Limite Penal

Quando a tecnologia pode evitar abusos na aplicação da pena

Autores

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Keity Saboya

    é juíza no Rio Grande do Norte doutora em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora de Direito Penal na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

  • Elias Jacob de Menezes Neto

    é doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e professor efetivo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

2 de outubro de 2020, 8h00

As pesquisas com dados em matéria penal apresentam resultados para além da mera opinião. Em recente investigação empírica intitulada "Caleidoscópio Penal",[1] coordenada por pesquisadores do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, foram sistematizados dados estatísticos de sentenças condenatórias proferidas nos últimos 13 anos pela Justiça Estadual do Rio Grande do Norte, com enfoque especial na aplicação de pena.

Spacca
De forma paradoxal, os números revelados pela pesquisa "Caleidoscópio Penal" indicam proximidade com o discurso político e midiático de que há "bandidos a menos levando terror à população".[2] A pesquisa demonstrou que, a despeito do avanço do número de presos no Brasil[3] e, mais ainda, do "pensamento mágico"[4] que tem permeado as inúmeras reformas penais e processuais penais implementadas nas últimas décadas,[5] tendo em vista a média quantitativa e qualitativa da pena definitiva aplicadas no dataset estudado, as estatísticas indicam que os apenados não aparentam ser "criminosos perigosos e violentos, mas vulgares condenados por negócios com drogas, furto, roubo ou simples atentados à ordem pública".[6]

Nesse pórtico, há de ser destacado que, em mais de 70% das condenações, o regime inicial de cumprimento de pena imposto foi o aberto ou o semiaberto, cominado para crimes de pequena e de média gravidade, respectivamente. Além do mais, a agravante da reincidência foi aplicada em apenas em 14,5% das sentenças estudadas (IC95% = 10,47-20,47%).

Reforçando a paranoia coletiva do medo e da insegurança causados pela violência urbana, a qual se utiliza do Direito Penal, não raramente, como solo ratio para solucionar os conflitos sociais, a pesquisa expressa, de forma significativa, que o processo de criminalização em curso, ao que parece, ainda não conseguiu capturar  os bandidos perigosos do imaginário social. Isso porque, em 83% das sentenças pesquisadas, a pena definitiva fixada foi de reclusão. E, em metade desses casos, a quantidade média das penas aplicadas foi de até 1.200 dias, ou seja, inferiores a 4 anos de reclusão.

Levando-se em consideração que, nos termos do artigo 28-A do Código de Processo Penal, caberia a proposição de acordo de não-persecução penal, havendo confissão formal da prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, verificou-se, ademais, que grande parte das ações penais que tiveram a pretensão processual acusatória julgada procedente não teria mais razão de ser. Realmente, não é representativa de surpresas a confirmação empírica da seletividade punitiva[7] ou, talvez, até mesmo, da patologia social denominada "aporofobia"[8] revelada na pesquisa "Caleidoscópio Penal": 70% da amostra estudada (IC95%: 65-75%) correspondem a condenações penais relacionadas a crimes patrimoniais, drogas e armas.

Como se sabe, há alguns anos, desde a Resolução CNMP 181/2017, que serviu de base para o texto novel artigo 28-A, introduzido no Código de Processo Penal pela Lei 13.964/2019, crimes como furto simples, furto qualificado, posse, porte, transporte ou guarda de arma de uso proibido (Lei 10.823/2006) e, inclusive, tráfico ilícito de drogas na sua forma privilegiada, admitem, em tese, acordo de não-persecução penal.

Sentenças analisadas de acordo com a classificação do tipo de crime 

Interessante, ainda, ser ressaltada que, ressai do conjunto de dados sistematizados  pela pesquisa, a presença de espaços de indeterminação, abstração e generalidade, em especial imprecisão conceitual,[9] como também de violação ao princípio da secularização e do ne bis in idem, pela renovação de valoração aos mesmos fatos, com algumas doses de arbitrariedade,[10] quando da individualização judicial da pena.

Por ocasião da análise das circunstâncias judiciais que mais influenciaram os magistrados na determinação da pena-base, ou seja, que foram mais condicionantes na gradação da pena, a pesquisa evidenciou que a valoração negativa da culpabilidade, em que pese se fazer presente em 32% das sentenças analisadas, nem sempre foi valorada em razão de "elementos concretos aptos a justificar a negativação de tal circunstância".[11] As demais circunstâncias judiciais de individualização da pena-base foram valoradas em percentuais que variaram de 12,7% a 22% das sentenças examinadas, conforme ilustrado adiante.

Percentual de sentenças com valoração das circunstâncias judiciais nas sentenças criminais

Da análise desses indicadores, sobressaiu a necessidade já indicada no PLS 236/2012, em trâmite no Senado, que cuida do projeto de reforma do Código Penal, no sentido de serem excluídas as circunstâncias judiciais subjetivas de individualização da pena, dado o constante abuso argumentativo.[12]

Nesse contexto, corroborando a imprescindibilidade de um maior grau de conformação do processo de aplicação de pena ao texto constitucional, são bem ilustrativas algumas valorações para o aumento da pena-base encontradas na pesquisa, tendo como substrato a circunstância judicial da conduta social, nos seguintes termos: "é reprovável, uma vez que o próprio acusado declarou, em seu interrogatório, ser usuário de drogas ilícitas"[13] e é desfavorável por possuir "vida desregrada". Seguindo a mesma tônica, ainda quanto à circunstância judicial da conduta social, como também da personalidade, foram observadas, verbi gratia, as seguintes decisões, respectivamente: "há registros que o acusado é acostumado a praticar crimes" e que o acusado "demonstra ser pessoa afeita à prática de crimes".

Por fim, como maneira de contribuir com o aprimoramento do processo de individualização da pena, por meio de maiores controles racionais e estabelecimento de critérios menos porosos, sugere-se o desenvolvimento de algoritmo de processamento de linguagem natural adaptável ao Processo Judicial eletrônico (PJe), de forma colaborativa, sem pretensão de substituir a interpretação dos fatos e do Direito pelo magistrado e na conformidade do §1º, do artigo 23 da Resolução 332/20, do CNJ.

Aliás, apresentamos projeto ao CNJ via UFRN e Univali. Com a modelagem, por ocasião da elaboração da sentença ou do acórdão, em cumprimento ao que dispõe o artigo 927 do CPC, a ferramenta de inteligência artificial mencionada poderia colaborar com o julgador, indicando-o se aquilo que é valorado como circunstância judicial para a fixação da pena (artigo 59, caput, do Código Penal) estaria em conformidade ou em desconformidade com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. Seria uma forma de contenção aos abusos. Enfim, o mundo da tecnologia pode auxiliar[14], em muito, diante da constatação dos reiterados abusos verificados no contexto da pesquisa indicada.


[1] A pesquisa “Caleidoscópio Penal”, do Grupo de Pesquisa “Além da Pena”, coordenada pela Professora Keity Saboya (UFRN) e pelo Professor Elias Jacob (UFRN), teve como universo um total de 3.350 “Cadernos Judiciais” publicados no Diário de Justiça Eletrônico (DJe) do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN), entre o terceiro trimestre de 2007 e o primeiro trimestre de 2020 que atenderam aos critérios de inclusão da pesquisa, quais sejam, sentenças e decisões publicadas em referido período que continham a expressão “Ação Penal” nas publicações do DJe e disponibilizadas no sistema e-SAJ. Trata-se do número total de publicações disponibilizadas eletronicamente até o primeiro trimestre de 2020. Na metodologia para triagem ou filtragem desses dados, utilizaram-se expressões regulares a fim de capturar os números de processos judiciais que tiveram publicação identificada como “Ação Penal” pelo TJRN. Assim, após deduplicação e tratamento das informações supramencionadas, obteve-se o número de 53.865 ações penais válidas com sentenças ou decisões interlocutórias publicadas no período indicado – terceiro trimestre de 2007 e o primeiro trimestre de 2020. Considerando a população detectada, utilizou-se fórmula de cálculo do tamanho de uma amostra aleatória com erro amostral de até 5% e nível de confiança de 95%, estimando-se a heterogeneidade da população no maior grau possível, em virtude da ausência de elementos que possibilitassem inferi-la mais precisamente. Nesses termos, o tamanho da amostra calculada foi de 382 processos, escolhidos aleatoriamente dentre a população, para representar o quantitativo de condenações criminais proferidas pelos juízos criminais de primeira instância do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Norte. Para selecionar e examinar a amostra, cinco pesquisadores foram capacitados para padronizar os procedimentos de análise – os advogados Gabriel Souza, Gefferson Macedo, Lorena Fernandes, Natália Cunha Lima e Vinícius Marques. Eles realizaram a consulta de sentenças penais condenatórias e extraíram dados dos respectivos dispositivos legais cuja violação foi imputada aos réus. Foram excluídos da pesquisa os processos cujas sentenças não estavam publicadas no sistema eletrônico e-Saj, sendo substituídos por outros processos também escolhidos de forma aleatória. Ao final, foram examinadas 387 sentenças condenatórias. SABOYA, Keity; MENEZES NETO, Elias Jacob. Pesquisa empírica e dados estatísticos relativos às sentenças criminais da Justiça Estadual do Rio Grande do Norte – 2007 a 2020”. Grupo de Pesquisa “Além da Pena” do Departamento de Direito Público, Centro Social de Ciências Aplicadas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2020 (em fase de pré-publicação).

[2] Disponível em: <https://www.oantagonista.com/brasil/bolsonaro-bandidos-a-menos-levando-terror-a-populacao/>. Acesso em: 10 set. 2020.

[3] De acordo com os números do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), divulgados em fevereiro deste ano, “o Brasil possui uma população prisional de 773.151 pessoas privadas de liberdade em todos os regimes. Caso sejam analisados presos custodiados apenas em unidades prisionais, sem contar delegacias, o país detém 758.676 presos”. “O percentual de presos provisórios (sem uma condenação) manteve-se estável em aproximadamente 33%. O crescimento da população carcerária […] do último semestre de 2018 para o primeiro de 2019 foi de 3,89%”. Disponível em: <https://www.gov.br/pt-br/noticias/justica-e-seguranca/2020/02/dados-sobre-populacao-carceraria-do-brasil-sao-atualizados>. Acesso em: 25 set. 2020.

[4] Em evento promovido pelo Conselho Federal da OAB, Eugenio Raúl Zaffaroni disse que a “criação de tipos penais é volta ao pensamento mágico. […] homens pré-históricos desenhavam na parede das cavernas o animal que queriam caçar como forma de aprisioná-lo. Ou seja, tendo a imagem, achavam que tinham também o animal. ‘Agora não desenhamos no muro da caverna, escrevemos a lei. E quando temos o tipo penal publicado no Diário Oficial achamos que temos o fenômeno’”. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-out-23/criacao-tipos-penais-volta-pensamento-magico-zaffaroni>. Acesso em: 25 set. 2020.

[5] Acerca do questionável “Pacote Anticrime”, em seu discurso de posse, o então Ministro da Justiça, Sérgio Moro, afirmou que “o objetivo do pacote que apresentaria ao Congresso consistiria em ‘enfrentar os pontos de estrangulamento da legislação penal e processual penal e que impactam a eficácia do Sistema de Justiça Criminal’, justificando sua proposta sobretudo no mito da impunidade e na insegurança frente ao nível ‘epidêmico’ de criminalidade”. CAMARGO, Rodrigo Oliveira; SILVEIRA, Felipe Lazzari in CAMARGO, Rodrigo Oliveira; FÉLIX, Yuri (coordenadores). Pacote Anticrime: Reformas processuais. Reflexões críticas à luz da Lei 13.964/2019. Florianópolis: Santa Catarina, 2020, p. 28.

[6] WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 83.

[7] A potestade penal do Estado “adquiriu uma enorme capacidade de decisão (não de solução) nos conflitos, e também, consequentemente, de arbitrariedade, uma vez que não apenas seleciona livremente as poucas pessoas sobre as quais, em casos contados, quer exercer o poder, bem como a medida e a forma em que decide fazê-lo”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Tradução: Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 31.

[8] CORTINA, Adela. Aporofobia, el rechazo al pobre. Un desafío para la democracia. Barcelona: Paidós, 2017.

[9] A propósito, em uma das sentenças condenatórias analisadas pela pesquisa em comento, ao individualizar a pena do acusado, o magistrado afirmou que a “CULPABILIDADE: diz respeito ao grau de censura da ação do acusado. Sendo desfavorável, tendo em vista que o acusado possui consciência do caráter ilícito do fato, não sendo exigível a conduta nas condições em que ocorreu”. Em outra sentença estudada, restou valorado que, "CONSIDERANDO que a culpabilidade do acusado, em face das circunstâncias fáticas e pessoais que determinaram esse ilícito revela mediano grau de reprovação, de modo que cuida-se de acusado já condenado por crime da mesma espécie, cuja pena sequer fora cumprida, quando voltou a praticar delito idêntico. Estes aspectos que não se confundem com a reincidência ou maus antecedentes, mas não podem ser afastados para a apreciação da culpabilidade. De se reconhecer que são mais intensos o grau de censura e reprovação". SABOYA, Keity; MENEZES NETO, Elias Jacob. Op cit. Ainda a respeito da temática sobre os princípios da legalidade e da culpabilidade em cotejo com a (im)possibilidade de serem consideradas as consequências extratípicas do delito na majoração da pena, assim como a proibição de dupla valoração na determinação judicial da pena, sugere-se a leitura da obra de Adriano Teixeira, Teoria da Aplicação da Pena: fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015.

[10] Uma das sentença do dataset da pesquisa bem representa o alto grau de discricionariedade no processo de individualização judicial de pena, diante da seguinte afirmação: “CONSIDERANDO que a culpabilidade do acusado, em face das circunstâncias fáticas e pessoais que determinaram esse ilícito revela mediano grau de reprovação, de modo que tem problemas com o uso de drogas e possui pouca instrução” (grifos acrescidos). SABOYA, Keity; MENEZES NETO, Elias Jacob. Op. cit.

[11] De acordo com a “Jurisprudência em teses” do Superior Tribunal de Justiça, “ o aumento da pena-base em virtude das circunstâncias judiciais desfavoráveis (art. 59 CP) depende de fundamentação concreta e específica que extrapole os elementos inerentes ao tipo penal”. Edição n. 26: Aplicação da Pena – Circunstâncias Judiciais. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/toc.jsp?edicao=EDI%C7%C3O%20N.%2026:%20APLICA%C7%C%20DA%20PENA%20-%20CIRCUNST%C2NCIAS%20JUDICIAIS>. Acesso em: 20 set. 2020.                              

[12] “A exclusão das circunstâncias de caráter pessoal do rol do caput do art. 59 é uma demanda de relevante parte da doutrina e também é proposta no PLS 236/12 (art. 73). Essa demanda é necessária e coerente com um dos princípios básicos que norteiam o Direito Penal moderno e que serve de base também para as para demais presentes sugestões no âmbito da aplicação da pena: o agente deve ser punido por aquilo que faz e não por aquilo que é. Apenas um sistema punitivo calcado nessa premissa faz respeitar os princípios da legalidade e da culpabilidade, que retêm vigência não só na seara dos pressupostos de incriminação, senão também no âmbito da aplicação da pena”. GRECO, Luís et al. Reforma da Parte Geral do Código Penal: uma proposta alternativa para debate. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 43-44.

[13] “[…]o uso de entorpecente pelo réu, por si só, não pode ser considerado como má-conduta social para o aumento da pena-base. STJ – HC 201.453-DF, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 2/2/2012.

[14] BOEING, Daniel Henrique Arruda; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Ensinando um robô a julgar: pragmática, discricionariedade, heurísticas e vieses no uso do aprendizado de máquina no Judiciário. Florianópolis: EMais, 2020.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

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    é juíza no Rio Grande do Norte, doutora em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora de Direito Penal na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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    é doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e professor efetivo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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