Senso Incomum

E respondi a Moro: 'Bah, com juízes como você, prefiro o originalismo'

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1 de outubro de 2020, 8h00

Logo entenderão a frase do título, que será explicada mais adiante, para quem ler até o final. Esse é o desafio.

Spacca
1) Nos Estados Unidos há uma vaga para a Suprema Corte
Eis que, nos Estados Unidos, volta a polêmica de uma nomeação à Suprema Corte em ano de eleição. A polêmica de um presidente polêmico fazendo uma indicação polêmica. Nesse sentido, exceção feita ao aspecto do ano eleitoral, o cenário é parecido com o que temos aqui. Eis que é importante discutir o assunto. Sob a perspectiva do… Direito, afinal. Sei que Direito não é uma coisa muito na moda, então já peço desculpas de saída.

Vamos lá. Nos EUA, há quem diga que não seria legítima uma nomeação com tão pouco tempo antes de uma eleição presidencial. O curioso é que, agora, a argumentação é dos democratas, que não gostariam de ver Donald Trump indicando mais um ministro, de orientação conservadora, agora a substituir Ruth Bader Ginsburg. E o argumento dos democratas acaba fazendo sentido porque os republicanos usaram o argumento da eleição para impedir que Obama indicasse substituto ao conservador Justice Scalia. Pois é. Agora não vale? Curioso quando as palavras não importam.

De todo modo, deixando de lado as contradições, importa registrar que Trump anunciou a nomeação de Amy Coney Barrett, uma autodeclarada pupila de Scalia que diz que vai seguir precedentes. Como Scalia, Barrett diz que o Direito é o Direito. Que os textos devem ser respeitados. Ou, pelo menos, seu significado público original (vamos dar de barato que ele não manipulasse isso, pra encaixar em sua ideologia). Católica fervorosa, Barrett já declarou que "não é apropriado que juízes imponham aos outros as suas convicções pessoais".

Bravo. Só espero que Barrett realmente respeite as próprias palavras. Respeite o precedente. O próprio, sobretudo. E que não imponha aos outros suas convicções pessoais.

Tenho uma série de críticas a teorias originalistas, textualistas, intencionalistas, e tudo mais que se inventa para não interpretar a constituição de modo íntegro, segundo o que ela exige em cada caso. Dworkin já havia sacado bem isso: a sutileza está no fato de, geralmente, não se trata das intenções dos legisladores ou dos constituintes, mas daquelas que o intérprete diz serem as intenções dos legisladores ou dos constituintes. A própria Barret já foi flagrada fazendo escavações da história legislativa direcionadas a acomodar suas inclinações.

De todo modo, verdade seja dita, por aqui um originalista ou um textualista norte-americano seria tachado de garantista se resolvesse aplicar as garantias previstas no artigo 5º da Constituição, tão maltratadas em decisões recentes. Ironia das coisas do Direito, pois não?

Bom, no que diz respeito aos States, espero que Barrett cumpra o que Barrett disse. Que não imponha aos outros as suas convicções pessoais. Afinal, ninguém vai ao Judiciário, nem lá nem aqui, para saber das convicções pessoais dos juízes. As pessoas recorrem ao Judiciário para saberem o que a lei diz, pois não? Ou não é assim? Neste caso, Barret começa bem. Ou esse papo de originalismo é só um disfarce conveniente para uma posição política (mais reacionária do que conservadora, se vocês me entendem), como muitos juristas americanos já suspeitavam? Um conservador respeitaria decisões anteriores como o fruto de sabedorias historicamente acumuladas… Será que o respeito aos precedentes vai valer para Roe v. Wade? Sua interpretação será a mesma quando contrariar interesses republicanos, mostrando um mínimo de independência? E os republicanos estão simplesmente usando de sua posição majoritária no Senado para promover uma indicação hiperpartidária? Ou vão respeitar a velha cultura de um mínimo de bipartidarismo nas indicações para a Suprema Corte?

2) No Brasil, há uma vaga na Suprema Corte
Como agirá nosso Congresso na sabatina, caso um radical sem o menor respaldo jurídico for indicado? Chegou a hora de ver se as instituições estão funcionando mesmo.

Por motivos óbvios, com a aposentadoria do ministro Celso, muito se tem discutido sobre o próximo indicado, a ser escolhido pelo presidente Bolsonaro. O que eu espero?

Eu espero, só posso esperar, aquilo que espero de todo juiz: o de, acima de tudo, respeitar a Constituição. Lembremos Barrett, a escolha de Trump (de quem o presidente Bolsonaro tanto gosta, não é?!): "Não é apropriado que juízes imponham aos outros as suas convicções pessoais".

Barrett é católica. Aqui, Bolsonaro já prometeu um "terrivelmente evangélico". Ora, sem problema. Desde que ele seja terrivelmente evangélico no culto, não no Plenário. Que saiba bem ler a tese dos dois corpos do rei, de Kantorowicz, o que me parece muitíssimo difícil de ocorrer. O Estado é laico. Bolsonaro deveria saber disso, porque prometeu manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.

Um ministro da Suprema Corte, lá e cá, necessita seguir esse (velho) lema: "Queremos leis que governem os homens e não homens (e mulheres) que governem as leis".

Ou, por desespero, teremos de importar um originalista para o nosso STF? Ou um textualista? São coisas diferentes, mas, de algum modo, parecidas (o primeiro prega um "significado público original" da lei; o segundo, um "significado claro, superficial e específico").

Será que Bolsonaro, que já está oferecendo tudo do Brasil aos Estados Unidos, não estaria disposto a ceder mais essa indicação a Trump? Vejam o caso no Banco Interamericano de Desenvolvimento, de cuja candidatura à presidência o Brasil abriu mão em favor dos EUA, quebrando uma tradição de 61 anos sem indicações americanas para prestigiar os países latino-americanos.

Lembro de um debate que fiz com Moro no IBCCRIM. Bem à vontade, ele defendia o livre convencimento do juiz. Criticado duramente por mim, veio ele, com um tom de ironia, dizendo, como se tivesse descoberto a pólvora: "Ah, então você prefere a prova tarifada"?

Respirei fundo, contei até três e respondi, ao estilo gauche: "Bah, com juízes como você, até a prova tarifada é uma garantia". O tempo me deu razão. Não com relação à tarifação, é óbvio, porque a usei apenas e tão-somente (porque não sou nenhum fabricante de próteses para fantasmas!) para mostrar o abismo entre o subjetivismo/voluntarismo e o objetivismo. Isto é, contra o subjetivismo "tipo-usado-por-Moro", até é preferível um objetivismo "tipo originalismo" ou "tipo textualismo" (conforme as definições que escrevi acima). Minha irônica observação-comparação estava certa, conforme descobrimos anos depois. Meu debate foi em 2015.

Pergunto: é possível entender a alegoria que aqui faço e a que fiz no debate com Sérgio Moro? Nos tempos atuais, tenho de ser claríssimo. Assim, explico de novo: para enfrentar-superar o "relativismo interpretativo de livre convencimento" do então juiz Moro (que o agora advogado Moro sentirá na própria pele!), eu equiparei originalismo-textualismo-taxatividade. Nenhum dos três me serve, por óbvio, como explico à saciedade nos verbetes Livre Convencimento, Livre Apreciação da Prova, Literalidade, Voluntarismo, Hermenêutica Jurídica e Valores, do meu "Dicionário de Hermenêutica".

Serei ainda mais claro: quis dizer que, diante de uma livre apreciação, livre convencimento e/ou voluntarismos, é preferível, no limite, adotar posturas "objetivistas" (sic). Por isso, provavelmente um originalista como Scalia (ou a Amy Barret) ou algum textualista (até poucos meses, Adrian Vermeule era um deles) seriam vaiados nos aeroportos se fossem juízes no Brasil. Algum jornalista diria: "Esse garantismo vai acabar com a 'lava jato'" (desculpem, mas é impossível não lembrar de Merval e Camarotti). Imaginem originalistas e textualistas aplicando a Constituição por aqui… Seria bem interessante. Por exemplo, não teríamos nenhum problema com a presunção da inocência! Isso para começar!

In fine: Bolsonaro vai nomear um ministro. Se eu pudesse, nomearia um estagiário a lhe acompanhar, dizendo sempre, todos os dias: "Lembra-te da Constituição. Mas guarde para Vossa Excelência a sua opinião particular sobre ela". Eis a minha colaboração para a indicação do novo ministro.

I rest my case!

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