Interesse Público

O fim da improbidade por descumprimento de princípios e a Lei 13.655/18

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1 de outubro de 2020, 8h03

Esta coluna se propõe a analisar brevemente a proposta legislativa que pretende modificar a Lei de Improbidade Administrativa (LIA), com especial enfoque sobre a possibilidade de extinção da modalidade de improbidade administrativa por descumprimento de princípios.

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O Projeto de Lei nº 10.887/2018 foi apresentado em um contexto em que o instituto da improbidade administrativa vem sendo objeto de contundentes questionamentos em sede doutrinária [1]. Como modalidade de direito punitivo, e com sanções com alto grau de severidade, a improbidade administrativa merece uma reflexão sobre a aplicabilidade das garantias constitucionais postas à disposição dos cidadãos. Registre-se que, mesmo após mais de duas décadas de sua vigência, ainda é comum, na prática, a confusão conceitual entre ilegalidade e ato de improbidade administrativa [2].

Nesse panorama, ainda que a ação de improbidade administrativa seja um instrumento jurídico de grande relevância, não se pode permitir sua aplicação irrefletida, o que igualmente configura gravidade irrefutável [3].

A Lei de Improbidade Administrativa há de ser lida conforme a Constituição evitando-se uma leitura informada por concepções subjetivas e fluidas [4]. O reforço no sistema anticorrupção nacional não pode se apoiar no excesso de punição que, a despeito da aparência, não favorece o interesse público [5], gera banalização [6] e retira o foco das condutas que devam efetivamente receber sanção mais contundente por parte do Estado, em prejuízo à noção de prevenção geral do direito punitivo.

Nesse sentido, ganha destaque o Projeto de Lei nº 10.887/18 [7] [8]. O principal ponto de alteração, conforme a proposta do substitutivo, consiste na extinção do artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa. De todos os três artigos que abordam as diferentes categorias de improbidade, o artigo 11 é o que maior preocupação provoca, sobretudo porque a prática forense revela interpretações em nada associadas à ideia de desonestidade e desvio ético, que deveriam ser as marcas necessárias para a configuração de uma conduta ímproba. A violação a princípios pode ocorrer sem que propósitos escusos estejam presentes.

Mais que isso, não é difícil reconhecer situações em que se possa sustentar violação a dado princípio, embora a conduta esteja apoiada em outros. Condutas não eficientes podem ser impessoais e até legais, assim compreendido o amparo legal formal.

O dia a dia do agir administrativo, as circunstâncias, limites financeiros, problemas ligados aos recursos humanos, entre outros fatores, levam o agente público a determinados caminhos e a certas condutas.

Diante de determinado cenário, não será impróprio que "a conduta do gestor restrinja, em algum grau, determinado 'princípio da administração'" [9], sendo que o ordenamento jurídico pode permitir uma variedade de modos de atuação com o objetivo de cumprir finalidades públicas, não havendo necessariamente sempre apenas uma única alternativa possível [10]. Assim, não se afigura razoável que qualquer caso de descumprimento de princípio arrolado no artigo 11 se configure, por si só, em ato ímprobo. Há posição que defende inclusive a necessidade de se reconhecer um direito ao erro do administrador público [11].

A ofensa a princípios, tal como prevista no artigo 11, e, pior, tal como lida no mundo real, deturpa a noção de improbidade e o propósito constitucional que as sanções devem perseguir.

O artigo 11 é comumente citado nas iniciais das ações de improbidade quer como fundamento único da acusação, quer associado a um dos dois outros dispositivos. Segundo pesquisa desenvolvida pelo Instituto de Direito Público (IDP), esta modalidade concentra cerca de metade de todos os casos de improbidade administrativa que chegam ao STJ [12].

O texto substitutivo propõe a supressão da capitulação da violação a princípios como hipótese de improbidade, caso não implique enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário.

Não se trata de negar o desacerto e nem afastar, se for o caso, a responsabilização do agente, mas de removê-la para que ocorra em outras searas. O que não se pode pretender é que qualquer ato atentatório a princípio da administração se sujeite às gravidades da Lei de Improbidade, cujo escopo principal é a punição de atos deliberadamente desonestos e eivados de má-fé [13].

A proposta vem ao encontro da dificuldade desencadeada pela ausência de previsibilidade mínima de algumas das condutas proibidas sendo o referido artigo 11 o exemplo por excelência de um direito punitivo que coloca o acusado em uma situação de vulnerabilidade de duvidosa constitucionalidade [14]. Nesse sentido, a extinção da modalidade de improbidade administrativa por mero descumprimento de princípios é uma resposta constitucionalmente adequada ao regime de garantias [15] [16], além de ajustada ao que se consolidou via Lei 13.655/18.

E qual seria a relação entre a mudança proposta e a noção de deferência?

A noção de deferência [17] traduz o reconhecimento de que o ordenamento jurídico reserva espaços decisórios ao administrador dada a incapacidade do legislador de antever sempre soluções que melhor enderecem o interesse público. Daí extraem-se duas consequências: a) a liberdade administrativa, quando assegurada, é sempre relativa porque emoldurada pela ordem jurídica e atrelada à finalidade pública, razão pela qual a raiz de legitimidade há de estar exposta; e b) o Judiciário não pode desconsiderar a realidade administrativa nem descurar dos espaços reservados pelo Direito ao gestor, o que não significa o emudecimento mas a fala respeitosa.


 

 

 

 

 

A atuação administrativa gozará de prestígio caso esteja presente motivação densa, apta a explicar as escolhas adotadas, suficiente para que se possa compreender o caminho percorrido. Deferência não traduz blindagem. Antes afina-se com ideia de legitimidade, razão pela qual paralelamente ao reconhecimento de que é preciso escutar o agente público, impõe-se sobre ele de forma cada vez mais crescente o ônus argumentativo. Alegações com base em cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados não bastam, como bem preconiza o artigo 20 introduzido na LINDB por meio da Lei 13.655/18. A decisão administrativa também há de ter sido respeitosa ("deferente") à coletividade destacando-se os casos em que a permeabilidade estatal ocorre via audiência e consultas públicas.

 

Se o agente público na esfera administrativa não pode invocar cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados no afã de explicar seus atos, também ao controle está vedado fazê-lo, como se extrai do mesmo artigo 20. A densidade argumentativa é requerida de ponta a ponta.

Nesse sentido, o controle judicial ou via Tribunais de Contas "pés no chão" deve contabilizar as dificuldades reais, as consequências positivas almejadas, a concretude e a dinâmica próprias da Administração, vedado o controle "sustentado" em valores jurídicos abstratos.

Ora, se o controle não pode ocorrer apoiado em valores jurídicos abstratos, há uma mesma atmosfera a enlaçar a proposta de supressão do artigo 11 da LIA e a noção de deferência endereçada pela Lei 13.655/18.

Ser deferente é ouvir as razões, analisar as justificativas, franquear o espaço dialógico. Daí que o controle deferente não tem como escopo primeiro inibir e constranger e nem, lado outro, ser condescendente. Para tanto, o controle deferente não pode se apoiar na invocação de valores jurídicos indeterminados.

Nesse contexto, afigura-se relevante a inovação proposta pelo texto substitutivo. A Lei de Improbidade Administrativa não pode ser acionada para a punição do administrador honesto e bem intencionado, sob pena de prevalecer o cenário de insegurança jurídica em que o administrador prefira indeferir [18], naquilo que se convencionou chamar de "apagão das canetas" [19].

O agente público precisa sentir-se confortável para agir, para buscar soluções, para avançar em prol da materialização dos comandos constitucionais. A inação e a paralisia provocadas pelo medo do controle frio, aprioristicamente punitivo, em nada contribuem para o interesse público. O controle, tão crucial, precisa ser racional, interativo, desapegado de valores jurídicos abstratos e antenado aos efeitos dele decorrentes.

Esse perfil de controle conferirá a segurança necessária para o administrador público honesto e diligente que hoje se sente inseguro, uma vez que suas ações podem ser, ao sabor de quem prepara a inicial da ação de improbidade, mantida a atual redação do artigo 11, enquadráveis como ofensivas a algum princípio. E de nada adiantará a rejeição das alegações quando da sentença: o estrago estará concretizado. Escaldado, o agente se calará.

A alteração legal pretendida não freia ou constrange a punição quando materializadas as hipóteses de improbidade. Atos dolosos que provoquem dano ao erário e enriquecimento ilícito permanecem hígidos como atos de improbidade, sofrendo a gravidade das penas da LIA.

 


[1] Ver, por exemplo, BITENCOURT NETO, Eurico. 25 anos da lei de improbidade administrativa: desafios jurídicos ainda não superados. Revista Síntese de Direito Administrativo, v. 141, p. 206-209, 2017.

[2] FORTINI, Cristiana. Carta do ministro da Educação: improbidade ou ato irregular? Consultor Jurídico – Conjur, 28 de fevereiro de 2019; e FERRAZ, Luciano. Entre os Conceitos de Ilegalidade e Improbidade Administrativa. Interesse Público, Conjur, 07 jul. 2016.

[3] DIAS, Maria Tereza Fonseca; TORCHIA, Bruno Martins. A necessidade de harmonização das esferas do poder punitivo estatal (Administrativa e penal) no combate à corrupção. In: FORTINI, Cristiana (Org.). Corrupção e seus múltiplos enfoques jurídicos. 1ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, v. 1, p. 212.

[4] BITENCOURT NETO, Eurico. 25 anos da lei de improbidade administrativa: desafios jurídicos ainda não superados. Revista Síntese de Direito Administrativo, v. 141, 2017, p. 209.

[5] FORTINI, Cristiana. Excesso de punição a atos de corrupção não favorece interesse público. Conjur, 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-ago-10/interesse-publico-excesso-punicao-atos-corrupcao-nao-favorece-interesse-publico> Acesso em: 09 de julho de 2020.

[6] DIPP, Gilson e; CARNEIRO, Rafael Araripe. Banalização do conceito de improbidade administrativa é prejudicial a todos. Consultor Jurídico – Conjur. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2017-mar-19/banalizacao-conceito-improbidade-prejudicial-todos > Acesso em: 21 de julho de 2019.

[8] Essa informação foi fornecida pelo próprio deputado federal Carlos Zarattini, autor do substitutivo, em Webinar realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) em 03 de setembro de 2020.

[9] DIONÍSIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019, p. 21.

[10] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para céticos. 2ª edição, 1ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 177.

[11] DIONÍSIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019, p. 21; no mesmo sentido: BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. O Artigo 28 da LINDB – A cláusula geral do erro administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, p. 203-224, no v. 2018.


 

[13] Ver NEISSER, Fernando Gaspar. Dolo e culpa na corrupção política: improbidade e imputação subjetiva. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

[14] Para Marcelo Harger, a ausência de tipicidade cerrada em relação às condutas proibidas e também em relação às sanções se configura em hipótese de inconstitucionalidade material (HARGER, Marcelo. Improbidade Administrativa – comentários à Lei nº 8.429/92. São Paulo: Atlas, 2014, p. 21). Sobre o tema, dentre outros, ver: PEREIRA, Flávio Henrique Unes; MAIA, Raphael Rocha de Souza. A inconstitucionalidade da “violação a princípios” como improbidade administrativa. São Paulo: Jota, 2019. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-inconstitucionalidade-da-violacao-a-principios-como-improbidade-administrativa-18082019. Acesso em: 01/08/2020. A excessiva abertura de tipos proibitivos pode eventualmente encontrar limites na teoria estrangeira denominada de Overbreadth Doctrine. Em sentido contrário, pugnando pela inaplicabilidade da Overbreadth Doctrine à Lei de Improbidade Administrativa, vide REMEDIO, José Antonio; e FLUMINHAN, Vinícius Pacheco. Corrupção Administrativa: inaplicabilidade da Overbreadth Doctrine à Lei de Improbidade Administrativa. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=69ec5030f78a9b73. Acesso em: 01/08/2020. Esta tese se encontra veiculada na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4295 (disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3751870. Acesso em 28/07/2020).

[15] Alice Voronoff recorda que a cláusula da rule of law corresponde à capacidade do ordenamento jurídico de guiar o comportamento dos cidadãos – de forma precisa, previsível, não podendo o administrado ser surpreendido por punições decorrentes de leis retroativas, ambíguas, vagas, obscuras e imprecisas (VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil. 2 reimp. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 230). Ver também: BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 190. Ver tb SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para céticos. 2ª edição, 1ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 329).

[16] O próprio Ministério Público Federal, em nota técnica sobre o texto substitutivo, aponta, como sugestão alternativa, que o artigo 11 da LIA deveria receber redação mais taxativa – ver: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/document33.pdf, acesso em 27/09/2020.

[17] Em verdade, a ideia em si de deferência não é nova. Apenas supera-se a noção anterior satisfeita apenas com o atendimento de formalidades e a atuação de autoridade competente. Ver: VALLE, Vanice Regina Lirio do; DIAS, Paula do Espírito Santo de Oliveira. Indeterminação dos direitos sociais e os desafios à efetividade: uma visão empírica. A&C- Revista de Direito Administrativo & Constitucional. Belo Horizonte, ano 18, n 73, p. 207-228, jul/set-2018.

[18] Expressão extraída do estudo realizado por André Cyrino e Gustavo Binenbojm: BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. O Artigo 28 da LINDB – A cláusula geral do erro administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, p. 203-224, nov. 2018. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/77655>. Acesso em: 03 de julho de 2020.

[19] A questão é objeto de preocupação até mesmo do Supremo Tribunal Federal, conforme se observa de artigo publicado pelo Ministro Gilmar Mendes neste Consultor Jurídico: https://www.conjur.com.br/2020-set-26/observatorio-constitucional-supremo-tribunal-federal-pandemia-covid, p. 02, acesso em 27/09/2020.

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