Princípio da Irretroatividade

Menção à LGPD em ação aberta em 2019 gera controvérsia

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1 de outubro de 2020, 21h40

Em decisão proferida na terça-feira (29/9), a juíza Tonia Yuka Koroku, da 13ª Vara Cível de São Paulo, citou a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) para condenar empresa que utilizou indevidamente informações pessoais de um consumidor. 

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Juíza citou Lei Geral de Proteção de Dados em processo aberto em 2019
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A ação contra a companhia foi movida em 2019, pouco depois de o autor comprar um apartamento e, a partir daí, começar a ser assediado por firmas de decoração e instituições financeiras sem nenhuma relação com a parte ré. Os serviços teriam sido oferecidos porque a construtora compartilhou com terceiros, de forma indevida, os dados pessoais do cliente. 

Na decisão, a magistrada diz que os dados, conforme afirma a LGPD, são bens tutelados pela ordem jurídica, relacionados a diversos direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal. 

"Patente que os dados — independentemente de sensíveis ou pessoais (artigo 5º, I e II da LGPD) — foram tratados em violações aos fundamentos de sua proteção (artigo 2ª) e à finalidade específica, explícita e informada ao seu titular (artigo 6º, I)", afirma trecho da condenação.

Ocorre que a lei só começou a valer em 18 de setembro deste ano. Assim, segundo alguns advogados consultados pela ConJur, o diploma não poderia ser aplicado em um processo aberto em 2019, levando em conta o princípio da irretroatividade de normas. 

Embora cite a LGPD em diversos momentos, a decisão se baseia mais em dispositivos da Constituição Federal de 1988 e do Código de Defesa do Consumidor. 

"A sentença fundamenta-se na LGPD, na Constituição e no CDC para demonstrar que, se de um lado os direitos à privacidade e ao sigilo dos dados são de caráter constitucional, eles também se estendem às relações de consumo, levando em conta que a violação das informações do consumidor é vício na prestação de serviço. Para além disso, a ação também está fundamentada na Lei do Cadastro Positivo e no Marco Civil da Internet, legislações vigentes desde 2011 e 2014, e que deitaram em detalhes o que hoje entendemos como princípios da autodeterminação informativa", afirma Mario Filipe Cavalcanti de Souza Santos, que atuou no caso defendendo o consumidor. 

Levando isso em conta, diz o sócio do VilelaCoelho Advogados, a juíza não violou o princípio da irretroatividade, uma vez que, embora a LGPD tenha sido citada, o foi em conjunto com uma série de outras normas já vigentes. 

"Desse modo, vê-se claramente que estamos em um contexto em que, como temos insistido, inclusive nessa ação, os direitos e deveres atrelados à privacidade e à proteção de dados já estão há muito vigentes no Brasil, inclusive antes da LGPD", conclui. 

O advogado Omar Kaminski discorda. Para ele, "segundo o princípio da irretroatividade das normas e conforme já decidiu o STJ em situações análogas, trata-se de legislação superveniente, inaplicável, portanto, a fatos pretéritos". 

Constituição
A advogada Evelyn Weck, do Wambier, Yamasaki, Bevervanço e Lobo Advogados, destaca que a LGPD é apenas um dos fundamentos utilizados na decisão proferida nesta semana. De acordo com ela, o direito à privacidade e proteção de dados está longe de ter sido inserido pelo diploma.

"Trata-se de um dos direitos e garantias fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição, sendo um dos pilares do estado democrático de direito. No plano infraconstitucional, dentre outras leis setoriais, a legislação consumerista, no artigo 43, disciplinou os bancos de dados e cadastros, possibilitando ao consumidor o controle de suas informações pessoais", diz. 

"Neste contexto", prossegue, "a LGPD foi um dos fundamentos adotados na decisão proferida pela magistrada da 13ª Vara Cível de São Paulo para considerar indevido o compartilhamento de dados pessoais do consumidor, porém não foi o único". "O que se pretende evidenciar é que, ainda que a decisão estivesse amparada em outro diploma legal (e não na LGPD), a solução aplicada ao caso seria a mesma." 

Para Daniel Cavalcante, sócio do Covac Sociedade de advogados, a decisão é "curiosa", já que se vale de uma série de normas para refletir aquilo que está presente na LGPD. 

"A juíza cita a LGPD, mas utiliza como embasamento o CDC e dispositivos da Constituição Federal. Em todo caso, a condenação nesse processo é curiosa, pois de fato reflete aquilo que está na LGPD ao abordar justamente a impossibilidade de disponibilização de dados pessoais para terceiros sem autorização do titular. Apesar da LGPD não ter sido invocada inicialmente, a sentença reflete aquilo que a LGPD busca resguardar", diz. 

Reforço retórico
Estela Aranha
, presidente da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB-RJ, interpreta o julgado de modo semelhante. A especialista ressalta, entretanto, que a LGPD, por si só, não pode ser utilizada em ações movidas antes de sua vigência. 

"A decisão também se baseia com muita propriedade no CDC e na Constituição da República. Mas não é possível a aplicação da LGPD em fatos já consumados antes de sua vigência. Assim, a LGPD não pode ser invocada como fundamento da decisão. Sua menção somente é possível com reforço argumentativo".

Já para Paula Lilla, do Lefosse Advogados, a decisão aplicou apenas leis em vigor na época dos fatos, fazendo referência à LGPD como diretriz interpretativa.

"Não se trata da aplicação retroativa da LGPD. O que a juíza fez foi trazer a lei como diretriz interpretativa das disposições da Constituição, Código Civil e Código de Defesa do Consumidor que versam sobre privacidade e proteção de dados", diz.  

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