no acesso à Justiça, é preciso pensar não só na possibilidade de se entrar no Judiciário, mas na de se conseguir sair dele. Então, efetivamente ter uma resposta do Judiciário é importante para o acesso à Justiça.

No começo do CPC, há princípios que são extremamente importantes para isso. Há a questão da efetividade e do próprio princípio do acesso à Justiça. Dentro dessa perspectiva, há mecanismos que podem estabelecer maior igualdade entre as demandas. Tendo uma demanda fixada, em um segundo momento tem-se maior celeridade. Afinal, a partir do momento que você pode ingressar com uma ação, sua questão já vai estar decidida pelo STJ. Então o juiz de primeira instância concede uma tutela de evidência, que é outro mecanismo também muito interessante. E pela evidência, estabiliza a demanda. Ou seja, há o acesso à Justiça como porta de entrada e como porta de saída, já com a resposta do Judiciário.

ConJur — O CPC de 2015 também deu ênfase aos meios alternativos de resolução de conflitos, como mediação, conciliação e arbitragem. Como avalia os meios alternativos de resolução de conflitos? São boas maneiras de conciliar o acesso à Justiça com o combate à sobrecarga do Judiciário?
Irapuã Santana —
Com certeza. Também abordei isso na pesquisa empírica, com relação à maior ou menor inclinação das pessoas em admitir ou realizar um acordo. E mais de 60% das pessoas já entram no processo inclinadas a fazer um acordo. Elas não entram beligerantes, elas não querem guerra, elas querem simplesmente resolver o problema delas o quanto antes. Por dois motivos. Primeiro que a questão delas é resolver o problema de fato. Não é ganhar ou perder, é resolver o problema. E segundo, que elas não têm que ficar aguardando por um período prolongado de tempo o resultado final do processo.

Agora, é preciso também observar como essas mediações e conciliações são feitas. E no sentido de terminar logo aquela audiência ou realmente obter uma melhor solução do conflito para ambas as partes? A mediação e a conciliação precisam ser enxergadas como fins em si mesmas, e não objetos que vão servir para acabar ou para diminuir o volume de processos. Se isso for observado, é óbvio que haverá uma diminuição do número de processos.

ConJur — Quando alguém vai à Justiça, em que momento desiste da causa? É mais comum recorrer o máximo possível ou desistir após uma decisão negativa?
Irapuã Santana —
Na pesquisa, em um primeiro momento, eu perguntei: se for verificado que o juiz observou todos os argumentos e todas as provas do processo e, a partir deles, concluiu que você estava errado e deu o ganho de causa para a outra parte, você recorreria? Grande parte das pessoas disse que não recorreria, porque o trabalho foi bem feito e, portanto, não faz sentido recorrer. Mais adiante, fiz a seguinte afirmação: sabendo que o Judiciário ainda não sedimentou o tema da minha causa, eu recorrerei até não poder mais. E aí eu coloquei cinco variáveis: se concorda muito, concorda, não sei, discorda ou discorda muito. E aí teve uma virada de comportamento das pessoas. Eles enxergaram da seguinte forma: a partir do momento que o Judiciário não se decide ou não aplica devidamente o direito, eu vou ficar recorrendo. E vou tentar a sorte de ganhar, porque o trabalho não está sendo bem feito.

Então há uma necessidade de demonstração de que o trabalho está sendo bem feito para que a pessoa passe a confiar naquela resposta e a partir dali ela não venha a recorrer. Essa mudança de comportamento é interessante, porque, das pessoas que disseram que não recorreriam na pergunta anterior, 63% falaram na pergunta seguinte que passariam a recorrer até não poder mais. Isso quer dizer que 63% dos recursos não existiriam se tivéssemos uma jurisprudência solidificada e estável. E isso se traduz em alguns números bem interessantes e bem robustos. Quando nós observamos, por exemplo, o STJ, temos ali mais ou menos 242 mil recursos que sequer existiriam por conta disso. Quando fiz esse cálculo para o Supremo, vi que quase metade do acervo não existiria por conta desse tipo de razão para recorrer.

ConJur — O senhor menciona na sua tese que o professor Mauro Capelletti fala que a coletivização das demandas é um bom caminho para aumentar o acesso à Justiça. Como você avalia a coletivização das demandas no Brasil?
Irapuã Santana —
É até uma necessidade. Há duas hipóteses. A primeira é a do princípio da igualdade, de trazer a mesma conclusão para conflitos semelhantes. E aí há a repercussão geral no Supremo, o recurso especial repetitivo no STJ. A outra parte fica para a ideia das demandas que não têm individualmente um valor econômico significativo. O clássico exemplo é de uma conta de luz que erra o cálculo em R$ 2. Você não vai entrar na Justiça por conta de R$ 2, mas observando que esses R$ 2 aconteceram a um milhão de pessoas, eles já passam a ser R$ 2 milhões de reais. E aí seria interessante ter uma demanda coletiva, porque a empresa teve um lucro indevido de R$ 2 milhões. Então ter esse mecanismo de coletivização de demandas individuais é importante. É preciso também não depender especificamente do Ministério Público ou da Defensoria Pública para fazer isso.

ConJur — Os mais pobres têm acesso à Justiça efetivo no Brasil? Quais são os obstáculos que eles enfrentam?
Irapuã Santana —
Não têm. Quando falamos em acesso à Justiça, temos que perguntar: "Acesso à Justiça para quem?" Metade da população brasileira ganha até R$ 840. É gente que sai de casa às quatro, cinco horas da manhã e volta às 22h, para começar tudo de novo no dia seguinte. Em que momento essa pessoa vai ao Judiciário porque teve um problema de telefone, por exemplo? Não tem esse tempo. Eu defendo uma flexibilização sobre o critério da competência do lugar com relação ao domicílio. Deveria poder ser a casa da pessoa ou o trabalho. Porque muitas pessoas moram na periferia e passam o dia no seu trabalho, no centro. Então às vezes a pessoa ingressa com uma ação no centro ou nas zonas mais nobres, mas mora na periferia. E recebe uma decisão de incompetência por conta de morar longe. Isso é inviabilizar o acesso à Justiça. A pessoa não tem tempo de estar em casa, ela não vai perder um dia de trabalho para poder ingressar com uma ação. Quando se fala dessa população mais pobre, é preciso trazê-los para perto do Judiciário e transformá-lo em um ambiente mais acolhedor. Ele é extremamente formal, tem essa linguagem técnica, essa linguagem empolada, que afasta muito a população. E não tem TV Justiça que dê jeito, porque você assiste à TV Justiça e não entende nada do que eles estão falando. Tem até aquela piada que o juiz dá a sentença e o cliente pergunta ao advogado se ganhou ou se perdeu. A pessoa acaba não sabendo o que aconteceu. E isso é muito ruim. É preciso entender para quem se está falando, para quem se está prestando a tutela jurisdicional.

Outro ponto é essa questão da formalidade. Quando tratamos dos juizados especiais, tem a questão do formalismo, da simplicidade. Mas, ainda assim, existe toda uma carga formal que afasta as pessoas dali. A pessoa pode entrar de bermuda ou de chinelo, por exemplo. Esse tipo de coisa acaba inviabilizando um pouco o acesso das pessoas à Justiça.

Um ponto adicional é que é preciso investir nas Defensorias Públicas. A Defensoria Pública precisa ter uma abrangência grande, a ponto de também não inviabilizar o atendimento das pessoas. Porque a pessoa vai à Defensoria e, por falta de pessoal, por falta de verbas ou outras coisas, só consegue atendimento para não sei quanto tempo para frente.

ConJur — Há diferenças raciais no acesso à Justiça?
Irapuã Santana —
Ah, existem diferenças, sim. Há alguns exemplos sobre como o Judiciário se comporta com relação à parte racial. Na esfera criminal, uma juíza recentemente falou que uma pessoa deveria pertencer a uma organização criminosa em virtude da cor da sua pele. Teve um juiz federal que falou que religião de matriz africana não era uma religião, era seita, porque cultuavam vários deuses, e não um único deus. Temos casos de racismo que são transformados em crimes de injúria racial desde o momento da denúncia até a sentença. E, na esfera criminal, há condenações mais pesadas quando o réu é negro. Enfim, há indícios de que a Justiça não trata das pessoas da mesma forma por conta da sua cor da pele.

Então, normalmente, as respostas obtidas pelas pessoas negras são mais negativas do que as obtidas pelas pessoas brancas. E mesmo a observância de certos parâmetros processuais também não é realizada da mesma forma. Há uma inobservância de princípios básicos muito maior com relação à população negra do que em relação à população branca.

ConJur — O senhor é da segunda turma de cotistas da Uerj. Como foi a sua experiência e como avalia o impacto das cotas nas faculdades de Direito?
Irapuã Santana —
O impacto é gigantesco. Quando a gente ingressa na faculdade, abre-se uma nova visão para o mundo. Isso para todos os alunos, mas é mais impactante para quem não está acostumado ao melhor ensino. Há uma diferença de pensar muito grande. Você chega numa faculdade em que as pessoas têm um nível cultural muito mais elevado, já estão indo para a sua terceira língua, e a gente está capengando para aprender inglês. Fora que a gente costuma morar mais longe. Eu acordava às 4h da manhã para estar às 7h na Uerj.

Mas é uma experiência de sucesso por dois motivos. Primeiro que nós estamos efetivamente conseguindo colocar mais pessoas negras dentro das universidades. Quando eu comecei a estagiar, as pessoas me confundiam com evangélico ou com motorista, por usar terno ou estar de branco. E a gente quase não via outros negros nos tribunais. Hoje em dia é diferente, já é possível enxergar mais advogados negros, mais estagiários negros. É um ganho de capital humano muito grande. Isso nos leva um passo à frente dos nossos antepassados. E tem relação com o segundo ponto. No Brasil, o diploma ainda conta muito para se ter uma vida melhor. Então o fato de sermos os primeiros das nossas famílias a ingressar na faculdade já faz com que a gente consiga acessar melhores empregos e melhorar a renda de nossas famílias, ainda que a gente não tenha acesso aos melhores cargos disponíveis no mercado. Isso é importante falar: a situação melhorou bastante, mas o racismo institucional dentro dos escritórios de advocacia ainda é grande. Eles não nos colocam nesses grandes escritórios.

ConJur — O senhor é consultor do Livres. O movimento defende uma atuação mínima do Estado e a meritocracia. Isso é compatível com cotas raciais?
Irapuã Santana —
Às vezes entendemos que o liberalismo é incompatível com a questão das cotas. Na verdade, temos que lembrar que o liberalismo tem várias vertentes, e a vertente do Livres não prega o Estado mínimo, mas o gasto racional de seu investimento. Nós temos alguns exemplos bons dentro do próprio movimento. Um dos conselheiros acadêmicos é o Ricardo Paes de Barros, um dos pais do Bolsa Família. O Bolsa Família é um instrumento mínimo que foi criado inspirado nos ensinamentos do [economista norte-americano] Milton Friedman, que falava que ninguém sabe melhor o que é bom para si mesmo do que a própria pessoa. Então, em vez de o Estado te dar bolsa leite, bolsa gás, bolsa alguma coisa, ele dá o dinheiro para a pessoa, e ela vai se emancipar tomando as próprias decisões. O Bolsa Família, que é uma política assistencialista, é um sucesso. Inclusive, o governo que é de direita, não quer retirar o Bolsa Família, quer aumentar o assistencialismo — estamos vendo a questão do auxílio emergencial, que também é uma política liberal.

Para a questão das cotas, é o mesmo raciocínio. Para o liberalismo, não basta a pessoa ter a liberdade de ser o que ela quiser, quando ela quiser e como ela quiser. É preciso que a pessoa tenha condições de se valer por si. Então se a pessoa está na miséria, se tem uma força estrutural que a puxa para baixo, ela não consegue ter a liberdade que precisa. As cotas, como mecanismo de reequilíbrio, já se mostraram efetivas. Como mecanismo econômico, não se gasta mais dinheiro por causa das cotas, apenas se reservam vagas. E o Estado ajuda a melhorar o estilo de vida, emancipa a pessoa, para ela conseguir acessar esses espaços, conseguir exercer as suas liberdades dentro daqueles limites. Eu entendo que as cotas são completamente compatíveis com o liberalismo.

ConJur — O senhor também defende cotas para concursos públicos?
Irapuã Santana —
Defendo cotas em todos os lugares.

ConJur — O Tribunal Superior Eleitoral definiu, no fim de agosto, que candidatos negros terão direito à distribuição de verbas públicas para financiamento de campanha e tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão em patamares mínimos e proporcionais. O STF decidiu que a medida já deve valer para as eleições deste ano. No entanto, descartou a imposição de reserva de vagas nos partidos políticos para candidatos negros, nos mesmos termos do que ocorreu com as mulheres, que têm direito a 30%, por lei. Como avalia essa decisão?
Irapuã Santana —
 A decisão do TSE foi uma vitória imensa da comunidade negra. Eu fui o advogado que ingressou com essa consulta eleitoral em nome da [deputada federal pelo PT-RJ] Benedita da Silva. A gente desenvolveu essa tese a partir de três posicionamentos da jurisprudência. O primeiro foi o do financiamento público de campanhas, do Supremo. O segundo foi o incremento do investimento nas candidaturas femininas e o terceiro foi do TSE, que assegurou tempo de rádio e televisão para mulheres. A partir daí, eu conversei com o Frei Davi, que é o diretor executivo da Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro), uma ONG da qual eu também faço parte, como advogado voluntário. E achamos que era o momento de tentar avançar politicamente a pauta dos negros, de conseguir ter uma representatividade substantiva, uma representatividade maior, uma maior chance de se conseguir colocar candidaturas antirracistas no sistema. Eu fiz um estudo mostrando que quanto maior o cargo a ser disputado, menor o número de negros candidatos. Nós não conseguimos nem ser candidatos, quem dirá se eleger. E aí a justificativa que nós encontramos foi a questão da verba. Quanto maior o dinheiro investido, maior a possibilidade de você ter suas ideias ouvidas e maior a chance de as pessoas votarem em você. E o TSE deu essa decisão muito importante. Afinal, uma das formas de se combater o racismo estrutural é tentar mudar o sistema por dentro, trazer pessoas que possam combater o racismo a partir da organização de políticas públicas específicas.

ConJur — As faculdades de Direito abordam a questão do racismo adequadamente? Se não, como mudar isso?
Irapuã Santana —
As faculdades não abordam o assunto adequadamente. A gente não sabe quem foi Luiz Gama, por exemplo, um advogado negro ex-escravo que libertou mais de 500 pessoas escravizadas por meio de um conhecimento adquirido por si próprio. Ele foi autodidata. Ele é um ícone da abolição da escravatura, e as pessoas não o conhecem. Também não há professores negros nas universidades. Falta uma conscientização de que existem bons funcionários negros no mercado e que eles podem, sim, servir de inspiração para os seus alunos, mostrar que é possível vencer através dos estudos. Talvez fosse interessante uma política afirmativa interna das faculdades para trazer esse outro olhar para o Direito e, a partir daí, promover palestras, cursos ou matérias eletivas voltados para a questão racial.

Até por conta disso, eu organizei um curso de advocacia racial junto à Educafro. É um curso que dura três meses e busca formar negros e negras ou brancos simpatizantes, que apoiam a causa, para advogar em questões raciais. No curso, nós abordamos temas de processo civil, como fazer peças específicas, como estratificar os assuntos; de Direito Penal, a diferença entre racismo e injúria; de processo penal, como auto de resistência e violência contra a mulher. Os alunos saem do curso conseguindo advogar em questões tanto individuais como no plano coletivo. Muitas vezes temos trabalhado na Educafro com essas pessoas como voluntárias, para poder fomentar políticas públicas e batalhar por um país um pouco menos racista e mais igualitário.

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