Opinião

O discurso e a prática na nova gestão do ministro Luiz Fux

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3 de outubro de 2020, 17h04

O ministro Luiz Fux afirmou em seu recente discurso de posse como presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça que pautaria sua atuação em cinco eixos. Entre eles, dois chamam a atenção neste momento: proteção aos direitos humanos e segurança jurídica.

Sobre o segundo eixo, em suas palavras, a "preocupação desta gestão que se inicia é a de que o Poder Judiciário brasileiro atue para proporcionar a segurança jurídica necessária para a estabilidade e prosperidade do país".

No entanto, é sabido que o discurso nem sempre anda no mesmo compasso que a prática e isso ficou evidente com o primeiro ato oficial de Luiz Fux na presidência do CNJ.

O ministro alterou a Recomendação nº 62 do CNJ, que tem por objetivo a adoção de medidas de prevenção à propagação da infecção pelo novo coronavírus no âmbito dos sistemas de Justiça penal e socioeducativo.

Provavelmente para sinalizar que cumpria outro eixo que elencou em seu discurso — o de combate à corrupção, ao crime organizado e à lavagem de dinheiro —, limitou a possibilidade de aplicação das medidas previstas na recomendação do conselho. Agora não deverão ser aplicadas a pessoas condenadas por crimes contra a Administração Pública (entre eles, o de corrupção) e por crimes previstos na Lei de Lavagem de Capitais, bem como na Lei de Organizações Criminosas.

A Recomendação nº 62 do CNJ orienta os magistrados para que considerem reavaliar prisões provisórias (especialmente de pessoas em grupos de risco ou em estabelecimentos com condições impróprias), suspensão de apresentação periódica ao juízo para cumprimento de medidas cautelares ou regime aberto, excepcionalidade na decretação de novas prisões preventivas, saída antecipada de regimes fechado e semiaberto (aos réus que cumprem pena definitiva, especialmente, de grupo de risco ou em estabelecimento impróprio), analisar a possibilidade de prorrogação do prazo de retorno das saídas temporárias, concessão de prisões domiciliares para pessoas que cumprem regime aberto, semiaberto e para pessoas com suspeita ou diagnóstico de infecção.

Enfim, recomenda aos magistrados que se atentem às condições de saúde dos detentos e dos estabelecimentos, evitando superlotação nos presídios e contaminação em massa. São medidas de saúde tanto para os custodiados, quando para todas as pessoas que trabalham nas penitenciárias (e suas famílias), e se amparam no princípio da humanidade das penas — corolário da dignidade da pessoa humana.

Ocorre que a sua recente alteração, que parece mais comprometida com a opinião pública do que com a prevenção à propagação do coronavírus, viola frontalmente dois dos cinco eixos de gestão declarados pelo ministro Fux: gera notória insegurança jurídica e atenta contra os direitos humanos.

Explicamos.

Na nova redação, a limitação foi feita nos seguintes moldes: as medidas previstas "não se aplicam às pessoas condenadas por crimes previstos" na legislação já mencionada neste artigo. No entanto, as medidas que a alteração ensejou reformar tratam tanto de execução de pena (réus condenados com trânsito em julgado), quanto para réus que ainda respondem processos criminais, sem condenação transitada em julgado (o que é o caso das medidas cautelares).

Ou seja, na redação do ministro Fux, a limitação da aplicação das medidas incidiria apenas às pessoas já condenadas, mas, ao mesmo tempo, deixa expressa que é aplicável àquelas hipóteses que versam sobre medidas cautelares — típicas da fase de conhecimento do processo.

Sim, é confuso. E justamente por isso que gera uma insegurança jurídica tremenda, ainda mais quando as recomendações do CNJ, embora não tenham caráter vinculante servem de importante fundamento para pedidos de habeas corpus que visam cessar ilegalidades em curso.

Com essa alteração, inúmeras interpretações possíveis poderão surgir. Será que irão propor analogia in malem partem (vedada pela legislação brasileira) para dizer que a Recomendação nº 62 do CNJ, após as alterações de Fux, não vale para todos os investigados e acusados de cometimento de algum dos crimes elencados pelo ministro? A redação atual diz, claramente, condenado, não acusado.

Ou será que réus condenados por esses crimes em outros processos estarão sujeitos à limitação, ainda que o processo em que foi determinada a medida cautelar nada tenha a ver? Acreditamos que não, afinal, não pode outra condenação alheia ao processo servir de fundamentação para medidas cautelares.

A não ser que entendam que a limitação apenas passará a valer a partir do momento em que haja uma condenação de primeira instância no processo no qual foi decretada a cautelar. É mais razoável esse entendimento, no entanto a condenação ainda não transitada em julgado não produz seus efeitos, portanto não se sustenta.

Ante todos os obstáculos que se apresentam às possíveis interpretações, parece restar apenas o entendimento de que a limitação incluída pelo novo presidente do CNJ não deverá ser aplicada quando se tratar de processo em fase de conhecimento.

De todo modo, é evidente que, com essa multiplicidade de interpretações possíveis e conflitantes, a redação proposta por Fux acarretará imensa insegurança jurídica.

Porém, não é apenas em relação à busca por segurança jurídica que se verifica uma clara incompatibilidade com o discurso. O mesmo ocorre quanto à pretensão de defesa dos direitos humanos.

Com efeito, tem-se que as medidas recomendadas anteriormente pelo CNJ versam, estritamente, sobre saúde pública. Trata-se de um cuidado com o custodiado, mas também com todos os funcionários do sistema carcerário e suas famílias. Um exemplo disso é a recomendação, já mencionada, de que se analise a viabilidade de concessão de prisão domiciliar aos presos diagnosticados com Covid-19.

O que ocorreu com a alteração é simples: o recém-empossado presidente do CNJ selecionou, ele próprio, os crimes que considera graves o suficiente para que haja uma relativização dos direitos fundamentais.

Assim, para os crimes que o ministro elencou não haverá, nesse momento de grave crise sanitária, a necessária atenção redobrada com a saúde e integridade física dos custodiados e de todos os trabalhadores do sistema penitenciário. Isso, lamentavelmente, coloca a vida de muitos em risco.

O que parece não ter sido considerado é que, neste momento, o cuidado com o próximo é, também, o cuidado com si próprio.

A pretensão de combater o crime organizado, a corrupção e a lavagem de capitais jamais poderá justificar o descaso com vidas que são, em última análise, responsabilidade do Estado que as mantém custodiadas.

O já mencionado princípio da humanidade das penas deve ser respeitado enquanto desdobramento do princípio da dignidade humana. Ou senão, estará a negar a dignidade do homem, o que é, no mínimo, incompatível com um discurso de proteção dos direitos humanos.

Para além disso, essa posição remonta a uma funcionalidade do direito de punir estatal típica dos tempos medievais: reduz a função da pena criminal a uma mera vingança pública, que anseia por ver apodrecer na cadeia quem lá está em razão de supostos crimes a que se julga indignos de direitos.

Enfim, o discurso e a prática não se confundem nesse início de gestão de Luiz Fux na presidência do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça.

Esse descompasso já era de todo esperado, ao menos no que diz respeito ao problema do sistema penitenciário brasileiro durante a pandemia do novo coronavírus. Isso porque a limitação proposta pelo ministro vem em consonância com posição manifestada por ele em artigo publicado em 10 de abril no jornal O Estado de São Paulo. Para ele: "Coronavírus não é Habeas Corpus".

Contudo, se o Estado — que Luiz Fux representa enquanto presidente de um de seus três poderes — não é capaz de zelar por condições sanitárias e de saúde mínimas no cárcere, deve, em momento crítico como o atual (com mais de 140 mil mortes no país em razão da doença), proporcionar soluções que, de forma eficaz, resguardem a integridade física e a vida de seus custodiados e dos servidores do sistema penitenciário. Coronavírus só não é Habeas Corpus se o Estado der condições mínimas para a permanência destes indivíduos no cárcere.

Os direitos humanos se estendem a todos, e não apenas aos que o presidente do CNJ entende dignos deles. Cuidemos para que a opinião pública não balize a aplicação do Direito.

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