Pensando em Habeas

A importação de sementes de maconha na visão do Supremo

Autor

  • Rafael Ferreira de Souza

    é assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal delegado de Polícia da Polícia Civil do Distrito Federal pós-graduado pela Fundação Escola do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

1 de outubro de 2020, 8h02

O parágrafo único, do artigo 1º da Lei 11.343/2006 prevê que "consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União". Para os crimes previstos na Lei de Drogas, portanto, é necessário complemento normativo revelador do que venha a ser caracterizado como droga. Tem-se hipótese de norma penal em branco heterogênea, porquanto o conteúdo da norma é complementado por fonte diversa daquela que a editou, no caso, uma autarquia Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) , vinculada ao Ministério da Saúde.

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No caso, a norma complementadora é a Portaria SVS/MS nº 344/1998, editada pela Anvisa. Apenas serão consideradas drogas, para os fins previstos na Lei nº 11.343/2006, aquelas substâncias presentes na norma complementadora. Ainda que determinada substância cause dependência física ou psíquica, sua não inserção no rol de substâncias proibidas, nos termos da Lei de Regência, implica na impossibilidade de que quaisquer condutas relacionadas a tais produtos sejam objeto de incidência das disposições incriminadoras da Lei de Drogas, apesar de poderem caracterizar outras condutas típicas, como, por exemplo, o contrabando.

No tocante especialmente à maconha, veja-se que a Portaria SVS/MS nº 344/1998, da Anvisa, prevê expressamente a substância Tetrahydrocanabinol (THC), presente na planta Canabis Sativa, como droga. Ocorre que a semente da planta não possui em sua composição o THC, gerando inúmeras discussões a respeito da tipicidade de condutas relacionadas à tal grão, porquanto, destinado à produção da planta, e esta sim, à substância entorpecente em si. Seriam, ou não, as sementes consideradas matéria-prima para a produção de droga [1]?

Nessa perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que a importação clandestina de sementes de Cannabis Sativa configura o tipo penal descrito no artigo 33, §1º, I (matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas), da Lei nº 11.343/2006 [2], não sendo cabível a aplicação do princípio da insignificância na hipótese de importação clandestina de produtos lesivos à saúde pública, em especial a semente de maconha. O quadro implicou a formalização de impetrações perante o Supremo, basicamente, sob o fundamento de que as sementes não podem ser consideradas matéria-prima ou insumo destinado à preparação da droga, vez que delas não se extrai substância com efeitos entorpecentes, sendo as condutas a elas relacionadas insuscetíveis, portanto, de caracterizar delito previsto na Lei de Drogas. Alega-se ainda a viabilidade de aplicação do princípio da insignificância, pela ofensividade mínima da conduta e ausência completa de periculosidade social do agente.

Nesse ponto, é relevante destacar decisões que externam posição de avanço quanto ao tema das drogas. Os fundamentos lançados nas impetrações perante o Supremo dizem respeito à pequena quantidade de sementes e à pendência da análise, pelo tribunal, da constitucionalidade do crime de porte de drogas para consumo próprio, não havendo, em algumas delas, contudo, alusão à presença ou não do THC nas sementes.

No Habeas Corpus nº 143.798/SP, o ministro Luis Roberto Barroso deferiu a ordem, em 19 de dezembro de 2019, para trancar ação penal na origem, considerado o delito de porte de droga para uso próprio, ante a reduzida quantidade de substâncias apreendidas. O caso concreto é consubstanciado na importação, pelo paciente, através da internet, de 14 sementes de maconha [3]. O relator considerou plausível a alegação de que a conduta praticada pelo paciente se amolda, em tese, ao artigo 28 da Lei de Drogas, referindo à discussão, pendente de julgamento final, a respeito da constitucionalidade do dispositivo pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal [4]. Na decisão, o ministro aludiu ao próprio voto proferido no âmbito do Recurso Extraordinário nº 635.659, no qual propôs a afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: "É inconstitucional a tipificação das condutas previstas no artigo 28 da Lei no 11.343/2006, que criminalizam o porte de drogas para consumo pessoal. Para os fins da Lei nº 11.343/2006, será presumido usuário o indivíduo que estiver em posse de até 25 gramas de maconha ou de seis plantas fêmeas. O juiz poderá considerar, à luz do caso concreto, (i) a atipicidade de condutas que envolvam quantidades mais elevadas, pela destinação a uso próprio, e (ii) a caracterização das condutas previstas no artigo 33 (tráfico) da mesma Lei mesmo na posse de quantidades menores de 25 gramas, estabelecendo-se nesta hipótese um ônus argumentativo mais pesado para a acusação e órgãos julgadores".

Também no Habeas Corpus nº 131.310/SE, o impetrante articulou com a ínfima quantidade de droga adquirida para consumo pessoal, dizendo-a incapaz de afetar ou comprometer a livre volição do paciente ou a saúde pública, o que afasta qualquer possibilidade de lesão ou mesmo de ameaça de lesão à saúde pública. Adotando idêntica interpretação àquela lançada ao caso mencionado, o relator, ministro Luis Roberto Barroso, destacando sobretudo a reduzida quantidade de substância entorpecente para uso próprio, concedeu a ordem, trancando a ação penal na origem. O caso é alusivo à importação, da Holanda e pela internet, de cinco sementes de maconha e 0,52 grama de substância psicotrópica, de uso proscrito no Brasil, denominada "Sálvia 'X'  Salvironina 'A'".

Diversos outros casos, submetidos à apreciação do Supremo Tribunal Federal, tiveram ordens concedidas em Habeas Corpus para absolver o paciente ou trancar processo crime relacionado especificamente à importação de sementes de maconha, considerada a atipicidade conduta pela ausência da substância THC nos grãos.

No âmbito da 2ª Turma, verificou-se a concessão da ordem nos Habeas Corpus nº 142.987/SP [5], alusivo a 15 sementes de Cannabis Sativa; nº 143.557/SP [6], referente a dez sementes de maconha; nº 144.161/SP [7], no qual o caso concreto diz respeito à importação de 26 sementes de maconha; e nº 144.762/SP [8], alusivo à importação de 18 sementes de maconha. As decisões, em geral, adotaram como premissa dois fundamentos: o primeiro é o de que as sementes não podem ser consideradas matérias-primas, tendo em vista que delas não se pode extrair o produto vedado pela norma (THC), mas, sim, da planta geminada da semente. O segundo, é de que o fruto do plantio seria para uso próprio, de forma que há real plausibilidade na alegação de que a conduta praticada pelo paciente se amoldaria, em tese, ao artigo 28 da Lei de Drogas, dispositivo cuja constitucionalidade, como já consignado, está sendo discutida pelo Supremo Tribunal Federal.

Também mediante atuação individual, observam-se decisões da ministra Carmem Lúcia Habeas Corpus nº 163.730/SP [9] , do ministro Edson Fachin Habeas Corpus nº 149.575/SP [10], no qual acionou o artigo 192 do Regimento Interno do STF [11], assentando encontrar-se a matéria consolidada na jurisprudência do tribunal , do ministro Ricardo Lewandowski Habeas Corpus nº 149.199/SP [12], referente a importação de 37 sementes de maconha provenientes da Holanda, e nº 153.568/SP [13], caso em que o paciente foi denunciado por tráfico de drogas por ter importado 15 sementes de Cannabis Sativa , e do ministro Celso de Mello, no Habeas nº 143.890/SP.

A análise das recentes decisões do STF revelam que a ausência da substância THC nas sementes implica na atipicidade da conduta, porque não há dúvida de que a semente em si não é droga, não podendo ser considerada, portanto, matéria-prima ou insumo ou produto químico destinado à preparação de droga ilícita.

A discussão sobre o porte de drogas para consumo se projeta, também, sobre o tema da inconstitucionalidade da proibição da conduta, sob o enfoque da violação à intimidade e à vida privada, valores constitucionalmente protegidos e que instrumentalizam o postulado da secularização, garantindo radical separação entre o direito e a moral. Apesar de certa irreversibilidade do processo de incorporação, pelas legislações contemporâneas, de bens jurídicos que declaram proteção de interesses abstratos sob o rótulo de interesse públicos, em fenômeno chamado neoespiritualização do bem jurídico, não se pode deixar em segundo plano e ao esquecimento o sujeito concreto envolvido na situação-problema [14]. A análise do tema, sob a sistemática da repercussão geral, encontra-se em curso no âmbito do já mencionado Recurso Extraordinário nº 635.659.

 


[1] Conforme Vicente Greco Filho e João Daniel Rassi, matéria-prima é a substância de que podem ser extraídos ou produzidos os entorpecentes que causem dependência física ou psíquica (GRECO FILHO, Vicente; RASSI, João Daniel. Lei de drogas anotada. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 99).

[2] STJ, EDcl no AgRg no REsp 1.442.224/SP, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, j. 13/09/2016.

[3] No caso, o juízo de origem desclassificou a imputação do crime de tráfico de drogas para o de contrabando e aplicou o princípio da insignificância com fundamento na pequena quantidade da substância apreendida. Nesse contexto, o magistrado rejeitou a denúncia. No Superior Tribunal de Justiça, o relator deu provimento ao recurso especial formalizado pelo Ministério Público, para receber a denúncia, considerada a imputação do artigo 33, § 1º, da Lei de Drogas, e determinar o prosseguimento do processo-crime.  

[4] STF, Recurso Extraordinário nº 635.659/SP, relator ministro Gilmar Mendes, com repercussão geral reconhecida.

[5] STF, HC 142.987/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 11/9/2018. Habeas Corpus. 2. Importação de sementes de maconha. 3. Sementes não possuem a substância psicoativa (THC). 4. 15 (quinze) sementes: reduzida quantidade de substâncias apreendidas. 5. Ausência de justa causa para autorizar a persecução penal. 6. Denúncia rejeitada. 7. Ordem concedida para determinar a manutenção da sentença e do acórdão do Tribunal Regional Federal da 3º Região.

[6] STF, HC 143.557/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, Segunda Turma, j. 11.9.2018. Habeas corpus. 2. Importação de sementes de maconha. 3. Sementes não possuem a substância psicoativa (THC). 4. Reduzida quantidade de substâncias apreendidas. 5. Ausência de justa causa para autorizar a persecução penal. 6. Ordem concedida.

[7] STF, HC 144.161/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 11/9/2018. Habeas corpus. 2. Importação de sementes de maconha. 3. Sementes não possuem a substância psicoativa (THC). 4. 26 (vinte e seis) sementes: reduzida quantidade de substâncias apreendidas. 5. Ausência de justa causa para autorizar a persecução penal. 6. Denúncia rejeitada. 7. Ordem concedida para determinar a manutenção da decisão do Juízo de primeiro grau.

[8] STF, HC 144.762/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, Segunda Turma, j. 11/9/2018. Habeas corpus. 2. Importação de sementes de maconha. 3. Sementes não possuem a substância psicoativa (THC). 4. Reduzida quantidade de substâncias apreendidas. 5. Ausência de justa causa para autorizar a persecução penal. 6. Ordem concedida.

[9] STF, HC 163.730/SP, Rel. Min. Carmen Lúcia. j. 23/10/2018.

[10] STF, HC 149.575/SP, Rel. Min. Edson Fachin. j. 13/12/2018.

[11] Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. "Artigo 192 – Quando a matéria for objeto de jurisprudência consolidada do Tribunal, o Relator poderá desde logo denegar ou conceder a ordem, ainda que de ofício, à vista da documentação da petição inicial ou do teor das informações".

[12] STF, HC 149.199/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski. j. 18/9/2018.

[13] STF, HC 153.568/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski. j. 11/10/2018.

[14] CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/2006. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 418-419.

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