Observatório Constitucional

Sobre federalismo e equipamentos de monitoramento eletrônico

Autor

  • Marcelo Casseb Continentino

    é doutor em Direito pela UnB/Università degli Studi di Firenze professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa procurador do estado de Pernambuco advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

3 de outubro de 2020, 8h01

Chegará em breve ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal mais uma questão que põe em discussão o federalismo no Brasil. Trata-se da iniciativa legislativa de alguns Estados de regulamentarem a utilização dos instrumentos de monitoramento eletrônicos de condenados, popularmente conhecidos como "tornozeleiras eletrônicas", para estabelecer-se o dever do preso de ressarcir financeiramente o Estado em face da despesa decorrente de sua utilização.

A controvérsia constitucional insere-se no campo de relativa (in)definição sobre os limites das competências constitucionais da União e dos Estados; em outras palavras, tratar-se-ia de competência privativa da União por envolver matéria pertinente ao Direito Penal, ao Processual Penal e à execução penal nos termos do artigo 22, I, da CF/88 ou, ao invés, cuidar-se-ia de matéria da alçada concorrente de União e Estados por ser assunto relacionado ao Direito Penitenciário, conforme artigo 24, I, da CF/88?

Eis mais uma daquelas questões para as quais o Direito Constitucional, tampouco a Constituição Federal, oferece resposta pronta e definitiva. Antes, a discussão sugere a forma como o princípio federativo remete o sistema jurídico-político a um processo dinâmico de constante tensão normativa entre Estados e União sobre a esfera própria de cada um dos entes federativos.

Ceará, Santa Catarina e Sergipe agrupam-se entre os Estados que entenderam ser de sua respectiva competência legislativa dispor sobre requisitos para utilização de tornozeleiras eletrônicas, prevendo o dever do preso de ressarcir financeiramente o Estado pelas despesas inerentes ao uso dos equipamentos. Foram editadas a Lei nº 8.658, de 24 de janeiro de 2020, de Sergipe, a Lei nº 16.881, de 22 de maio de 2019, do Ceará, e a Lei nº 17.954, de 10 de julho de 2020, de Santa Catarina. Há, contudo, detalhes que as distinguem entre si.

No Ceará, a compensação financeira se dá por ocasião da instalação do monitoramento eletrônico, isto é, o preso somente terá direito à tornozeleira após comprovar o pagamento. No Mato Grosso, atribui-se ao condenado o dever de arcar com as despesas de aquisição e manutenção do equipamento enquanto dele fizer uso, condicionando-se igualmente sua instalação à comprovação do pagamento. Em Santa Catarina, adotou-se sistemática diferente: durante o período em que estiver sob o regime de monitoração eletrônica, caberá ao condenado conservar o aparelho de fiscalização em perfeita condição, responsabilizando-se pelo devido ressarcimento em caso de dano ou avaria.

Outros Estados assumiram orientações distintas. No Espírito Santo (Mensagem nº 162/2019, em que expõe as razões de veto total ao PL 323/2019) e no Mato Grosso do Sul, projetos de lei semelhantes foram vetados pelos governadores, com base no entendimento de que somente lei federal poderia tratar de tema concernente à esfera dos deveres do condenado, que se insere no âmbito normativo da legislação penal e processual penal.

Também no Estado de Pernambuco houve iniciativa parlamentar para acrescer ao rol de deveres do condenado aquele de proceder ao ressarcimento financeiro pelo uso da tornozeleira eletrônica. Contudo, os Projetos de Lei nº 394 e 439/2019, que, alterando o Código Penitenciário do Estado de Pernambuco, autorizariam a cobrança pela sua utilização proporcional ao tempo, foram vetados pelo governador do Estado. Na Mensagem nº 56, de 25 de setembro de 2020, encaminhada à Assembleia Legislativa do Estado, justificou-se, de igual modo, que a matéria se insere no âmbito do direito penal e processual penal, portanto pertencente à competência privativa da União.

A matéria do monitoramento eletrônico reveste-se de um espectro normativo que transborda os limites dos interesses regionais dos Estados e meramente penitenciário (artigo 24, I, CF/88). Trata-se de matéria de interesse nacional, porque somente um deve ser o estatuto jurídico do preso independentemente de onde se esteja a cumprir a pena.

Tanto é que o regime jurídico do monitoramento eletrônico está regulamentado pela Lei Federal nº 7.210 (Lei de Execução Penal – LEP), de 11 de julho de 1984, em seção específica (artigos 146-A a 146-D). No artigo 146-C, inclusive, fixou-se o rol de deveres (e sanções) a que está submetido quem é judicialmente autorizado a utilizar o equipamento de monitoramento. Entre eles, destaca-se o dever de zelar, de receber visitas técnicas e de não violá-los ou adulterá-los. A pena pelo descumprimento dessas obrigações, como se infere do parágrafo único do artigo 146-C, é severa: revogação da autorização, devendo o condenado voltar às dependências prisionais.

Isso importa concluir que pessoas condenadas jamais poderiam ser obrigadas à referida compensação financeira? Não.

Deve-se destacar que, no plano federal, está em trâmite projeto de lei (PLS 310/2016, de autoria do senador Paulo Bauer) já aprovado pelo Senado Federal e em discussão na Câmara dos Deputados (PL nº 8806/2017), em que se atribui ao preso o dever de arcar com as despesas do monitoramento eletrônico. A proposta pretende alterar a LEP, em seu artigo 29, § 1º, "d", para autorizar o desconto sobre o valor do trabalho remunerado auferido pelo preso. Vê-se que a proposta federal tem viés distinto, o qual não se reveste do mesmo teor punitivo ao condenado daquelas leis estaduais acima referidas.

Nova pergunta, então, se coloca: seria razoável cobrar-se do preso, por lei federal, a quantia correspondente ao uso/aquisição da tornozeleira eletrônica?

A resposta deve ser oferecida a partir da discussão e da definição das diretrizes de política criminal e penitenciário em âmbito nacional. Essas diretrizes políticas devem ser seguidas uniformemente em todos os rincões deste país, especialmente porque estão intrinsecamente relacionadas à meta da "descarcerização" e racionalização do poder punitivo e, sobretudo, ao princípio da dignidade da pessoa humana. Criar condicionamentos econômicos ao reconhecimento do direito subjetivo do condenado à utilização de monitoramento eletrônico, isso é importante ressaltar, configura severa restrição à esfera de suas liberdades individuais.

É certo que, do ponto de vista das diretrizes políticas criminais e penitenciárias, é discutível a razoabilidade da imposição do dever de compensação financeira pelo condenado, porém parece não subsistirem dúvidas de que a matéria diz respeito ao interesse de toda a comunidade. De todo o país, e não apenas de alguns Estados.

A considerar o princípio da predominância do interesse com base no qual as competências legislativas foram traçadas reservando-se privativamente à União determinadas matérias cuja relevância, dimensão ou significação o legislador constituinte quis estender a todos os brasileiros sem qualquer distinção, o que na maior parte das vezes exige um esforço de reconstrução história do federalismo brasileiro para seu delineamento, conforme reconhecido diversas vezes pelo Supremo Tribunal Federal, é inequívoco que a compensação financeira afeta a esfera privada dos direitos e deveres da pessoa condenada judicialmente, somente podendo ser tratada por lei federal.

Ressalte-se que, por mais que haja um impacto financeiro positivo que pudesse indicar tratar-se de assunto da esfera da autonomia administrativa dos Estados, não se pode olvidar que eventuais leis estaduais, sobretudo aquelas condicionadoras da utilização do monitoramento eletrônico ao prévio pagamento pelo condenado beneficiário da medida, afetam restritivamente a esfera privada do condenado, na medida em que, em caso de não pagamento, ele sofrerá agravamento em seu estatuto individual da liberdade. E com um custo financeiro ainda maior para o Estado.

Portanto, a compensação financeira pelo uso de equipamentos de monitoração eletrônica pelo condenado deve ser tratada como questão de política criminal e penitenciário de importância nacional, dada a ampla significação política da matéria e sensível repercussão no estatuto pessoal das liberdades fundamentais da pessoa do condenado, não devendo se submeter regulamentações diversas de cada um dos entes federativos.

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    é procurador do Estado de Pernambuco, doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)/Università degli Studi di Firenze, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco (FCAP/UPE) e do programa de pós-graduação em Direito (mestrado) da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa) e sócio efetivo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

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