Opinião

A casa como asilo inviolável e os bailes funk e similares

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1 de outubro de 2020, 6h04

De acordo com o historiador Yuval Noah Harari, há cerca de 12 mil anos o homo sapiens, que até então nada mais era do que uma espécie nômade caçadora-coletora, descobriu que poderia semear grãos em camadas mais profundas de um solo previamente livre de ervas daninhas, podendo assim se tornar um agricultor e se fixar em um determinado lugar [1].

Desde então, estabeleceu-se uma estreita ligação entre o homem e o local no qual passou a habitar. Tanto é verdade que no Brasil, desde a Constituição do Império (1824), a casa — melhor definido como o lar —  já era considerada um "asilo inviolável" [2]. Atualmente, uma redação semelhante é observada no artigo 5º, inciso XI, que prevê a chamada inviolabilidade de domicílio, no qual ninguém pode nele penetrar sem o devido consentimento de seu morador [3]. Essa proteção, dada a relevância do bem jurídico protegido, estendeu-se até o Direito Penal, que criminalizou a conduta de entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências [4].

Como é consabido, o Direito Penal é a ultima ratio, ou seja, somente intervém quando todos os demais meios que o Estado dispõe para inibir condutas ilícitas se mostrarem insuficientes. Nesse contexto, é sempre importante destacar que sua principal finalidade, em consonância com o magistério de Francisco de Assis Toledo, é a proteção de bens jurídicos relevantes [5].

Especificamente no que tange ao tipo previsto no aludido artigo 150 do Código Penal, Cleber Masson revela que o objeto de proteção é justamente a tranquilidade doméstica, abrangente da intimidade, da segurança e da vida privada, proporcionadas pelo domicílio [6].

Essa busca por tranquilidade, segurança e privacidade, notadamente nos grandes centros urbanos, levou significativa parcela da população, face à violência e criminalidade crescentes, a transformar seus lares em verdadeiros refúgios, de onde, com exceção a ida até o trabalho, raramente se afasta. Trata-se de um fenômeno relativamente recente, para o qual pouca atenção é dispensada; muito embora tenha se caracterizado como uma zona conflitiva de acentuada relevância.

Na realidade, esses refúgios têm sido sistematicamente violados, especialmente pelos chamados pancadões ou outros eventos similares [7], nos quais jovens, muitas vezes sem opção de lazer, transformam logradouros públicos em locais de grande concentração e prática de tráfico e consumo de drogas ilícitas, uso excessivo de álcool, sexo explícito, furtos e roubos.

Os moradores, por seu turno, além de conviverem com esses verdadeiros transtornos que se estendem madrugadas adentro, ainda têm suas casas violadas pelo barulho excessivo e pela impossibilidade de locomoção.

Sob o prisma do bem jurídico violado, constituem-se em condutas altamente lesivas, que atentam contra a inviolabilidade das casas, eliminando ou reduzindo sensivelmente a tranquilidade, a segurança e a liberdade de um sem-número de pessoas.

Por consequência, em razão do som alto emitido pelos veículos e da algazarra reinante, não há de se falar em mera contravenção penal, mas, sim, em conduta que se subsume ao preceito primário contido no artigo 54, da Lei 9.605/98 (poluição sonora); infração penal que, como decidiu o Superior Tribunal de Justiça (STJ), prescinde de perícia; in verbis [8]:

"(…) O delito previsto na primeira parte do artigo 54 da Lei n. 9.605/1998 possui natureza formal, sendo suficiente a potencialidade de dano à saúde humana para configuração da conduta delitiva, não se exigindo, portanto, a realização de perícia".

É lamentável constatar que o poder público, comumente insensível aos reais problemas enfrentados pela sociedade, ignora o ditame constitucional que estabelece, de forma expressa, que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos [9].

Dos moradores, vítimas primárias desses eventos, pouco se pode exigir. No entanto, do Estado, no tocante a tais eventos, faz-se imprescindível uma ação conjunta entre as polícias civil e militar, Guarda Civil Metropolitana (GCM), Ministério Público, prefeituras e Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) [10].

Por certo, estas breves linhas, de cunho eminentemente jurídico, não têm a pretensão de resolver o delicado problema, cujas origens estão na falta de perspectivas enfrentadas pelos jovens; mesmo porque essa não é a missão do Direito Penal. Todavia, a conscientização da gravidade do ataque a bens jurídicos extremamente relevantes que pode vir desses pancadões, bem como de outras manifestações e reuniões barulhentas merece a redobrada atenção do Estado e a responsabilização proporcional dos infratores.


[1] HARARI, Yoval Noah, Uma Breve História da Humanidade, Sapiens, Tradução Janaína Marcoantonio, 21ª. edição, L&PM Editores, 2017, p95.

[2] Constituição Política do Império do Brazil — artigo 179 –  VII. Todo o Cidadão tem em sua casa um asylo inviolável. De noite não se poderá entrar nela, senão por seu consentimento, ou para o defender de incêndio, ou inundação; e de dia só será franqueada a sua entrada nos casos, e pela maneira, que a Lei determinar.

[3] Constituição Federal, artigo 5º, XI — "A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial".

[4] Código Penal, artigo 150 — "Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências.
Pena – detenção, de um a três meses, ou multa.
§ 1º – Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, além da pena correspondente à violência.
§ 2º –  (Revogado pela Lei nº 13.869, de 2019) (Vigência)
§ 3º – Não constitui crime a entrada ou permanência em casa alheia ou em suas dependências:
I – durante o dia, com observância das formalidades legais, para efetuar prisão ou outra diligência;
II – a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime está sendo ali praticado ou na iminência de o ser.
§ 4º – A expressão "casa" compreende:
I – qualquer compartimento habitado;
II – aposento ocupado de habitação coletiva;
III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
§ 5º – Não se compreendem na expressão "casa":
I – hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do n.º II do parágrafo anterior;
II – taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero".

[5] TOLEDO, Francisco de Assis, Princípios Básicos de Direito Penal, 5ª. edição, 18ª. tiragem, Editora Saraiva, 2014, p. 13.

[6] MASSON, Cleber, Direito Penal, volume 2, 12ª. edição, revista, atualizada e ampliada, Editora Método, São Paulo, 2019, p. 254.

[7] Nos casos de festas Raves ou Tecno, que geralmente são realizadas longe dos centros urbanos, idêntico raciocínio se aplica.

[8] Superior Tribunal de Justiça, Quinta Turma, Recurso Especial n. 1.777.884 – MS (2018/0293835-1) – RELATOR: MINISTRO JOEL ILAN PACIORNIK, Recorrente: Ministério Público do Mato Grosso do Sul, dezembro de 2.018.

[9] Constituição Federal, artigo 144 — "A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio…".

[10] Atualmente essa delicada situação é enfrentada apenas pela Polícia Militar que, em alguns Municípios, conta com o importante auxílio da Guarda Civil Metropolitana.

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