Opinião

O TCU, a OAB e a pensão sui generis

Autor

  • Jaques F. Reolon

    é economista advogado mestre em Direito doutorando em Direito Constitucional e sócio fundador da Jacoby Fernandes & Reolon Advogados Associados.

2 de outubro de 2020, 15h20

Sempre discordei dos precedentes do Supremo Tribunal Federal que desobrigaram a Ordem dos Advogados do Brasil de prestar contas ao Tribunal de Contas da União [1].

Aplaudi o voto [2] do ministro Marco Aurélio que submete a OAB à fiscalização do controle externo. Em obra sobre o tema, há muito defendia essa fiscalização nas questões administrativas da entidade:

"Uma fiscalização da OAB, todavia, somente no tocante às suas atividades administrativas, com vistas à analisar a legitimidade, a economicidade e a legalidade do emprego dos recursos que arrecada, seria muito bem vinda e em boa hora" [3].

Incompreensível arrecadar compulsoriamente e não prestar contas.

1) Como deve ser a fiscalização e seus limites
O
 que se deve preservar na fiscalização a ser realizada pelo TCU, se o colegiado do STF assim decidir, são as atribuições finalísticas da OAB, jamais as suas atividades administrativas, à similaridade do Conselho Nacional de Justiça, que não examina os temas jurisdicionais, mas os administrativos e financeiros dos órgãos do Poder Judiciário.

Os conselhos de fiscalização profissional — um dos atributos da OAB , possuem natureza jurídica de autarquias sui generis, com ampla autonomia e independência.

Na recente decisão do STF, na ADC 36, que impôs definitivamente o regime celetista ao quadro funcional dos citados conselhos, as razões de decidir do ministro Alexandre de Moraes assentaram a aplicação mitigada do Direito Público, tratando-os como as entidades paraestatais que possuem normas próprias sobre compras, contratações e admissão de pessoal, aderentes aos princípios administrativos constitucionais.

A jurisprudência sobre a legislação aplicável aos conselhos vai ser muito afetada pelos efeitos jurídicos desse precedente do STF, em seus mais diversos aspectos.

Diante dessa decisão [4], entendo que deve a OAB se submeter a uma fiscalização de resultados, assim como as entidades paraestatais. Não focar resultados ensejaria a retirada de recursos alocados na valorização da advocacia e na defesa do Estado democrático de Direito para aplicá-los em burocracias, incompatíveis com as finalidades dessa espécie de entidades e próprias do regime público puro.

Deverá a OAB possuir regulamentos próprios de obras, de compras e de contratações de pessoal, submetendo-se aos referidos princípios, em suas atividades administrativas, prestando contas da aplicação das anuidades ao TCU. A esperança foi reavivada.

Importante registrar que a fiscalização por resultados não poderá usar como parâmetro as normas de Direito público, a exemplo da Lei nº 8.666/1993, pois significaria uma burla à sua aproximação com o modelo das entidades paraestatais, regidas por normas próprias norteadas pelos supracitados preceitos.

2) Um exemplo da necessidade de o TCU fiscalizar
A imprensa [5] divulgou a iniciativa da OAB federal de conceder uma pensão vitalícia de R$ 17 mil a um ex-funcionário, ex-chefe de gabinete do ex-presidente da entidade.

Sem nenhuma crítica a qualquer membro da OAB, alocar a receita da anuidade dos advogados para conceder esse privilégio ímpar é desvio de finalidade.

As anuidades somente podem ser aplicadas na nobre missão de defender a Constituição, a ordem jurídica, os direitos humanos, a justiça social e na missão institucional de defender e disciplinar o exercício da atividade jurídica pelos advogados que a sustentam, previstos no Estatuto da Ordem. Nada além disso.

Por homologia das formas, se a receita é cogente, por força de lei, a despesa também se atrela à norma e não às vontades pessoais ou precárias de gestões passageiras, em detrimento da finalidade legal.

Esse desvirtuamento poderá manchar indelevelmente a imagem de uma instituição sagrada que sempre se pautou pela obediência às normas, pois defende a ordem jurídica e daí exsurge a legitimidade para fazê-lo. E nem poderia ser diferente, em se tratando de uma casa de advogados.

A medida se torna ainda mais questionável quando se sabe que os empregados da OAB, por disposição legal, são filiados ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS), no qual o teto da aposentadoria não alcança sequer a metade da pensão proposta ao ex-funcionário e são submetidos à legislação específica. É dizer: não há paradigma legal para tal devaneio.

A concessão de pensão especial requer lei, a exemplo daquelas destinadas às pessoas com síndrome de talidomida [6], às vítimas de hepatite tóxica, às contaminadas em hemodiálise realizadas na cidade pernambucana de Caruaru [7] e aos acidentados com o Césio 137 em Goiânia [8].

Em episódio anterior, o posicionamento foi distinto. Revelou-se estranhar que o ex-ministro Sérgio Moro, uma pessoa de reputação ilibada, teria pedido uma espécie de pensão para aceitar o cargo oferecido pelo presidente da República, afirmando-se, à época, "ou se aceita a nomeação ou não", "não existe lei que dê base a isso" [9]. Pois é: pau que dá em Chico, dá em Francisco.

Nem procedimento interna corporis justificaria a benesse.

A situação torna-se ainda mais casuística quando se observa que diversas seccionais da OAB vêm, ao contrário de fomentar incentivos, demitindo funcionários, exatamente por falta de recursos, principalmente em função do cenário desastroso causado pela pandemia da Covid-19.  Em julho passado, a seccional do Distrito Federal demitiu 45 funcionários, quase 20% do quadro total de empregados, alegando queda excessiva no valor arrecadado, em função de aumento da inadimplência dos advogados registrados.

Ao propor um benefício a apenas um ex-funcionário, e sem amparo no ordenamento jurídico e à realidade por que passa a instituição, afrontam-se normas trabalhistas e coletivas dos empregados da OAB, sem solidarizar-se com os advogados em dificuldades financeiras, devido à pandemia.

A justificativa de que a pensão possui lastro em uma decisão de 1987 parece também infundada, pois as pensões são regidas pelo preceito tempus regit actum, impondo a incidência da lei do tempo do suprimento dos requisitos para usufruir o benefício. Com efeito, incabível basear-se em decisão erigida sob um estatuto revogado da OAB — Lei n° 4.215/1963, que aplicava aos empregados o antigo estatuto do servidor público civil —, Lei n° 1.711/1952 e antes da Constituição de 1988.

Fatos como esse ainda ocorrerem, além de outros motivos, por ausência de fiscalização do TCU e de controle social mais efetivo — e aqui a mea culpa, pois os mecanismos institucionais de fiscalização são atrelados à gestão e aqueles decorrentes da via democrática, oriundos do sufrágio, são temporais e não onipresentes.

Ao final, se não for permitida a fiscalização do TCU, além das ações que podemos manejar, como última bala da carabina jurídica, poderemos lembrar aos magistrados do Brasil que "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer" [10].

Ou seja, o único óbice à liberdade profissional parece ser a qualificação [11].

 


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 36.376/DF.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 1.182—189/BA. O tema é objeto de um recurso extraordinário que está pautado para ser analisado no plenário virtual no dia 9 de outubro, em que o STF firmará uma tese de repercussão geral.

[3] REOLON, Jaques Fernando. Conselhos de Fiscalização — Curso Completo. 2 ed. rev. amp. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 46.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADC 36.

[6] Lei 7.070/1982.

[7] Lei 9.422/1996.

[8] Lei 9.425/1996.

[10] BRASIL. Constituição (1988). Artigo 5º, inciso XIII.

[11] Sinônimo de competência, capacidade, aptidão, habilidade etc.

Autores

  • Brave

    é presidente da Associação Nacional dos Advogados nos Tribunais de Contas do Brasil (Anatricon), vice-presidente da Jacoby Fernandes & Reolon Advogados Associados, mestrando em Administração Pública, especialista em Direito Administrativo e membro das comissões de Direito do Terceiro Setor e de Advocacia nos Órgãos de Controle da OAB. Ocupou diversos cargos em tribunais de contas, como assessor de conselheiro, assessor-chefe no Ministério Público e secretário executivo do Ministério Público.

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